A IGREJA CATÓLICA
INTERROGA AS FAMÍLIAS
A Família entre
Direito Natural e Direito Positivo
António Justo
O Papa Francisco,
consciente das posições teóricas da Igreja sobre a Família, está a fazer um
levantamento de pareceres relativos à família a partir da experiência, a nível
mundial nas comunidades católicas. Pretende unir os métodos de aquisição de
conhecimento dedutivo (saber mais idealista adequado à capacidade especulativa)
ao conhecimento indutivo (saber de experiência feito adequado à vivência local).
A unidade e indissolubilidade do casamento são
valores que a cristandade aceita de uma maneira geral. Já o mesmo não se diz em
relação aos métodos anticonceptivos. Um saber a partir da experiência levará a
instituição Igreja a reconhecer maior individualidade na escolha e decisão em
questões de moral sexual. Com isto mantem-se fiel a si mesma na consciência de
que, na terra em questões de moral, o último juiz, para o cristão é a
consciência individual.
No Ocidente a
família, a partir dos anos 60 tem sido objectivo de grandes adversidades, sendo
apelidada de último baluarte burguês. De facto, a família constitui um grande
poder em termos políticos e sociológicos; quem tiver a educação da família nas
mãos tem o poder sobre o cidadão. O segredo da sobrevivência do judaísmo no
mundo, apesar de ter vivido em meios, por vezes adversos, deve-se à coesão que
vem do seu cultivo da família e da religião. (1)
No futuro, a
pastoral familiar passará, certamente, a descentralizar-se e tenderá a assumir
diferentes atitudes conforme os condicionalismos culturais locais; com o mudar
das pessoas mudam-se os sistemas; isto terá consequências também a nível de
liturgia e para-liturgias. A solidariedade vinculativa no casamento é um valor
incontestável mas que não deve pôr de lado a tolerância e reconhecimento de
opções tomadas à luz de circunstâncias adversas. Há que conciliar a consciência
comunitária com a consciência individual sem a necessidade de recorrer a
automatismos de condenações canónicas.
Hoje o
relacionamento entre homem e mulher não é tanto analisado em termos de direito
natural mas sim no compromisso moral entre os dois. Em sociedade, a
autodeterminação e liberdade são mais consideradas.
A pílula não
considera a lei natural, ultrapassa-a e é como tal aceite, também no que
respeita à regulação dos nascimentos. É uma questão que os cônjuges regulam no
foro da sua consciência. O acto sexual tem vindo a perder importância a nível
da relação entre homem e mulher.
No caso de pessoas
distantes da Igreja pretenderem o casamento, o padre deveria decidir caso por
caso sem ter a necessidade de recorrer a actos burocráticos.
Numa altura em que
a ciência intervém nas leis da natureza através da modificação genética
entra-se em âmbitos novos que exigem novas posturas especulativas e uma
responsabilidade especial. Fim do homem é gozar na sua existência a presença de
vários mundos nas suas diversas dimensões.
A coexistência,
como experiência antes do casamento, é vista por muitos teólogos como forma de
preparação para o casamento.
No caso de pessoas
divorciadas que se casam, uma pastoral inserida deveria admiti-las aos
sacramentos. O recurso ao anulamento do casamento poderia ser uma oportunidade
para se rever o passado e motivar a uma nova esperança e oportunidade. A
misericórdia divina é infinita.
De uma maneira
geral, na sociedade ocidental, a homossexualidade já não causa repulsa. A
Igreja é contra a discriminação de homossexuais mas não aceita que sejam
favorecidos pela lei como acontece com os heterossexuais com filhos. A igreja
espera dos homossexuais fidelidade, solidariedade e confiança. Não deve ser
negado o baptismo a uma criança de homossexuais. A pastoral da graça prevalece
perante um ideal dogmático e a questão dos preservativos fazem mais parte do
foro da consciência privada.
Uma moral sexual
demasiadamente fixada no acto sexual, corre o risco de descurar o aspecto
inter-relacional em que o nós tenha lugar próprio para o eu e para o tu.
Da relação interpessoal
dá-se o crescimento e a experiência da comunidade. A experiência da comunhão
conduz ao desenvolvimento individual noutras dimensões quer de auto-realização
e afirmação quer de inclusão e de respeito mútuo. Nela se treina a confiança e
a entrega.
A promoção da
dignidade do matrimónio e da família passaria por uma pastoral familiar que se
reveja numa “ igreja do lar” com uma missão no mundo. Nesse sentido deveriam
ser implementadas para-liturgias familiares consistentes à semelhança das
práticas das famílias judaicas.
Ética cristã - Uma
Ética livre e do Discernimento
Em todas as
sociedades ocidentais se assiste ao conflito entre a lei natural racional e as
leis positivas parlamentares, numa verdadeira luta entre a vontade maioritária
e a minoritária (a lei positiva inclui muitos princípios da lei natural).
A lei natural
mostra o que é melhor e conduz à felicidade numa dinâmica de ultrapassar o
momento presente no sentido do bem que se expressa na realização do ser. A
razão humana funciona como critério de verdade e de objectividade enquanto a
lei positiva se determina mais por interesses de maiorias.
A lei natural é
para Paulo aquela voz que se traz inscrita no interior do coração humano e que
é razoável e por isso não subjugada ao espaço nem ao tempo. Para Agostinho a
lei natural consistia na visão antes da queda original.
A Igreja sempre
teve como referência a lei natural; por isso atribui ao indivíduo a soberania
de decisão sobre princípios morais universais, inerentes à natureza humana,
reconhecendo-lhe a capacidade e o direito de se opor a normas elaboradas pelo
Estado ou qualquer outra instituição (vale a soberania da consciência
individual). A Igreja milenária, que acompanhou os mais diferentes regimes
políticos até hoje, é perita em questões de durabilidade de valores e no
reconhecer a imutabilidade e a caducidade de hábitos e costumes. Ao defender
princípios do direito natural é necessariamente conservadora em relação ao
direito positivo dos estados, porque permanece crítica a fenómenos e normas
morais quando enfocados apenas sob os aspectos ad hoc do sentir e da vontade de
uma política própria duma época. (De facto, embora a pena de morte seja
decretada por uma maioria parlamentar em alguns estados, isso não a iliba de ir
contra a lei natural do género).
A consistência da
orientação cristã revela-se no facto de a dignidade humana ser perene e não
depender de valores nem normas ocasionais que vão surgindo no suceder-se das
sociedades. No indivíduo permanece algo imutável ao longo da história da
humanidade. O ser humano, apesar de ambíguo e incoerente é único.
Consequentemente
haverá sempre um contencioso entre a moral da Igreja e as intenções de poder
dos estados. A Igreja permanece ao mesmo tempo como advogada do indivíduo e
como momento de orientação, encontrando-se também ela, muitas vezes aprisionada
por hábitos e costumes do direito positivo (celibato dos padres).
Assistimos ao
conflito entre a lei natural racional que se revela como correctivo permanente
aos costumes culturalmente adquiridos e a lei positiva (lei estatal -
resultante da fidelidade/sujeição aos costumes culturais, ao tempo e ao regime
político). Na lei natural prevalece o espírito da natureza aliado à consciência
individual e como espírito crítico dos fenómenos sociais do tempo. No texto da
natureza as leis naturais são como que a sua gramática também ela com excepções
na ordenação e na evolução do mundo. Como a natureza tem leis naturais assim a
cultura tem leis coerentes (morais) que a mantêm. A mudança realiza-se na
interacção de uns com os outros. De facto também o pensamento não é sempre
linear, também ele tem as suas curvas e muitas vezes só se pode orientar por
probabilidades.
À Igreja compete o
papel de apontar para a responsabilidade individual e social no equilíbrio
(balance) entre direito natural e direito positivo e no espírito da “Igreja
sempre renovando”. À Igreja institucional cabe o papel semelhante à da
Constituição de um estado, sendo ela depois adaptada à pastoral local. A
atitude da Igreja, que, à primeira vista, parece conservadora, é extremamente
revolucionária e inovadora, ao direccionar a vista para o permanente e
essencial.
António da Cunha
Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
(1) O marxismo, o leninismo e em grande parte o estado
secular, estão interessados em subornar a instituição família para poderem
“nacionalizar” e reeducar a pessoa no sentido da gradual construção do estado
proletário. Consciente de que quem tem o poder sobre a família tem o poder
assegurado, a esquerda em geral, procura através de iniciativas legislativas demolir
certos valores da família tradicional para melhor conseguir os seus propósitos,
a longo prazo. Assim, a vivência familiar encontra-se hoje muito exposta e
sujeita às correntes do tempo. Com a inclusão da praxis sexual como direito
individual já em anos muito verdes (educação sexual escolar demasiado virada
para o acto sexual), o Estado sobrevaloriza o acto sexual utilizando-o para
fins emancipatórios também eles sem qualquer momento de valorização da família.
Neste contexto a pastoral católica não poderá, também ela, continuar a
sobrevalorizar o acto sexual (cf. fixação nos anticonceptivos) para passar a
acentuar mais a importância da relação entre parceiros. De facto, a opção por
constituir família pressupõe hoje uma decisão corajosa e altruísta em relação
ao futuro e como tal difícil para pessoas mais individualistas ou pessimistas.
Neste sentido tornou-se uma prática importante da
esquerda, impedir programas de apoio à família tradicional e às mães, para
fomentar a construção de jardins infantis estatais na intenção de transferir a
missão de educar para o Estado. Para uma melhor consecução dos seus objectivos
escolhem como lugar privilegiado de influência os ministérios de educação
através de funcionários, peritagem e sindicatos. (Deve-se porém aqui reconhecer
um valor importante da esquerda: ela alerta cedo para a resolução de problemas relacionados
com o acompanhamento do tempo). O socialismo é entendido como um estádio de
preparação para o estabelecimento da sociedade comunista; por isso opõe-se à
iniciativa privada que fomenta a pluralidade; esta contraria a concepção de
Estado de pensar unitário. O capitalismo liberal, que também reduz a pessoa, na
prática, a instrumento, veio justificar a política impeditiva duma vida
familiar adaptada às necessidades do desenvolvimento natural das crianças. Pelo
que se observa, tudo parece desenvolver-se no sentido de uma sociedade
capitalista e comunista à maneira chinesa. Sem apoiar ideologias retrógrados nem
progressistas há que aplicar esforços no sentido de se analisar o que se
encontra nas entrelinhas da política e do senso comum que nos orienta.
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