A Bússola para um Futuro
soberano e digno na UE
A recente cimeira
em Washington Trump-Zelensky seguida de autoconvidados europeus e as eleições
norte-americanas serviram como um espelho implacável para a União Europeia... A
UE escorregou na sua própria baba, na narrativa pegajosa e simplista que criou
e da qual agora não consegue libertar-se. Pelos vistos insiste em não arredar
caminho para poder levantar-se...
Trump foi pintado
não como um político de ruptura do padrão estabelecido, com uma agenda
"America First", mas como uma anomalia perigosa. Essa postura, foi
profundamente incauta. Ignorou-se uma realidade fundamental: Trump não é um
acidente, mas a expressão de uma corrente substancial da sociedade
norte-americana (e de parte do mundo), cansada do globalismo e do custo
percebido de alianças que, na sua visão, penalizam os EUA...
A UE vê-se numa
posição de profunda vulnerabilidade. A aposta emocional, que mobilizou a
opinião pública interna, deixou de fora a preparação para um cenário de
negociação dura com um parceiro que não se rege pela sentimentalidade
diplomática de Bruelas. O resultado foi uma cimeira onde a Europa, que tanto
criticou Trump, se viu forçada a abordá-lo com cautela, quase com súplica, para
assegurar compromissos básicos de economia e segurança. As quedas abruptas nas
acções do setor de armamento alemão e britânico após a cimeira são um sintoma
claro deste pânico: a perceção de que o guarda-chuva norte-americano pode não
ser tão fiável expôs a fragilidade da autonomia estratégica europeia...
O mesmo mecanismo
de simplificação aplicou-se a Vladimir Putin...
A razão repetida
de que Putin ambiciona "conquistar a Europa até Lisboa" é um exemplo
perfeito de como se cria um preconceito útil. É uma projeção dos medos
europeus, não uma análise estratégica credível. A Rússia é a maior nação do
planeta, com recursos naturais inimagináveis e uma densidade populacional
baixíssima(1)...
A ideia de que Putin
cobiça uma UE superpovoada, assoberbada por regulamentação e com tensões sociais
crescentes é, no mínimo, questionável. Esta narrativa, no entanto, foi um ovo
galado que vingou: serviu para mobilizar a opinião pública para uma guerra
apresentada como um bem contra o mal, silenciando o debate sobre os custos
reais e os objetivos finais...
Em 2022, a UE e o
Reino Unido alegadamente bloquearam negociações de paz nascentes entre Kiev e
Moscovo, numa altura em que um cessar-fogo seria mais viável. Agora, o mesmo
bloco exige um cessar-fogo, mas apenas para dar tempo à Ucrânia de se rearmar;
este cinismo estratégico que não escapa a muitos...
No cerne deste
problema está um vício de fundo: a projeção. A elite europeia, habituada a
trabalhar com medos e a manipular a vontade popular em vez de a informar com
factos, projetou os seus próprios métodos e ambições sobre a Rússia. A rectórica
sobre "democratizar" a Rússia escondia, muitas vezes, a velha
doutrina colonial de "dividir para reinar", a esperança de que uma
Rússia fragmentada em estados menores seria mais fácil de controlar e dos seus
recursos mais fáceis de aceder.
A estratégia da
NATO de impor valores à força, apoiando revoltas e mudanças de regime em nome
da democracia, é percebida por Moscovo e por outros BRICS como a continuação do
imperialismo ocidental por outros meios, um imperialismo mental, como bem se
pode observar se temos em conta anúncios de funcionários da EU e da NATO...
A UE encontra-se agora numa encruzilhada
humilhante... Putin, o "diabo" absoluto, é agora recebido com tapete
vermelho em capitais mundiais, forçando a Europa a um realinhamento pragmático
para o qual não está preparada... O grande desafio para a UE não é Trump nem
Putin. O verdadeiro desafio é superar a sua própria infantilização política... A UE não via o mundo real, com as suas
complexidades e nuances. Via apenas o reflexo que ela própria tinha fabricado:
um Trump caricatural, um Putin demoníaco, e uma imagem heroica de si própria
como bastião incontestável da virtude... A UE debate-se com o facto de ter
ficado presa no próprio adesivo que fabricou, escorregando no resíduo pegajoso
da sua própria miragem...
O renascimento europeu exigirá mais do que
estratégia; exigirá uma volta às suas raízes mais profundas. A Europa precisa
de se re-situar, sim, não só geopoliticamente, mas, sobretudo, espiritualmente.
A sua bússola já está gravada na sua história: a dignidade soberana do
indivíduo, presente no humanismo cristão; a solidez das estruturas e da
governação, testada pelo genius romano e católico; e a busca eterna pela ética
e pelo bem comum, inaugurada pela filosofia grega. Redescobrir esta tríade de
valores não é nostalgia; é a chave para forjar uma identidade forte e
compassiva no mundo multipolar que agora se demarca.
António da Cunha Duarte Justo
Texto completo em
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10267