ARTE
ARTISTAS E OBSERVADORES (Ensaio)
O nós
também aspira a ser eu
António Justo
Resido na cidade de Kassel, o lugar da Documenta, que é a maior Exposição
Mundial de Arte Contemporânea. Acentuo a palavra lugar, porque este, numa
perspectiva artística poderia compreender-se como o sítio (atelier) da grávida
a dar à luz, ou o sítio grávido onde se juntam as forças dum chamamento possibilitador
da obra de arte.
A dOCUMENTA (13) tem a vantagem de convidar o observador e o/a artista a
uma pesquisa associativa e de lhe proporcionar, ao mesmo tempo, um
“Brainstorming” sobre a arte em geral, (reunindo e conectando os vários ramos
da arte com as diferentes disciplinas do conhecimento) e os mais variados projectos
de vida, num espaço que, à primeira vista, faz lembrar a Torre de Babel. Tudo ganha
aqui expressão em formas e formatos que reflectem o Homem na sua qualidade de
rei e súbdito da natureza, numa dinâmica da ecologia biológico-cultural.
De facto, nada é estranho ao artista que, em interacção e intra-acção com
todas as dimensões da realidade e do saber, procura elaborar o seu rascunho de vida
num contínuo diálogo de inter-relações orgânicas, mecânicas e espirituais. O lugar de acção do artista é,
naturalmente, o público, sendo nele que se movimenta para, numa atitude de
aquisição e ampliação, reflectir e questionar valores e costumes numa
perspectiva diacrónica e sincrónica.
Um dos objectivos do artista contemporâneo, se o equacionamos em termos de expressão
do seu tempo, seria criar um feedback de todas as disciplinas, dado tanto
espírito como matéria, (e relação intersubjectiva /objectiva) serem plataformas
diferentes da mesma realidade, como se expressa a nível teológico, no “dogma”
da Trindade: unidade do ser (criador-criatura/obra) numa relação consubstancial
(interacção artista-obra-observador), exemplificada a nível da encarnação onde
a realidade, constante de matéria e espírito, deixa o caracter antagónico destes
dois princípios, para assumir uma relação “pessoal” de interacção e
intra-acção. Recorde-se, neste contexto, o prólogo do evangelho de João (“No
princípio era a In-formação - o Verbo”). Teorias, mitos e dogmas sempre foram
interpretados e clarificados pelas analogias da arte. É-se artífice do real e do futuro e, com o cinzel da formação,
religião, música, cultura, arte, etc., todos modelam (cada um na sua plataforma
em espírito de complementaridade) o ser humano e a realidade que os envolve e o
forma, ao mesmo tempo.
No mesmo lugar, na mesma obra procura-se juntar e expressar uma conexão de
experiências entre lugares, nomes e sítios sem que os dualismos individuais,
interculturais e interdisciplinares fiquem na sombra, muito embora num processo
comum de individuação que, inevitavelmente, cala as forças da selecção, da
associação e da assimilação.
Na prática, constata-se uma falta de consciência da complementaridade, numa
apreensão e expressão da realidade, que emperra os saberes em definições com
arame farpado; saberes concorrentes que se fixam em si mesmos, agindo contra o
espírito de interdisciplinaridade, numa atitude semelhante à da avestruz, que
mete a cabeça debaixo da sua areia ao sentir que aquilo que a define, como
identidade, a questiona sob o ponto de vista doutras perspectivas. A realidade biológica e cultural acontece
num processo de osmose das suas várias dimensões e camadas, sem fixação na
linearidade duma linha fronteiriça unidimensional (arame farpado). A necessidade
de demarcar o outro corresponde a uma necessidade imanente de se definir a si
próprio, e a uma estratégia de autoafirmação categórica unidimensional, como se
observa na disputa entre arte, ciências naturais, ciências humanas, ideologias,
política e religião. De facto, cada
disciplina, ao fixar-se na linha fronteiriça que a define, despreza o conteúdo
de que faz parte.
Lugares, nomes e objectos de arte, com a ajuda do intelecto, tornam-se em
neurónios de interligação, associação e combinação que se podem revelar em
afirmação ou resistência poética, e, até mesmo, em perversão do pensamento, ou
em símbolos ao serviço de dogmas estéticos e antiestéticos. Tudo é possível organizar de modo a servir
uma obra, mais ou menos descritiva, em que a tela é símbolo duma natureza
sempre criadora e em que até o marginal se pode revelar em fundamento de algo
maior.
A arte/obra de arte, tal como a pele, constitui um delineamento claro de
algo a ela subjacente mas indefinível. Continuando a analogia inicial, poderíamos
definir aqui arte e artista como expressão do grito do universo a dar à luz, à semelhança
do Big Bang numa cópula universal em contínuo processo de realização e consumação
no produzir a obra. Por outro lado, o objecto de arte e a arte observada é como
que algo reflectido num espelho mas que, no entanto, deixa antever, na sua
aura, a passagem do artista pelo Olimpo. Sem esta a arte perderia a sua
sacralidade, significado e motivação. Sem a tal passagem pelo Olimpo os
artistas perderiam a sua auréola e o seu brilho seria parco se consagrado
apenas pela criatura artesanal (povo criatura). Num acto posterior, a importância
da obra de arte vem-lhe do simbólico, o que lhe seria bastante, não se
escondessem por trás dela interesses muito concretos, desde o comercial ao
ideológico; grupos e instituições servem-se, frequentemente, da arte para
tecerem as suas metafísicas fomentadoras de dicotomias entre um laicado e os
iluminados da arte e até mesmo entre as várias artes. Com mitos, dogmas e uma
certa liturgia também na arte se fomenta um público rebanho laico seguidor duma
fé secular definida por alguns corifeus. Este problema torna-se mais óbvio num
momento em que um objecto de arte plástica não fala por si mas precisa de
explicadores que lhe proporcionem o acesso. Para entrar no templo exige-se
agora um porteiro!...
A força do Zeitgeist (espírito do
tempo corrente) ensombra a arte. Ela é de tal forma orientada para uma
globalização, pressagiada como natural, que cria automaticamente uma agressão
contra tudo o que é maior e, como tal, pudesse constituir obstáculo à
concretização dum pretenso espírito ainda maior, o global. Dá-se primazia ao
individual e ao orgânico desde que se deixem reduzir à anonimidade (proletarização
espiritual). O global (globalismo), porém, é o outro lado do biótopo e dos
ecossistemas biológico-culturais mas, de momento, a desenvolver-se sem
qualidade orgânica. (É sintomática, neste contexto, a tendência fatal, dos
nossos multiplicadores de cultura, para negar a cultura ocidental e difamar os
seus fundamentos, até mesmo à custa da afirmação duma cultura hegemónica
desértica e dum mercantilismo absoluto que não reconhecem o sujeito). Também na arte se registam, frequentemente,
traços hegemónicos quando esta se arroga como única capaz de curar os problemas
do mundo. Problema de autoestima cega! Mais que a encenação do mundo entre
arte e contemplação importa o diálogo entre mundivisões que não reduzem as
imagens a meros objectos de uso do próprio rebanho.
O estímulo sensual, intelectual e espiritual poderia contestar fortemente
uma atitude de espírito decadente amoral e “aideal” que reduz o momento a
alegoria relativista mas se limita a questionar medrosamente a artificialidade
dum mundo globalista e relativista destruidor de biótopos e ecossistemas culturais.
Quer-se um pluralismo anónimo
(anorgânico) revelador e confirmador dum efêmero poético e político. No
limiar da realidade do dia-a-dia, alguns artistas lançam-se à descoberta de
limites onde corpos sem conteúdo, sem espírito, se tornam metáforas duma
realidade construída por invólucros vazios. Talvez revelem, assim, consciente
ou inconscientemente, o esvaziamento de tradições e valores a sacrificar a
projectos abstractos implantados por forças artificiais criadas contra uma
evolução natural orgânica, que poderia, não obstante, ser assumida pelo
pensamento (ideologia).
Que seria da arte se não fosse a arte de falar dela! A arte também nos quer alertar para a realidade social e para as
relações de poder. Fá-lo numa tentativa de consertar rostos de cultura da
praça, através de novos objectos de arte, mas apenas à semelhança do que se
verifica nos trajes e enfeites (joias) da mulher ao longo dos tempos. No
enfeite constatamos a diferença de figurinos que escondem atitudes próprias ou
projectos de identidades. Constata-se uma evolução e, ao mesmo tempo, uma
ubiquidade diacrónica e sincrónica que podemos também observar na constelação
das culturas/civilizações hodiernas e diferentes modos e concepções de vida
entre elas . Também no âmbito da arte
falta um estudo sinótico entre o hoje e o antigamente, uim estudo comparativo
(evolutivo) entre as culturas actuais, seus valores e sonhos para possibilitar uma
verdadeira oficina de arte virada já não só para as fenomenologias diacrónicas
mas especialmente para uma fenomenologia sincrónica. Se as víssemos como
num filme de sinótica cultural sincrónica verificaríamos o ontem ainda no hoje
presente (Afeganistão e Suíça, etc.) sem complexos de culpa nem culpabilização
do outro. Verificaríamos grande cinismo num discurso artístico e político que,
em nome dos direitos humanos critica a barbaridades da própria cultura no passado
e ao mesmo tempo aceita, os costumes barbáricos de outras culturas contra os
direitos humanos, em nome do respeito pelas culturas e subculturas actuais.
Este é um escândalo que a arte negligencia ao fixar-se em pequenos escândalos fomentadores
da excitação pública e da própria masturbação improdutiva.
Este é o hoje-amanhã, no seu intervalo abstraído, o eterno presente, onde
se podem ver metáforas de História vivida e a ser vivida e, deste modo, constatar
a fragilidade do Homem e das culturas numa realidade a acontecer entre facto e
ficção. Ao artista fica, muitas vezes, a tarefa de registo de processos num
papel de contador de histórias hoje modernas e amanhã antigas. Não chega
ficar-se pelas fenomenologias culturais, falta ainda fazer-se uma análise
exacta comparativa de ideologias, culturas e religiões numa perspectiva de
orto-praxia concretizadora da realidade eu-tu-nós sob a estratégia dum pensar e
agir a partir do nós.
Duma maneira geral, os museus não
passam de inventários de arte. Como registos da memória artística, lembram, por vezes,
uma viagem artística dum povo que antes vivia da ilusão da perfeição e hoje
vive da ilusão da igualdade e da democracia. Os próprios museus são testemunho
e afirmação duma sociedade e duma propriedade adquirida e a adquirir na medida
em que, também eles, na qualidade de espaços públicos, condicionam o acesso a eles, mediante um óbolo de entrada não acessível
a toda a população. Estes espaços públicos, antecâmaras do Olimpo, nas mãos de
estruturas institucionais, servem um pequeno grupo de frequentadores,
cimentando um estado de coisas em Estados que não conhecem povo nem população mas
para quem reservam a ilusão e o Smog. Museus, mantidos pelo tesouro público,
restringem a entrada neles àquele que tem poder económico para pagar um
suplemento (bilhete) que o torna mais igual a si mesmo e lhe concede um
estatuto identitário superior aos outros (“povo”). A arte limita-se, por vezes, a fomentar uma consciência
política ecológica num público provindo, na generalidade, de camadas sociais
com dinheiro que já possui essa consciência ecológica. Fala-se de liberdade,
solidariedade e abertura sem prevenir nem registar que tudo se organiza na base
de limites e de fronteiras e sob a lei da selecção da natureza. De facto, que
seria da amiba sem a membrana?!
Nas falhas e lacunas da lógica, da vida e do direito, é gerado o progresso
da superfície: ondas concêntricas geradas na superfície da realidade social. O
exagero de performances, filmes, instalações, plásticos em formas visuais num
mundo dominado pela visualidade pode reprimir ou condicionar outras percepções
e dimensões, como se a imagem e a onda fossem as únicas realidades do espaço.
Cumplicidade
entre criador observador obra e acto criativo
Talvez, uma maneira nova de fazer arte, pressuponha uma nova prática com
trabalhos/obras de arte realizadas em comum por grupos de pessoas das
diferentes disciplinas, como sugere Alighiero Boetti, numa tentativa de criar
uma praxis de identidade múltipla. Se queremos encenar um novo mundo a
estratégia será de colaboração e intercomunicação. Em Fernando pessoa temos um protótipo de artista com um eu dividido e
reunido em si mesmo. Ele já se revelava com uma identidade múltipla. Nele podemos certamente verificar a
tendência dum nós que também aspira ser eu. Em cada pessoa, como em cada
grupo ou cultura esconde-se um processo de camadas culturais e físicas, à
semelhança das camadas geológicas formadas ao longo de milénios e que se necessita
consciencializar para ser colocada em interacção consciente. No grupo (nós) inclui-se o contraditório e
dele surge a ipseidade e a alteridade numa relação de complementaridade de
espiral ascendente a caminho do “ Omega” de Teilhard de Chardin. Seria
óbvia a consciência dum propósito comum de evoluir sem se fixar nas formas
criativas em moda nem nas cadeias de ideologias vigentes. Uma consciência
pluridimensional é consciente de que os vários conhecimentos (ciências e
práticas) continuam limitados aos seus próprios trilhos sem reconhecer ainda que
o progresso e toda a perfeição (evolução) e futuro se processa em espiral num
subir sem aniquilar, tudo reunindo em si, à imagem da criança que junta em si também
a presença genética e cultural de seus pais e antepassados. Na criança, em cada
um de nós, caminha a vida toda. Cada um é um resumo do universo segundo o
próprio espelho. O empenho na realização dum futuro já presente implica o
cruzamento dos vários ramos da ciência e da experiência numa fusão paciente de
fé nostálgica e futurista. Todos somos processo e cruzamentos de processos.
Embora peregrinos citadinos, trazemos a província em nós. Esta continua a
ser o terreno onde lançamos os alicerces da nossa casa. Na monocultura não
prosperam as borboletas nem o artista. No nosso sítio pluridimensional, na
nossa alma, encontram-se não só as imagens das paisagens que observamos do
nosso ser, mas também as paisagens reais, o próprio campo, a que não falta o
sol dum espírito iluminador e criador. O
mundo é mais que as imagens ou a percepção que temos dele; ele é cidade e é
campo, é matéria e é espírito, é facto e é fantasia, com entremeios de muros
feitos de pedra, de ideias, de posições e de cultura, onde a luta pelo espaço e
pela identidade parece fazer do muro o essencial. Na feitura do muro, e na
necessidade da sua destruição e reconstrução revela-se a consciência profunda
duma realidade muralhada estar chamada a transcender os próprios muros, podendo
estes, em certos ramos da existência, ser reduzidos a símbolos, tal como
acontece à sublimação da guerra no jogo de futebol. (A destruição dos próprios muros,
porém, não se pode dar numa dinâmica de afirmação dos muros dos outros!)
Cada pessoa, cada obra, rua, catedral pode ser usada para um alargamento da
consciência individual e colectiva; cada facto, cada objecto e ideia pode ser
imbuído de poesia e tornar-se obra artística reveladora e concretizadora dum
diálogo de metafísica e física que se interpenetram e completam, sem que o
cunho individual do artista predomine. Para isso urge unir respeitosamente o
saber científico ao sentir artístico e à sabedoria religiosa e verificar que o
que dá consistência aos muros ideológicos e partidários é o interesse, a
focagem numa parte da realidade. Também a identidade do mar se faz na
interacção da identidade das gotas! Naturalmente, também o aleatório precisa do
seu lugar ao lado do determinado.
O suceder da arte pode comparar-se a um estendal de imagens ventiladas pelo
nosso pensamento e em que o estendal é a nossa alma/consciência individual e
colectiva numa revelação diacrónica. O efémero e o factual recebem a sua
consistência num jogo irónico entre real e abstracto, entre o sujeito e o
objecto. Na obra fica o movimento duma
vontade intencional mais ou menos consciente, num jogo de formas e gestos
simbólicos, por vezes absurdos, de restauração e recuperação de vida e da
reflexão sobre ela.
O medo de perder o legado do passado e o cuidado pelo futuro tornam-se
presentes em obras envolvidas em processos de construção, desconstrução,
reconstrução numa tarefa e intenção de possibilitar novas formas de leitura, duma
realidade que só o é no acontecer. A
arte regista uma contínua tentativa de simplificar a realidade antagónica equacionando-a,
para isso, em verdades que a tornam acessível e destroem ao mesmo tempo. As
obras artísticas, com a sua aura, testemunham a permeabilidade das fronteiras
entre realidade e ficção. A arte origina-se no olhar do observador
possibilitando, no seu consciente, a criação de mundos e dimensões que
transcendem o dia-a-dia, numa procura doutras paisagens e doutros saberes.
O desafio contínuo de diálogo entre material e forma é possibilitado pela
impossibilidade de obter uma síntese entre forma e matéria que transcenda o
objecto que as enterra. Isto motiva todo o artista a procurar um arquétipo que
se revele possível como aspiração no acto de dar à luz. A forma, como momento
de in-formar, cativa o artista no processo criador que dá continuidade à
criação e é subcutâneo à criatura do artista. Consequentemente mais que uma
arte própria dum tempo há apenas uma expressão, um estilo artístico do tempo.
Tal como no prólogo de João, o verbo cria tornando-se carne, num contínuo gerar gerando-se, e em que
matéria e forma são momentos do acto de in-formar. O espaço de tensão entre
o real e o exotérico, entre o acto de criar e o objecto criado, possibilita uma
dialética intelectual já presente no acto criador. O acto de criar é luz sendo a obra a sombra dela e ao mesmo tempo, a
força reminiscente de voltar/realizar luz. A obra de arte, se não reduzida a
sombra petrificada, é sombra a apontar para a luz. Daí também a necessidade
do artista ter de criar um “lugar” que possibilite a confusão do considerado
real para assim proporcionar novos espaços, plataformas, diagramas e novas
criações. Deste modo viabilizam-se diferentes mecanismos de percepção e criação
de realidade. A arte torna-se no lugar do erótico em que a provisoriedade das
formas dá lugar a novas dimensões para lá do tempo e do espaço possibilitando
sentimentos e experiências que se contrapõem às emoções criadas pelo mundo do
poder e da dominação.
Importa submergir na arte sem nos fixarmos no artista, na sua necessidade
de identificação, nem na interpretação. (Estas revelariam apenas parte da nossa
identidade!). As obras, como composições de textos, imagens, formas, materiais
e estruturas possibilitam novos lugares e estadias que se podem tornar nossos espaços
e até alargar as nossas perspectivas no sentido duma orto-praxia tanto linear
como alinear.
Vive-se na dimensão das metáforas entre símbolos religiosos, científicos,
artísticos e o poder político. A futilidade do esforço para chegar a uma
verdade, que se perde nos contextos, fomenta uma realidade de meias verdades,
em vez de apontar para o processo eterno de procura/realização da
verdade/realidade. Também no coração da Documenta - no Museu Fredericianum – se
configuram formas e sombras metafísicas apoiadas num estoque de ideias da
ciência e alegorias da religião. Nele encontra-se uma sala, sem nada, onde o
visitante é confrontado com o vazio e o silêncio. Este espaço de reflexão
criativa estimula os visitantes a questionar, indirectamente, uma sociedade linear
stressante. É mais que óbvia a necessidade de criar lugar do silêncio não só na
igreja e na arte mas a nível individual, institucional e social.
A indústria da arte
comercializada encontra-se ao serviço do capitalismo cognitivo que se distancia da
natureza em nichos dum abstrato alérgico à vida orgânica (Arte de conceito, Concept Art
) e em serviço da visualidade , muitas vezes direccionada para utopias
negativas negadoras do Homem. Serve-se um macro-sistema de sistemas anónimos e
alienantes! Numa época em que o mercado e os meios de comunicação social tudo
instrumentalizam. Também a arte precisa de críticos como o artista Francesco
Matarrese que nega o objecto artístico resultante dum trabalho abstrato (Um
momento de reflexão!).
No entanto, também uma tela vazia viabiliza um destinatário e traz uma
mensagem encoberta a um mundo inundado por imagens mudas em que um saber de
altos voos já não consegue aterrar. Os
fenómenos e os interesses cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas. Os limites tornam-se
lugares que salientam as contradições da condição humana. No tapete do ser, em
que nos movimentamos, nada há certo, tudo é provável; também o tapete em que
andamos faz parte de nós e do movimento que somos. Se a filosofia se limita à pergunta de como é possível o real e se fica
pelos condicionalismos e possibilidades desse real, não sai do comboio do
pensamento que se move em trilhos e potencialidades delimitadoras do próprio
pensamento. Então também a filosofia é uma arte porque reconduz e orienta a
capacidade para um determinado momento do real. Por outro lado, também a
ciência só pode descrever o provável, como descobriu a física quântica; cem
anos depois, ainda se continua a acreditar no Weltbild (imagem do mundo ou
mundivisão) determinista do séc. XIX que pensava que o mundo funcionava segundo
regras exactas mensuráveis.
Fontes de inspiração criam estruturas
narrativas, pinturas da história com restos dum futuro enterrado numa realidade
feita de desmoronamento e reconstrução.
Ah! Na vida aqui ao lado, vive, lado a lado, na arrecadação da realidade, a
vida a arder num processo de materialização e de desmaterialização. Num ser de
objectos transformados pelas chamas do pensamento, a dor dá à luz novos seres
num mudar contínuo de formas e visões. De
facto, a diferença entre o papel higiénico e a nota de banco, está na tinta, o
resto é uma questão de crédito. O nosso destino é dar forma ao formado em
diferentes dimensões na partilha do acto de in-formar. Somos sonâmbulos no
combate à noite da vida em procura da luz; quem não resigna procura, no relevo que
dá à existência, deixar a silhueta da sua conotação, na sequência dum acto
submisso de dar continuidade à vida no seguimento dum chamamento que se
expressa na própria vocação.
Uma história, de perda da herança (recordação) e dos valores humanos,
virada para um saudosismo arcaico que realça as forças bravias nela submersas,
como se o brilho da cultura ocidental fosse algo extraterrestre que justifique
toda a agressão dos guetos ou dos apóstolos do relativismo, expressa e conduz a
um estado de abdicação. Consequentemente, um certo culto do exótico revela-se, contraditoriamente,
contra o próprio ruralismo. Os espíritos dos aborígenes insurgem-se nesse culto
contra a própria evolução. Às sombras da cultura ocidental são contrapostos os
soalheiros doutras culturas e subculturas como se o mundo das culturas fosse
unidimensional, como se, a cada cultura, não estivessem subjacentes a mesmas
forças e leis naturais/culturais com uma representação teatral correspondente à
própria vontade de se autoafirmar no tempo propício ou de se negar. A vigência
duma ética de recordação negativa justificadora dum criticismo discriminador é
sintoma de decadência. Arte, tal como as civilizações, precisa dos seus lugares
altos na companhia dos seus templos. Sem intervir contra estranhos, a arte
ocidental precisa de se reunir para se creditar e não abdicar dos valores que a
tornaram um luzeiro universal!
Obras e culturas são colocadas em
conexões ilegítimas como se um determinado quadro fosse responsável pelas
tintas que se encontram enquadradas em circunstâncias doutros lugares e tempos.
(Responsabilizam-se
os outros para se desobrigar a si mesmo ou para se colocar no pedestal da
moral.) Os espíritos dos mortos continuam a perseguir-nos como se a morte não
fosse vida também. Critica-se o passado e a diferença, não para se ser mas
apenas para subsistir. Na escolha dos factos e das obras que o artista
apresenta, ele procura revelar-se nelas e ao mesmo tempo redescobrir-se na
reacção do observador (público). Instituições e Exposições como a Documentas,
Bienais e que mais, dão valor e significado às obras e artistas que confirmam
as próprias posições e configurações da sua mundivisão. Só é pena que o seu
espírito crítico não se reconheça como mero momento da própria necessidade de
identificação e auto-afirmação, muitas vezes à custa do resto. A sua realização
é importante, também porque constitui uma possibilidade de autoanálise e questionação
possibilitadora de delineações mais alargadas. Os fenómenos cruzam-se nas fronteiras e o artista é o
trapezista que dança nelas.
A arte, entre outras encenações,
é mais uma visão do real, num cenário de fundo indefinido e aberto. Também a
realidade é imagem fenomenal doutras dimensões. Tudo imagens da imagem dum real
num palco de imagens formado também por nós. A vida é símbolo e vive dele num
mítico acontecer que continuamente recria a sensação de chegar a um real que a
própria experiência cria. No abstrair da abstracção talvez se chegue á imagem
dum real para lá da percepção e do dizível, na sarça-ardente do “sou o que sou”
no tornar-me.
António da Cunha Duarte Justo
PS Escrevi este ensaio na
perspectiva duma filosofia da “ARCÁDIA – Associação de Arte e Cultura em
Diálogo”. www.arcadia-portugal.com
© António da Cunha Duarte Justo
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