quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ARTE ARTISTAS E OBSERVADORES (Ensaio)



ARTE ARTISTAS E OBSERVADORES (Ensaio)
O nós também aspira a ser eu

António Justo

Resido na cidade de Kassel, o lugar da Documenta, que é a maior Exposição Mundial de Arte Contemporânea. Acentuo a palavra lugar, porque este, numa perspectiva artística poderia compreender-se como o sítio (atelier) da grávida a dar à luz, ou o sítio grávido onde se juntam as forças dum chamamento possibilitador da obra de arte.

A dOCUMENTA (13) tem a vantagem de convidar o observador e o/a artista a uma pesquisa associativa e de lhe proporcionar, ao mesmo tempo, um “Brainstorming” sobre a arte em geral, (reunindo e conectando os vários ramos da arte com as diferentes disciplinas do conhecimento) e os mais variados projectos de vida, num espaço que, à primeira vista, faz lembrar a Torre de Babel. Tudo ganha aqui expressão em formas e formatos que reflectem o Homem na sua qualidade de rei e súbdito da natureza, numa dinâmica da ecologia biológico-cultural.

De facto, nada é estranho ao artista que, em interacção e intra-acção com todas as dimensões da realidade e do saber, procura elaborar o seu rascunho de vida num contínuo diálogo de inter-relações orgânicas, mecânicas e espirituais. O lugar de acção do artista é, naturalmente, o público, sendo nele que se movimenta para, numa atitude de aquisição e ampliação, reflectir e questionar valores e costumes numa perspectiva diacrónica e sincrónica.

Um dos objectivos do artista contemporâneo, se o equacionamos em termos de expressão do seu tempo, seria criar um feedback de todas as disciplinas, dado tanto espírito como matéria, (e relação intersubjectiva /objectiva) serem plataformas diferentes da mesma realidade, como se expressa a nível teológico, no “dogma” da Trindade: unidade do ser (criador-criatura/obra) numa relação consubstancial (interacção artista-obra-observador), exemplificada a nível da encarnação onde a realidade, constante de matéria e espírito, deixa o caracter antagónico destes dois princípios, para assumir uma relação “pessoal” de interacção e intra-acção. Recorde-se, neste contexto, o prólogo do evangelho de João (“No princípio era a In-formação - o Verbo”). Teorias, mitos e dogmas sempre foram interpretados e clarificados pelas analogias da arte. É-se artífice do real e do futuro e, com o cinzel da formação, religião, música, cultura, arte, etc., todos modelam (cada um na sua plataforma em espírito de complementaridade) o ser humano e a realidade que os envolve e o forma, ao mesmo tempo.

No mesmo lugar, na mesma obra procura-se juntar e expressar uma conexão de experiências entre lugares, nomes e sítios sem que os dualismos individuais, interculturais e interdisciplinares fiquem na sombra, muito embora num processo comum de individuação que, inevitavelmente, cala as forças da selecção, da associação e da assimilação.

Na prática, constata-se uma falta de consciência da complementaridade, numa apreensão e expressão da realidade, que emperra os saberes em definições com arame farpado; saberes concorrentes que se fixam em si mesmos, agindo contra o espírito de interdisciplinaridade, numa atitude semelhante à da avestruz, que mete a cabeça debaixo da sua areia ao sentir que aquilo que a define, como identidade, a questiona sob o ponto de vista doutras perspectivas. A realidade biológica e cultural acontece num processo de osmose das suas várias dimensões e camadas, sem fixação na linearidade duma linha fronteiriça unidimensional (arame farpado). A necessidade de demarcar o outro corresponde a uma necessidade imanente de se definir a si próprio, e a uma estratégia de autoafirmação categórica unidimensional, como se observa na disputa entre arte, ciências naturais, ciências humanas, ideologias, política e religião.  De facto, cada disciplina, ao fixar-se na linha fronteiriça que a define, despreza o conteúdo de que faz parte.

Lugares, nomes e objectos de arte, com a ajuda do intelecto, tornam-se em neurónios de interligação, associação e combinação que se podem revelar em afirmação ou resistência poética, e, até mesmo, em perversão do pensamento, ou em símbolos ao serviço de dogmas estéticos e antiestéticos. Tudo é possível organizar de modo a servir uma obra, mais ou menos descritiva, em que a tela é símbolo duma natureza sempre criadora e em que até o marginal se pode revelar em fundamento de algo maior.

A arte/obra de arte, tal como a pele, constitui um delineamento claro de algo a ela subjacente mas indefinível. Continuando a analogia inicial, poderíamos definir aqui arte e artista como expressão do grito do universo a dar à luz, à semelhança do Big Bang numa cópula universal em contínuo processo de realização e consumação no produzir a obra. Por outro lado, o objecto de arte e a arte observada é como que algo reflectido num espelho mas que, no entanto, deixa antever, na sua aura, a passagem do artista pelo Olimpo. Sem esta a arte perderia a sua sacralidade, significado e motivação. Sem a tal passagem pelo Olimpo os artistas perderiam a sua auréola e o seu brilho seria parco se consagrado apenas pela criatura artesanal (povo criatura). Num acto posterior, a importância da obra de arte vem-lhe do simbólico, o que lhe seria bastante, não se escondessem por trás dela interesses muito concretos, desde o comercial ao ideológico; grupos e instituições servem-se, frequentemente, da arte para tecerem as suas metafísicas fomentadoras de dicotomias entre um laicado e os iluminados da arte e até mesmo entre as várias artes. Com mitos, dogmas e uma certa liturgia também na arte se fomenta um público rebanho laico seguidor duma fé secular definida por alguns corifeus. Este problema torna-se mais óbvio num momento em que um objecto de arte plástica não fala por si mas precisa de explicadores que lhe proporcionem o acesso. Para entrar no templo exige-se agora um porteiro!...

A força do Zeitgeist (espírito do tempo corrente) ensombra a arte. Ela é de tal forma orientada para uma globalização, pressagiada como natural, que cria automaticamente uma agressão contra tudo o que é maior e, como tal, pudesse constituir obstáculo à concretização dum pretenso espírito ainda maior, o global. Dá-se primazia ao individual e ao orgânico desde que se deixem reduzir à anonimidade (proletarização espiritual). O global (globalismo), porém, é o outro lado do biótopo e dos ecossistemas biológico-culturais mas, de momento, a desenvolver-se sem qualidade orgânica. (É sintomática, neste contexto, a tendência fatal, dos nossos multiplicadores de cultura, para negar a cultura ocidental e difamar os seus fundamentos, até mesmo à custa da afirmação duma cultura hegemónica desértica e dum mercantilismo absoluto que não reconhecem o sujeito). Também na arte se registam, frequentemente, traços hegemónicos quando esta se arroga como única capaz de curar os problemas do mundo. Problema de autoestima cega! Mais que a encenação do mundo entre arte e contemplação importa o diálogo entre mundivisões que não reduzem as imagens a meros objectos de uso do próprio rebanho.

O estímulo sensual, intelectual e espiritual poderia contestar fortemente uma atitude de espírito decadente amoral e “aideal” que reduz o momento a alegoria relativista mas se limita a questionar medrosamente a artificialidade dum mundo globalista e relativista destruidor de biótopos e ecossistemas culturais. Quer-se um pluralismo anónimo (anorgânico) revelador e confirmador dum efêmero poético e político. No limiar da realidade do dia-a-dia, alguns artistas lançam-se à descoberta de limites onde corpos sem conteúdo, sem espírito, se tornam metáforas duma realidade construída por invólucros vazios. Talvez revelem, assim, consciente ou inconscientemente, o esvaziamento de tradições e valores a sacrificar a projectos abstractos implantados por forças artificiais criadas contra uma evolução natural orgânica, que poderia, não obstante, ser assumida pelo pensamento (ideologia).

Que seria da arte se não fosse a arte de falar dela! A arte também nos quer alertar para a realidade social e para as relações de poder. Fá-lo numa tentativa de consertar rostos de cultura da praça, através de novos objectos de arte, mas apenas à semelhança do que se verifica nos trajes e enfeites (joias) da mulher ao longo dos tempos. No enfeite constatamos a diferença de figurinos que escondem atitudes próprias ou projectos de identidades. Constata-se uma evolução e, ao mesmo tempo, uma ubiquidade diacrónica e sincrónica que podemos também observar na constelação das culturas/civilizações hodiernas e diferentes modos e concepções de vida entre elas . Também no âmbito da arte falta um estudo sinótico entre o hoje e o antigamente, uim estudo comparativo (evolutivo) entre as culturas actuais, seus valores e sonhos para possibilitar uma verdadeira oficina de arte virada já não só para as fenomenologias diacrónicas mas especialmente para uma fenomenologia sincrónica. Se as víssemos como num filme de sinótica cultural sincrónica verificaríamos o ontem ainda no hoje presente (Afeganistão e Suíça, etc.) sem complexos de culpa nem culpabilização do outro. Verificaríamos grande cinismo num discurso artístico e político que, em nome dos direitos humanos critica a barbaridades da própria cultura no passado e ao mesmo tempo aceita, os costumes barbáricos de outras culturas contra os direitos humanos, em nome do respeito pelas culturas e subculturas actuais. Este é um escândalo que a arte negligencia ao fixar-se em pequenos escândalos fomentadores da excitação pública e da própria masturbação improdutiva.

Este é o hoje-amanhã, no seu intervalo abstraído, o eterno presente, onde se podem ver metáforas de História vivida e a ser vivida e, deste modo, constatar a fragilidade do Homem e das culturas numa realidade a acontecer entre facto e ficção. Ao artista fica, muitas vezes, a tarefa de registo de processos num papel de contador de histórias hoje modernas e amanhã antigas. Não chega ficar-se pelas fenomenologias culturais, falta ainda fazer-se uma análise exacta comparativa de ideologias, culturas e religiões numa perspectiva de orto-praxia concretizadora da realidade eu-tu-nós sob a estratégia dum pensar e agir a partir do nós.

Duma maneira geral, os museus não passam de inventários de arte. Como registos da memória artística, lembram, por vezes, uma viagem artística dum povo que antes vivia da ilusão da perfeição e hoje vive da ilusão da igualdade e da democracia. Os próprios museus são testemunho e afirmação duma sociedade e duma propriedade adquirida e a adquirir na medida em que, também eles, na qualidade de espaços públicos, condicionam o acesso a eles, mediante um óbolo de entrada não acessível a toda a população. Estes espaços públicos, antecâmaras do Olimpo, nas mãos de estruturas institucionais, servem um pequeno grupo de frequentadores, cimentando um estado de coisas em Estados que não conhecem povo nem população mas para quem reservam a ilusão e o Smog. Museus, mantidos pelo tesouro público, restringem a entrada neles àquele que tem poder económico para pagar um suplemento (bilhete) que o torna mais igual a si mesmo e lhe concede um estatuto identitário superior aos outros (“povo”). A arte limita-se, por vezes, a fomentar uma consciência política ecológica num público provindo, na generalidade, de camadas sociais com dinheiro que já possui essa consciência ecológica. Fala-se de liberdade, solidariedade e abertura sem prevenir nem registar que tudo se organiza na base de limites e de fronteiras e sob a lei da selecção da natureza. De facto, que seria da amiba sem a membrana?!

Nas falhas e lacunas da lógica, da vida e do direito, é gerado o progresso da superfície: ondas concêntricas geradas na superfície da realidade social. O exagero de performances, filmes, instalações, plásticos em formas visuais num mundo dominado pela visualidade pode reprimir ou condicionar outras percepções e dimensões, como se a imagem e a onda fossem as únicas realidades do espaço.


Cumplicidade entre criador observador obra e acto criativo

Talvez, uma maneira nova de fazer arte, pressuponha uma nova prática com trabalhos/obras de arte realizadas em comum por grupos de pessoas das diferentes disciplinas, como sugere Alighiero Boetti, numa tentativa de criar uma praxis de identidade múltipla. Se queremos encenar um novo mundo a estratégia será de colaboração e intercomunicação. Em Fernando pessoa temos um protótipo de artista com um eu dividido e reunido em si mesmo. Ele já se revelava com uma identidade múltipla. Nele podemos certamente verificar a tendência dum nós que também aspira ser eu. Em cada pessoa, como em cada grupo ou cultura esconde-se um processo de camadas culturais e físicas, à semelhança das camadas geológicas formadas ao longo de milénios e que se necessita consciencializar para ser colocada em interacção consciente. No grupo (nós) inclui-se o contraditório e dele surge a ipseidade e a alteridade numa relação de complementaridade de espiral ascendente a caminho do “ Omega” de Teilhard de Chardin. Seria óbvia a consciência dum propósito comum de evoluir sem se fixar nas formas criativas em moda nem nas cadeias de ideologias vigentes. Uma consciência pluridimensional é consciente de que os vários conhecimentos (ciências e práticas) continuam limitados aos seus próprios trilhos sem reconhecer ainda que o progresso e toda a perfeição (evolução) e futuro se processa em espiral num subir sem aniquilar, tudo reunindo em si, à imagem da criança que junta em si também a presença genética e cultural de seus pais e antepassados. Na criança, em cada um de nós, caminha a vida toda. Cada um é um resumo do universo segundo o próprio espelho. O empenho na realização dum futuro já presente implica o cruzamento dos vários ramos da ciência e da experiência numa fusão paciente de fé nostálgica e futurista. Todos somos processo e cruzamentos de processos.

Embora peregrinos citadinos, trazemos a província em nós. Esta continua a ser o terreno onde lançamos os alicerces da nossa casa. Na monocultura não prosperam as borboletas nem o artista. No nosso sítio pluridimensional, na nossa alma, encontram-se não só as imagens das paisagens que observamos do nosso ser, mas também as paisagens reais, o próprio campo, a que não falta o sol dum espírito iluminador e criador. O mundo é mais que as imagens ou a percepção que temos dele; ele é cidade e é campo, é matéria e é espírito, é facto e é fantasia, com entremeios de muros feitos de pedra, de ideias, de posições e de cultura, onde a luta pelo espaço e pela identidade parece fazer do muro o essencial. Na feitura do muro, e na necessidade da sua destruição e reconstrução revela-se a consciência profunda duma realidade muralhada estar chamada a transcender os próprios muros, podendo estes, em certos ramos da existência, ser reduzidos a símbolos, tal como acontece à sublimação da guerra no jogo de futebol. (A destruição dos próprios muros, porém, não se pode dar numa dinâmica de afirmação dos muros dos outros!)

Cada pessoa, cada obra, rua, catedral pode ser usada para um alargamento da consciência individual e colectiva; cada facto, cada objecto e ideia pode ser imbuído de poesia e tornar-se obra artística reveladora e concretizadora dum diálogo de metafísica e física que se interpenetram e completam, sem que o cunho individual do artista predomine. Para isso urge unir respeitosamente o saber científico ao sentir artístico e à sabedoria religiosa e verificar que o que dá consistência aos muros ideológicos e partidários é o interesse, a focagem numa parte da realidade. Também a identidade do mar se faz na interacção da identidade das gotas! Naturalmente, também o aleatório precisa do seu lugar ao lado do determinado.

O suceder da arte pode comparar-se a um estendal de imagens ventiladas pelo nosso pensamento e em que o estendal é a nossa alma/consciência individual e colectiva numa revelação diacrónica. O efémero e o factual recebem a sua consistência num jogo irónico entre real e abstracto, entre o sujeito e o objecto. Na obra fica o movimento duma vontade intencional mais ou menos consciente, num jogo de formas e gestos simbólicos, por vezes absurdos, de restauração e recuperação de vida e da reflexão sobre ela.

O medo de perder o legado do passado e o cuidado pelo futuro tornam-se presentes em obras envolvidas em processos de construção, desconstrução, reconstrução numa tarefa e intenção de possibilitar novas formas de leitura, duma realidade que só o é no acontecer. A arte regista uma contínua tentativa de simplificar a realidade antagónica equacionando-a, para isso, em verdades que a tornam acessível e destroem ao mesmo tempo. As obras artísticas, com a sua aura, testemunham a permeabilidade das fronteiras entre realidade e ficção. A arte origina-se no olhar do observador possibilitando, no seu consciente, a criação de mundos e dimensões que transcendem o dia-a-dia, numa procura doutras paisagens e doutros saberes.

O desafio contínuo de diálogo entre material e forma é possibilitado pela impossibilidade de obter uma síntese entre forma e matéria que transcenda o objecto que as enterra. Isto motiva todo o artista a procurar um arquétipo que se revele possível como aspiração no acto de dar à luz. A forma, como momento de in-formar, cativa o artista no processo criador que dá continuidade à criação e é subcutâneo à criatura do artista. Consequentemente mais que uma arte própria dum tempo há apenas uma expressão, um estilo artístico do tempo. Tal como no prólogo de João, o verbo cria tornando-se carne, num contínuo gerar gerando-se, e em que matéria e forma são momentos do acto de in-formar. O espaço de tensão entre o real e o exotérico, entre o acto de criar e o objecto criado, possibilita uma dialética intelectual já presente no acto criador. O acto de criar é luz sendo a obra a sombra dela e ao mesmo tempo, a força reminiscente de voltar/realizar luz. A obra de arte, se não reduzida a sombra petrificada, é sombra a apontar para a luz. Daí também a necessidade do artista ter de criar um “lugar” que possibilite a confusão do considerado real para assim proporcionar novos espaços, plataformas, diagramas e novas criações. Deste modo viabilizam-se diferentes mecanismos de percepção e criação de realidade. A arte torna-se no lugar do erótico em que a provisoriedade das formas dá lugar a novas dimensões para lá do tempo e do espaço possibilitando sentimentos e experiências que se contrapõem às emoções criadas pelo mundo do poder e da dominação.

Importa submergir na arte sem nos fixarmos no artista, na sua necessidade de identificação, nem na interpretação. (Estas revelariam apenas parte da nossa identidade!). As obras, como composições de textos, imagens, formas, materiais e estruturas possibilitam novos lugares e estadias que se podem tornar nossos espaços e até alargar as nossas perspectivas no sentido duma orto-praxia tanto linear como alinear.

Vive-se na dimensão das metáforas entre símbolos religiosos, científicos, artísticos e o poder político. A futilidade do esforço para chegar a uma verdade, que se perde nos contextos, fomenta uma realidade de meias verdades, em vez de apontar para o processo eterno de procura/realização da verdade/realidade. Também no coração da Documenta - no Museu Fredericianum – se configuram formas e sombras metafísicas apoiadas num estoque de ideias da ciência e alegorias da religião. Nele encontra-se uma sala, sem nada, onde o visitante é confrontado com o vazio e o silêncio. Este espaço de reflexão criativa estimula os visitantes a questionar, indirectamente, uma sociedade linear stressante. É mais que óbvia a necessidade de criar lugar do silêncio não só na igreja e na arte mas a nível individual, institucional e social.

A indústria da arte comercializada encontra-se ao serviço do capitalismo cognitivo que se distancia da natureza em nichos dum abstrato alérgico  à vida orgânica (Arte de conceito, Concept Art ) e em serviço da visualidade , muitas vezes direccionada para utopias negativas negadoras do Homem. Serve-se um macro-sistema de sistemas anónimos e alienantes! Numa época em que o mercado e os meios de comunicação social tudo instrumentalizam. Também a arte precisa de críticos como o artista Francesco Matarrese que nega o objecto artístico resultante dum trabalho abstrato (Um momento de reflexão!).

No entanto, também uma tela vazia viabiliza um destinatário e traz uma mensagem encoberta a um mundo inundado por imagens mudas em que um saber de altos voos já não consegue aterrar. Os fenómenos e os interesses cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas. Os limites tornam-se lugares que salientam as contradições da condição humana. No tapete do ser, em que nos movimentamos, nada há certo, tudo é provável; também o tapete em que andamos faz parte de nós e do movimento que somos. Se a filosofia se limita à pergunta de como é possível o real e se fica pelos condicionalismos e possibilidades desse real, não sai do comboio do pensamento que se move em trilhos e potencialidades delimitadoras do próprio pensamento. Então também a filosofia é uma arte porque reconduz e orienta a capacidade para um determinado momento do real. Por outro lado, também a ciência só pode descrever o provável, como descobriu a física quântica; cem anos depois, ainda se continua a acreditar no Weltbild (imagem do mundo ou mundivisão) determinista do séc. XIX que pensava que o mundo funcionava segundo regras exactas mensuráveis.

Fontes de inspiração criam estruturas narrativas, pinturas da história com restos dum futuro enterrado numa realidade feita de desmoronamento e reconstrução.

Ah! Na vida aqui ao lado, vive, lado a lado, na arrecadação da realidade, a vida a arder num processo de materialização e de desmaterialização. Num ser de objectos transformados pelas chamas do pensamento, a dor dá à luz novos seres num mudar contínuo de formas e visões. De facto, a diferença entre o papel higiénico e a nota de banco, está na tinta, o resto é uma questão de crédito. O nosso destino é dar forma ao formado em diferentes dimensões na partilha do acto de in-formar. Somos sonâmbulos no combate à noite da vida em procura da luz; quem não resigna procura, no relevo que dá à existência, deixar a silhueta da sua conotação, na sequência dum acto submisso de dar continuidade à vida no seguimento dum chamamento que se expressa na própria vocação.

Uma história, de perda da herança (recordação) e dos valores humanos, virada para um saudosismo arcaico que realça as forças bravias nela submersas, como se o brilho da cultura ocidental fosse algo extraterrestre que justifique toda a agressão dos guetos ou dos apóstolos do relativismo, expressa e conduz a um estado de abdicação. Consequentemente, um certo culto do exótico revela-se, contraditoriamente, contra o próprio ruralismo. Os espíritos dos aborígenes insurgem-se nesse culto contra a própria evolução. Às sombras da cultura ocidental são contrapostos os soalheiros doutras culturas e subculturas como se o mundo das culturas fosse unidimensional, como se, a cada cultura, não estivessem subjacentes a mesmas forças e leis naturais/culturais com uma representação teatral correspondente à própria vontade de se autoafirmar no tempo propício ou de se negar. A vigência duma ética de recordação negativa justificadora dum criticismo discriminador é sintoma de decadência. Arte, tal como as civilizações, precisa dos seus lugares altos na companhia dos seus templos. Sem intervir contra estranhos, a arte ocidental precisa de se reunir para se creditar e não abdicar dos valores que a tornaram um luzeiro universal!

Obras e culturas são colocadas em conexões ilegítimas como se um determinado quadro fosse responsável pelas tintas que se encontram enquadradas em circunstâncias doutros lugares e tempos. (Responsabilizam-se os outros para se desobrigar a si mesmo ou para se colocar no pedestal da moral.) Os espíritos dos mortos continuam a perseguir-nos como se a morte não fosse vida também. Critica-se o passado e a diferença, não para se ser mas apenas para subsistir. Na escolha dos factos e das obras que o artista apresenta, ele procura revelar-se nelas e ao mesmo tempo redescobrir-se na reacção do observador (público). Instituições e Exposições como a Documentas, Bienais e que mais, dão valor e significado às obras e artistas que confirmam as próprias posições e configurações da sua mundivisão. Só é pena que o seu espírito crítico não se reconheça como mero momento da própria necessidade de identificação e auto-afirmação, muitas vezes à custa do resto. A sua realização é importante, também porque constitui uma possibilidade de autoanálise e questionação possibilitadora de delineações mais alargadas. Os fenómenos cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas.

A arte, entre outras encenações, é mais uma visão do real, num cenário de fundo indefinido e aberto. Também a realidade é imagem fenomenal doutras dimensões. Tudo imagens da imagem dum real num palco de imagens formado também por nós. A vida é símbolo e vive dele num mítico acontecer que continuamente recria a sensação de chegar a um real que a própria experiência cria. No abstrair da abstracção talvez se chegue á imagem dum real para lá da percepção e do dizível, na sarça-ardente do “sou o que sou” no tornar-me.

António da Cunha Duarte Justo

PS  Escrevi este ensaio na perspectiva duma filosofia da “ARCÁDIA – Associação de Arte e Cultura em Diálogo”. www.arcadia-portugal.com
© António da Cunha Duarte Justo

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