domingo, 17 de agosto de 2025

LIDERANÇA ENTRE EGOISMO E ALTRUÍSMO

 

Liderar é caminhar na corda bamba entre o eu que se afirma e o nós que se constrói

 

Do eterno diálogo entre o “eu” e o “nós”  (entre o eu e as circunstâncias) nasce a tensão que marca toda a vida em sociedade: a relação entre quem dirige e quem segue, entre o indivíduo que se afirma e a comunidade que procura dar consistência ao caminho. É dessa tensão que surgem os líderes, chamados a representar o coletivo perante cada pessoa, e a oferecer uma visão orientadora que tanto pode abrir horizontes como impor limites...

A liderança nunca é neutra...

Desde que o ser humano tomou consciência de si - como expresso no relato bíblico de Adão e Eva – nasceu uma tensão inevitável: afirmar-se sem perder o vínculo ao coletivo (a Deus). Daí brotam a comunidade, a história e as instituições que tanto nos apoiam como nos condicionam...

A História raramente recorda o povo anónimo e os hesitantes. Exalta a memória da ousadia dos vencedores e o arrojo dos que avançam. Daí a tentação de acreditar que egoísmo e temeridade são virtudes sustentáveis...

O olhar humano procura sempre uma luz exterior. Por isso deixamo-nos guiar, com frequência, por aqueles que conseguem a dianteira e assumem o papel de líderes...

Liderar exige coragem para romper barreiras e ousadia para inovar. Mas um verdadeiro líder sabe também parar, escutar e deixar que a mudança respire. Liderança não é apenas avanço, é também discernimento: o egoísta teme perder, o altruísta teme não servir, mas só o sábio reconhece que nenhum deles pode liderar sozinho.

Hannah Arendt lembrava: “O poder só é efetivo enquanto os homens se mantêm unidos.” O equilíbrio entre afirmação pessoal e serviço ao coletivo é o que transforma autoridade em liderança genuína.

O líder, que seja uma personalidade, sabe quando quebrar e quando construir; sabe que a dúvida criativa ou até o fracasso fazem parte do processo e não o invalida...

Não é bom demonizar o egoísmo, pintado-o como vício absoluto. Há um “egoísmo saudável” que nasce do autoconhecimento e da autopreservação e torna o altruísmo sustentável...

Talvez a grandeza da liderança esteja justamente aqui: na consciência de que a poesia da vida não acontece nas ordens nem nas revoluções, mas nos intervalos entre elas...

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10252

 

UM NOVO TRATADO DE TORDESILHAS?

 

A Geopolítica da Mentira e a Guerra como Negócio

 

... O recente encontro entre Putin e Trump não é um mero acaso diplomático: é mais um movimento num tabuleiro geopolítico onde a guerra, o consumismo e a pressão social servem para distrair as massas do essencial que é o poder e o controle.

Os dois blocos - Rússia de um lado e os EUA  e a NATO do outro - alimentam-se da mentira...

A Ucrânia é o campo de batalha onde se joga muito mais do que território, ela é a luta pela hegemonia global...

Estamos perante um novo Tratado de Tordesilhas, onde as potências redesenham o planeta conforme a sua conveniência. Tal como Espanha e Portugal dividiram o mundo no século XV, hoje EUA, China, Rússia e Europa disputam esferas de influência... a Rússia e o Ocidente travam uma guerra de narrativas, onde a soberania dos Estados é secundária perante os interesses dos grandes blocos. Ao contrário do passado, a guerra não é apenas territorial é também económica, tecnológica e ideológica...

Enquanto o filósofo Immanuel Kant sonhava com uma paz perpétua, o pensamento de Leo Strauss (e dos seus discípulos neoconservadores como Paul Wolfowitz e Robert Kagan) domina a política actual, segundo a qual a paz leva à decadência, a guerra mantém a ordem...

Por seu lado, Noam Chomsky denuncia que as revoluções coloridas (como a Laranja na Ucrânia, 2004) foram operações de mudança de regime apoiadas pelo Ocidente...

A lei moral é vista como instrumento de controle, não de ética. E, segundo esta lógica darwinista, os fortes devem dominar os fracos...

Os media europeus e norte-americanos, seguindo a lógica da "Manufacturing Consent" (como definido por Edward S. Herman e Noam Chomsky), transformaram Putin no novo Hitler, porque uma população assustada aceita melhor a guerra...

A Ucrânia é o pretexto, mas o verdadeiro objectivo é enfraquecer a Rússia, conter a China e garantir que o dólar e o complexo militar-industrial continuem a dominar o mundo...

Torna-se muito difícil não se deixar enganar. Por trás das bandeiras, dos discursos moralistas e das "causas justas", há sempre interesses obscuros. A guerra na Ucrânia não é sobre liberdade é sobre poder, como demonstra Christopher Layne ("The Peace of Illusions"). O encontro Putin-Trump não é sobre diplomacia é sobre realinhamentos estratégicos e negócios...

Os líderes da União Europeia não só perderam o rumo da Europa, traíram-na. Submissos, ajoelham-se perante os interesses bélicos e financeiros de Washington, esvaziando o continente não apenas geograficamente, mas também cultural e espiritualmente. Enquanto enterram o legado humanista europeu, transformam-nos em vassalos do projeto imperial americano, condenando a Europa a ser mero apêndice na nova ordem multipolar.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10250

sábado, 16 de agosto de 2025

POLÍTICA NÃO É SÓ LUTA TEM TAMBÉM LUGAR PARA A POESIA DO ENCONTRO

 

A Democracia perde quando se reduz a Trincheiras

 

.... Quando tudo se converte em arma, desaparece o espaço para a partilha. Na arena partidária, há quem se porte como cão de guarda feroz, sem perceber que até as hienas, depois de se fartarem, permitem que outros se alimentem da presa.

Octavio Paz lembrava que “o poema é um espaço de reconciliação entre opostos”. A poesia pode ser ponte. A vida também. A política, pelo contrário, insiste em dividir para poder dominar: “bem” contra “mal”, reduzindo a multiplicidade dos factores apenas a falso-errado...

Até o voto sofre com essa lógica belicista. O slogan “o voto é a arma do cidadão” reduz a participação democrática a um gesto de guerra. Mas o eleitor não é mercenário. Como dizia Rui Barbosa, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. Mutatis mutandis, o mesmo vale para uma política reduzida a trincheiras: nela, não há escapatória possível; deste mal sofre principalmente quem aspira ao poder pelo poder.

O voto não é bala. É ferramenta de construção coletiva. Alexis de Tocqueville já advertia: “a saúde de uma democracia depende da qualidade das funções privadas” ...

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10248

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

A SENHORA DA ASSUNÇÃO É SIMBOLO RELIGIOSO E EXISTENCIAL DA DIGNIDADE DA MULHER

... Maria, assunta aos céus, não é apenas uma figura passiva da graça, mas a realização plena do destino humano. A sua assunção é a antítese da queda original: se Eva, símbolo da humanidade decaída, trouxe a ruptura, Maria, a "nova Eva", traz a reconciliação e a vitória da graça...

Aqui, a piedade popular intui algo que a teologia aprofunda: o corpo humano e em particular o corpo feminino, tantas vezes reduzido a objeto ou humilhado pela história é templo do Espírito e sinal de transfiguração. A Assunção proclama que a matéria, longe de ser desprezada, está chamada à glória...

Ao rezar “intercede por nós, para que sejamos dignos da mesma glória”, a comunidade não contempla uma rainha distante, mas reconhece em Maria a irmã e mãe que percorreu o caminho da dor e agora resplandece como esperança...

Numa cultura que ainda discute o lugar da mulher, a Assunção ergue-se como contra-símbolo: a feminilidade não é fragilidade, mas lugar teológico da revelação de Deus. Em Maria, o divino e o humano unem-se de modo definitivo, e a sua glorificação é resposta divina a toda humilhação sofrida pelas mulheres ao longo da história. O seu corpo glorioso proclama: “Aqui está a vossa dignidade. Aqui está o que fostes criadas para ser”...

Esta mensagem, quer a nível simbólico quer místico, deveria ser integrada e respeitada por toda a humanidade, porque na sua singeleza carrega uma força subversiva. Na Assunção, o povo de Deus reconhece o próprio destino. Ao glorificar Maria, glorifica a humanidade chamada à plenitude...

Nossa Senhora da Assunção, mulher forte e gloriosa, é ao mesmo tempo ensinamento e apelo: em cada rosto feminino resplandece algo da mulher simples e divina que, como nova Eva, nos abriu o caminho da vida verdadeira no novo Adão, Cristo.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Texto completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10238

PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA MANTEM O SOCIALISMO COMO META

 

A Prática política e o Artigo 288 da CRP salvaguardam a "Democracia pluralista “

 

O preâmbulo da CRP reflete o contexto revolucionário de 1975/76, marcado pela Guerra Fria e pela influência de forças políticas socialistas e comunistas no processo pós-25 de Abril.

No entanto, Portugal e o mundo mudaram radicalmente desde então com a queda do Muro de Berlim (1989), o fim da URSS (1991) e a integração de Portugal na UE (1986) alteraram-se as prioridades políticas e económicas do país...

É verdade que o Preâmbulo não tem força normativa, porém, juridicamente, tem um valor declarativo e interpretativo, mas não é diretamente aplicável como uma norma constitucional vinculativa.

No preâmbulo em vez de “socialismo” deveria estar “justiça social” o que se tornaria mais compatível com as democracias sociais europeias...

O artigo 2.º da CRP (que define os princípios fundamentais) foi alterado para remover a menção ao socialismo, refletindo assim um consenso mais amplo.

É verdade que a CRP é um documento plural e não dogmático, mas a referência no prólogo parece justificar um certo messianismo socialista que se observa em muitos dos seus protagonistas propensos a defender o socialismo histórico em debates ideológicos presos ainda no século XX...

Embora as revisões constitucionais e as políticas públicas tenham mostrado que o objetivo real é um Estado Social Democrata e não um sistema de planificação centralizada, a mudança do termo socialismo como meta seria mais adequado e menos ideológico se em vez de socialismo estivesse justiça social, como seria dado em documento tão importante...

O artigo 288.º da CRP, que proíbe revisões que contrariem a "democracia pluralista “já foi um passo decisivo que protege os valores fundamentais fugindo à necessidade de fixação em ideologias específicas.

António da Cunha Duarte Justo

Artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10235

 

 

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A CONFISSÃO COMO INSTRUMENTO DE INDIVIDUALIZAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA

 

A Transformação do Mundo começa na Revolução silenciosa da Consciência

 

Neste artigo, procurarei analisar como a Igreja, ao confrontar-se com as sociedades germânicas baseadas em lealdades coletivas, instrumentalizou a confissão individual como meio de responsabilização pessoal, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência autónoma na Europa e para a autonomia das consciências individuais, criando assim a base para todas as aspirações emancipatórias...

O processo de individualização da consciência humana, isto é, a emergência do eu autónomo em relação ao nós coletivo (à comunidade), constitui uma das transformações mais profundas e decisivas na história da mentalidade europeia e na formatação da sua jurisprudência, antropologia e sociologia. Esse desenvolvimento foi obra sobretudo da teologia e da filosofia seguida da política, sendo a Igreja Católica o principal agente na promoção da interioridade e da responsabilidade moral individual, que pouco a pouco conduz à individualidade de consciência.

Um dos mecanismos mais revolucionários e actuantes nesse processo foi a evolução do sacramento da Penitência, que passou de um acto litúrgico comunitário feito no início da missa, para uma confissão auricular privada...

A lealdade ao chefe e aos costumes ancestrais era o fundamento ético, não deixando espaço para uma noção de responsabilidade pessoal nem de pecado como ofenso pessoal a uma ordem que superasse de maneira transcendente a ordem dos costumes ou da chefia. A honra e a vergonha eram reguladas externamente, pela comunidade, e não por um exame de consciência interno...

A Igreja, portanto, enfrentou o desafio de incutir uma moral baseada na responsabilidade individual em culturas que não concebiam o indivíduo fora do grupo...

O Penitencial de São Columbano (séc. VI) estabeleceu uma abordagem personalizada do pecado, no qual o penitente, em diálogo íntimo com o sacerdote, se confrontava com as suas faltas de maneira individualizada perante Deus...

A alma tornava-se no local de encontro com o divino, onde a consciência individual se formava em paralelo com a consciência social...

O historiador Michel Foucault constatou em “A História da Sexualidade”, que a confissão cristã foi uma das primeiras tecnologias do eu a exigir que o indivíduo verbalizasse os seus pensamentos mais íntimos, criando uma subjetividade interiorizada (1).

O surgir da Ipseidade (mesmidade do eu): O Eu como Essência diante do Divino...

Essa dinâmica teve três consequências fundamentais decisivas: alcança a soberania da consciência individual. O indivíduo passou a ser julgado não apenas pelas suas ações externas, mas também pelas suas intenções internas. Dá-se também a relativização das instituições humanas pois se a alma respondia diretamente a Deus, então nenhuma autoridade terrena, nem mesmo o grupo tribal, podia reivindicar soberania absoluta sobre ela. Na sequência acentua-se a liberdade pessoal porque o indivíduo, ao reconhecer-se como sujeito moral autónomo, ganhou as bases para um processo emancipatório que se expressou de maneira relevante no protestantismo e culminaria, séculos depois, no Iluminismo e na noção de direitos humanos...

A prática da confissão individual foi, assim, um dos grandes fatores de individualização na Europa medieval, tornando-se como o ventre progenitor do eu que deixa de ser mera sombra da comunidade...

A confissão, nesse sentido, não foi apenas um sacramento religioso, mas um ato revolucionário que ajudou a forjar o eu ocidental (a consciência individual e cultural-social) ...

Formar consciências livres e soberanas era a sua meta. Por isso, mais do que confiar apenas na razão que disseca e argumenta, acolheu a intuição, esse olhar interior que não se perde em utopias de salvação universal, mas se ancora na certeza de que Deus habita no mais íntimo de cada ser humano, como uma gene divina e a salvação individual e universal começa por aí. Só Ele conhece o nosso ser até ao fundo, e o verdadeiro saber é a aventura de descobrir-se a si próprio. A transformação social de qualidade, não brota de decretos ou sistemas, mas da lenta e silenciosa evolução da consciência individual....

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Texto completo e notas em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10230

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O APÓSTOLO DOS GERMÂNICOS E O CARVALHO QUE DEU LUGAR À IGREJA

 

A Confissão como Instrumento de Individualização humana

Diante desta poderosa estátua em Fritzlar, senti o peso da história: São Bonifácio (672–754), o "Apóstolo dos Germânicos", não só derrubou o carvalho sagrado de Donar (Thor), que os germánicos adoravam. Com a sua madeira, Bonifácio construiu uma capela, simbolizando a afirmação do Cristianismo sobre o paganismo. A estátua aqui retrata esse momento: ele segura um machado, sobre o tronco do carvalho e ao lado, uma árvore estilizada sustenta uma igreja, como  metáfora de como a fé se enraizou na região.

A sua acção também enfrentou a resistência feroz de povos que viviam sob a lei coletiva dos chefes tribais.

A sua morte foi trágica, foi martirizado por guerreiros frísios em 754, mas o seu sangue, como diz a tradição, tornou-se "semente de cristãos". A capela construída com a madeira do carvalho (onde hoje está a Catedral de Fritzlar) simboliza essa vitória: a fé que brotou onde a força pagã se dobrou.

Mas a conversão não foi só sobre destruir símbolos. Os germânicos, acostumados a obedecer aos líderes, resistiam à ideia de uma fé pessoal. A Igreja, empenhada no desenvolvimento da individualização humana, utilizou, então, a confissão auricular, que se resume a um acto íntimo entre o crente e Deus, para cultivar algo revolucionário: a individualidade da consciência. Era um passo além da lealdade tribal; era a alma diante do divino e que se colocava soberana acima de qualquer instituição humana.

Esta estátua captura tudo: o machado na mão, o tronco do carvalho vencido, e a árvore que sustenta a Igreja. Metal e pedra contando uma história de coragem, sacrifício e transformação.

Aqui, onde Bonifácio plantou a cruz, nasceu uma nova Europa.

Por um lado, Carlos Magno a nível cultural e político e por outro Bonifácio com as ordens religiosas foram os grandes impulsionadores e criadores da Europa.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10227

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

QUINTA OUTEIRO DA LUZ NA BRANCA - AVEIRO

 

O Lugar onde a Alma respira e repousa

 

Quero guardar na memória a paisagem vista das alturas da Branca: o crepúsculo dourado, o cintilar das estrelas e o bailado suave das luzes na noite.

Das varandas da Quinta Outeiro da Luz (1), o olhar perde-se num horizonte marítimo que se estende de Espinho até para além de Aveiro, uma vastidão de mar e céu que toca o interior da pessoa com a delicadeza de um sussurro divino.

Cada pôr-do-sol é um versículo do livro da Criação: uma revelação única, irrepetível, como se o cosmos se abrisse em cor e silêncio para nos dizer algo que nenhuma linguagem humana ousa traduzir. Aqui, como em lugares especiais de Portugal, a paisagem revela-se música no coração.

Ali, ao entardecer, após um dia de lides cumpridas, a contemplação não é fuga, mas mergulho.

Não é o mundo que se abandona, mas sim o mundo que se revela na sua nudez plena, no seu erotismo sagrado, um apelo a olharmos para além de nós mesmos.

À noite, sob o lençol das estrelas, o peito recolhe o universo. Os astros cintilam como seios femininos a roçar a alma, contando histórias de vidas que arderam em pensamento e paixão, numa mesma voz unida de filósofos, santos, trabalhadores, buscadores do eros e peregrinos do Espírito.

Cada estrela é uma memória. Cada brisa é um sopro de quem já passou.

E no repouso e silêncio, tudo vive, mais intensamente que no alarido do dia.

A natureza, aqui, não é cenário, é templo da alma e do corpo.

O mar, o vento, o crepúsculo e as constelações convergem para dentro do ser, insuflando-o como pulmão cósmico.

Há uma espiritualidade que nasce do contacto com o real, não como ideia, mas como carne vibrante.

O Eros, aqui, não é apenas desejo, é ligação, pertença, escuta.

É no silêncio contemplativo que o ser reencontra a sua morada.

Não há doutrina mais profunda do que esta: estar diante do mundo com olhos nus, peito aberto e alma porosa.

A vida, enfim, respira-se, enfiando-se por nós dentro.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10220

(1) https://quinta-vacations.com/pt/home-portugues/

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O PÊNDULO E A PRAÇA

 

Parábola iniciática

 

Havia, na velha cidade de Bruxelas, um grande relógio no alto da torre da praça. O seu pêndulo, pesado e dourado, oscilava com precisão, marcando as horas que os poderosos decretavam. O Relojoeiro, homem de mãos finas e discurso polido, ajustava os seus mecanismos com ar solene, afirmando que só ele conhecia o ritmo certo do tempo.

Mas o povo, em baixo, sentia nas costas a sombra e o peso daqueles ponteiros. Alguns murmuravam que o relógio atrasava, outros que adiantava e os mais ousados diziam que marcava apenas a hora que convinha ao Relojoeiro.

Um dia, um vento forte soprou das ruas estreitas, trazendo consigo vozes desconhecidas. Eram os Andarilhos, homens e mulheres de passos inquietos, que não se curvavam ao tique-taque da torre. Gritavam que o relógio estava quebrado, que o seu ritmo não era o de todos, mas apenas o dos que o controlavam.

O Relojoeiro, perturbado, chamou os Guardiões do Mecanismo. "Estes ventos são perigosos," advertiu. "Se deixarmos que soprem livremente, o pêndulo perderá o seu curso, e o caos instalar-se-á!" E assim, começaram a amarrar cordas ao pêndulo, a vedar janelas, a calar bocas, tudo em nome da ordem e da democracia.

Mas o vento não se deu por vencido. Soprava mais forte nas frestas, levando consigo o pó das promessas esquecidas. E o povo, antes silencioso, começou a sentir que seu rosto começava a ser tocado por aquela brisa.

Ninguém sabia, ainda, se o vento traria tempestade ou renovação. Mas uma coisa era certa: Nenhum relógio governa o vento.

 

No Palco da Democracia 

Na praça pública, onde o sol se escondia atrás de névoas de retórica, erguia-se um palco de sombras e gritos. De um lado, os Senhores do Arco do Poder, trajando palavras polidas como fatos de alfaiate, acenando ao povo com promessas tão leves como o papel em que eram escritas. Do outro, os Pretendentes ao Poder, rostos inflamados de indignação, brandindo frases afiadas como foices, prontos a ceifar o trigo do campo alheio. E no meio, a multidão, um corpo cansado, espremido entre a bigorna do controlo e o martelo da revolta.

O populismo de cima descia em cascata, um rio de verniz institucional, enquanto o de baixo jorrava das bocas dos descontentes, ácido e espumante. Os primeiros falavam em ordem, os segundos em justiça, ambos, porém, pareciam concordar em uma coisa: o povo era mero espectador de seu próprio drama.

 

A Máscara e o Espelho

A esquerda outrora insurgente, agora entronizada, fitava-se no espelho da história e não reconhecia o próprio rosto. Onde antes via rebeldia, agora via apenas gestão. Onde antes havia fogo, agora havia protocolo. E quando os ventos sopravam contra ela, reagia não com argumentos, mas com os usados espantalhos, fascismo, retrocesso, ameaça à democracia, palavras gastas como moedas falsas.

"Como ousam criticar-nos?", bradavam, confundindo discordância com traição. O povo, que outrora lhes dera voz, agora era tratado como criança caprichosa, a quem se devia calar com paternalismo ou ameaçar com o dedo.

Enquanto isso, a direita conservadora, de gravata bem apertada, murmurava sobre tradição e estabilidade, mas seus olhos cobiçavam o mesmo poder que condenavam nos outros. E nos extremos, os profetas apocalípticos, de esquerda e direita, semeavam ventos que colheriam tempestades alheias.

 

O Teatro das Sombras

Os meios de comunicação, fiéis cães de guarda do status quo, ladravam em uníssono contra os bárbaros das redes sociais, esses novos gladiadores que ousavam desafiar o circo estabelecido. Cada manchete era um golpe, cada editorial um veredicto. "Populismo!", gritavam, como se a palavra fosse um feitiço capaz de exorcizar o descontentamento.

Mas o povo já não engolia as narrativas como outrora. Nas entrelinhas das notícias, percebiam o cheiro do medo, o medo dos que temiam perder o monopólio da indignação.

 

O Pêndulo democrático oscila

A democracia, esse pêndulo eterno, balançava entre o medo do novo e o cansaço do velho. Umas vezes para a esquerda, outras vezes para a direita, mas nunca parava no centro, pois o centro era uma ilusão, um lugar onde ninguém vivia, apenas fingia governar.

Os poderosos, assustados com o movimento, tentavam amarrar o pêndulo com leis e decretos, apertando o cerco sobre a dissidência. "Em defesa da democracia!", diziam. "Pela ordem!" Mas o povo, cada vez mais encurralado, percebia que o discurso era só pelo poder. Sempre pelo poder.

 

A Última Metáfora

No fim, restava apenas uma alegoria: a da casa comum. A esquerda, que se julgara arquiteta exclusiva da moradia, agora via surgir inquilinos indesejados, gente que não aceitava os seus planos, que queria reformar as paredes, mudar os móveis. Mas, a esquerda, em vez de debater, trancava as portas e gritava "incêndio!" A sua casa era uma prisão.

A verdade é que o fogo verdadeiro não estava nos críticos nem nos discursos, ele estava na lenha seca acumulada de décadas de promessas queimadas.

E assim, entre o populismo de cima e o de baixo, entre os que mandavam e os que aspiravam mandar, o povo seguia, sem réstia de sol, mas também sem deixar de olhar para o horizonte.

Porque o pêndulo, cedo ou tarde, sempre volta. E quando voltar, quem estará lá para o segurar?

António da Cunha Duarte Justo

©Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10216

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

ENTRE AS PALAVRAS E O ÉDEN

 Não leias só com os olhos da regra,

que até a letra mais santa

pode ser gaiola se a alma não voa nela.

 

Olha, as Escrituras são janelas,

não paredes;

são asas,

não sepulturas de ideias feitas.

 

Não te expulses do Éden

por obedeceres a agendas alheias

Deus pôs o jardim em ti,

e nenhum anjo com espada

te impede de voltar,

só o teu próprio medo

de comer o fruto

que já te foi dado.

 

Em cada um, Deus desvela

um céu por detrás da nuvem,

onde o sonho é a primeira estrela,

a semente da própria obra.

 

António CD Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10207

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O PERFECCIONISMO CRIADOR DE ANGÚSTIA E INSATISFAÇÃO


Um Exame de Consciência para Elites-Governantes e Povo

 

A sociedade ocidental, doente do progresso, trocou a alma pela máquina, a virtude pelo algoritmo, e a transcendência pelo like. O resultado à vista é uma epidemia de vazios e cada vez mais doenças na sociedade ocidental de maneira a poder-se falar de um sistema que adoece o corpo e a mente dos cidadãos. 

A Morte da Perfeição Virtuosa e o Nascimento do Perfeccionismo Funcional 

A tradição clássica e cristã entendia a perfeição como uma harmonia entre corpo e alma, uma busca ética que elevava o indivíduo e a comunidade. O ser humano era visto como um microcosmo, a ponte entre o finito e o infinito, não como peça substituível num sistema mecanicista e tecnocrático.

Hoje, o perfeccionismo não é virtude, é exigência de funcionalidade. O psicólogo Thomas Curran revela que as tendências perfeccionistas aumentaram 60% desde 1990, não por aspiração interior, mas por pressão social. A sociedade não quer seres humanos completos, quer operários optimizados.

Abandonamos os sábios para fabricar técnicos. Renunciamos à felicidade em troca do gozo, o breve prazer do atrito entre engrenagens.

A Doença da Alma numa Sociedade Superficial

A Alemanha, símbolo da eficiência europeia, enfrenta uma crise de saúde mental: os custos com terapia psicológica disparam, enquanto outros tratamentos médicos são negligenciados. O Ocidente trata sintomas, não causas, porque não ousa questionar o estilo de vida que os produz.

Factos brutais: 1 em cada 4 europeus sofre de perturbações mentais (OMS) e a depressão será a principal causa de incapacidade até 2030.

Os jovens são os mais afetados: 40% da Geração Z relata ansiedade crónica como constata a American Psychological Association.

A espiritualidade e a religião, outrora pilares da resiliência psicológica, são ridicularizadas como "ópio do povo". Mas o que oferecemos em troca? Redes sociais que vendem conexão falsa, likes que substituem amor próprio, e uma economia que consome almas.

A Ditadura do Ego Auto-Optimizado

O neoliberalismo e o socialismo materialista uniram-se para esvaziar o transcendente. Como resultado surgiu uma cultura do egoísmo consagrado: tínhamos antes a devoção a valores superiores (Deus, virtude, comunidade); temos agora a auto-obsessão de cada um se torna na melhor versão de si mesmo, ao serviço do sistema.

Mas o eu sozinho torna-se numa prisão. O ser humano não é uma mónada autossuficiente; ele precisa de raízes, sentido, e algo maior que si. Sem isso, a ansiedade e a depressão são inevitáveis e mais ainda quando o próprio Estado perde e desmotiva sentido de missão.

A felicidade vem de dentro, mas vendem-na apregoando que está nos bens, nos likes, no sucesso vazio. O gozo é passageiro; a angústia, crónica. Trata-se de procurar gozo e felicidade sem que uma exclua a outra.

A Elite que nos desumaniza 

O saber e o poder concentram-se nas mãos de poucos: bancos, tecnocratas, gigantes digitais. Esta elite não quer cidadãos, quer consumidores obedientes.

A religião era um freio ético ao poder. Agora o poder encontra-se sem quem o controle e o mercado é quem mais ordena e dita a moral.

A alta finança encontra-se em luta contra a baixa finança e contra as empresas locais que sistematicamente destroem. As cúpulas ideológicas e económicas querem ditar sozinhas a vontade das pessoas e o futuro dos povos. Disto não se fala porque são os factores que se encontram por trás dos diferentes regimes como a história nos tem ensinado!...

Temos assim uma sociedade sem misericórdia, onde quem falha é descartado. Os fracos não são ajudados porque são ineficientes.

Reencantar a Vida: Um Apelo à Revolução Interior

Se queremos sobreviver como civilização, precisamos de: rejeitar o perfeccionismo tóxico (que exige perfeição, mas nega a profundidade); de restaurar o diálogo entre corpo e alma (a ciência sem espiritualidade é mutilada e mutila sem dor pelas populações); de desafiar a tirania do mercado sobre a consciência pois o humano não é um recurso.

A Europa está em falência cultural porque trocaram Deus pelo PIB, a alma por algoritmos, e a comunidade por solidão digital. Se não reagirmos, seremos escravos de um sistema que nos odeia.

Temos a alternativa: ou reencontramos o sagrado na vida, ou afundamo-nos na angústia de um mundo sem sentido.

Por amor também às próximas gerações temos que nos tornar críticos ao ouvir o clamor mudo dos povos, na consciência que a verdade dói, mas liberta. A alternativa é continuarmos doentes, sozinhos, e cada vez mais vazios.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10189

 

sábado, 2 de agosto de 2025

FOGOS DEVIDOS AO FACILITISMO E À SISTÉMICA FALTA DE GOVERNANÇÃO

 

Teorias sobre Incendiários dominam o Debate desculpando o Facilitismo e o Desinteresse partidário

 

A repetição anual dos incêndios e a narrativa dominante sobre incendiários misteriosos ou interesses económicos obscuros, muitas vezes, servem como explicação simplista para um problema muito mais complexo.

Portugal é o país da Europa que mais arde devido a uma combinação de fatores naturais, humanos e de gestão territorial. Por um lado, as condições climáticas e geográficas como o clima mediterrânico com verões quentes e secos, com temperaturas frequentemente acima dos 30°C e baixa humidade, criam condições ideais para incêndios; por outro lado a vegetação seca com muitas áreas de florestas densas com espécies altamente inflamáveis, como eucaliptos, pinheiros e mato , que ardem facilmente, tudo isto acrescido dos ventos fortes que favorecem a rápida propagação das chamas, são factores básicos da catástrofe que se repete.

A estes factores vem juntar-se o abandono rural e mudanças no uso do solo: o despovoamento do interior levou ao abandono de terras agrícolas, permitindo o crescimento descontrolado de vegetação seca; a falta de vegetação variada mista e a monocultura do eucalipto, altamente inflamável, domina grandes áreas devido à sua rentabilidade para a indústria de celulose.

Uma outra razão é a falta de gestão florestal eficiente como falta de limpeza dos montes: muitas zonas não têm manutenção regular (como desbaste e limpeza de mato), acumulando material combustível; uma política virada só para os centros urbanos e para a região litoral  tem descurado gravemente as regiões agrícolas e florestais o que conduz a uma legislação insuficiente porque embora existam leis, a fiscalização e aplicação são fracas, especialmente em terrenos privados abandonados.

A isto junta-se ainda o comportamento humano e incêndios criminosos: agricultores usam fogo para limpar terrenos, mas muitas vezes perdem o controlo e Portugal também tem uma das maiores taxas de incêndios criminosos da Europa, muitas vezes ligados a conflitos fundiários, seguros e passagem de terrenos florestais/agrícolas para urbanos.

Dificuldades no Combate aos Incêndios

Um grande obstáculo é o terreno acidentado com áreas de difícil acesso para os bombeiros. Por outro lado, a política disponibiliza recursos limitados, o que apesar dos esforços, especialmente do empenho sobre-humano de bombeiros, os meios de combate a incêndios nem sempre são suficientes para grandes ocorrências de fogo simultâneos.

O Mito do "Incendiário Anónimo"

É verdade que Portugal tem uma taxa elevada de incêndios criminosos (cerca de 30% dos casos, segundo o ICNF), mas esquece de referir que muitos são reincidentes ou negligentes (queimadas mal controladas, foguetes, cigarros), poucos são "pirómanos" ou criminosos organizados dado a maioria ter motivações locais (limpeza de terrenos, vinganças, conflitos entre vizinhos) e  falta uma investigação eficaz, ficando muitos casos sem culpados identificados, o que alimenta teorias conspiratórias.

É mais fácil culpar um "bode expiatório" (incendiários, empresas) do que admitir falhas estruturais (má gestão florestal, abandono rural).

A imprensa tende a destacar casos espetaculares (como os de Pedrógão Grande ou Odemira), mas ignora causas sistémicas.

A Indústria do Eucalipto e os Interesses Económicos

Nos interesses económicos da indústria haverá um fundo de verdade, mas não é a causa principal, pois o eucalipto arde facilmente, mas não é o único problema (o pinheiro-bravo, o mato seco e a carqueja também).

É verdade que as celuloses (Navigator, Altri) beneficiam do eucalipto, mas não há provas de que provoquem incêndios. Activistas atribuem responsabilidade direta às grandes celuloses, Navigator Company, Grupo Altri e a associação Celpa, nos incêndios florestais (1). O problema, porém, é a monocultura sem gestão: Muitos terrenos estão abandonados ou são malcuidados, mesmo os de grandes proprietários.

A crítica é legítima se feita ao modelo ao modelo florestal português, mas transformar isso numa "teoria da conspiração" tira o foco das soluções reais (como ordenamento territorial e fiscalização).

A Indústria do Combate a Incêndios

É verdade que o Estado (ou seja, nós os contribuintes) gasta milhões em meios aéreos e bombeiros, mas o problema é a prevenção, não o combate. Há quem diga que interessa que haja fogos para as empresas de combate ganharem dinheiro. Empresas privadas (como a Everjets) ganham contratos, mas não há indícios de que promovam incêndios.

Teorias da conspiração muitas vezes circulam no âmbito da especulação (com algum aspecto de verdade) mas o que verdadeiramente as mantem é a desconfiança generalizada em relação ao Estado e a grandes empresas (capitalismo) bem como a falta de transparência do Estado nos gastos públicos com incêndios ou com outros sectores da vida pública.

O Desinteresse político

Os incêndios repetem-se ciclicamente porque não há fiscalização eficaz em terrenos privados abandonados; as autarquias não têm recursos para impor a limpeza de matos; o Plano de Defesa da Floresta (PNDF) falha na execução (ex.: rede de faixas de gestão de combustível não é mantida) e ainda o que piora tudo é o êxodo rural; a política fomenta a emigração da gente do campo para as cidades e isso provoca mais terras abandonadas e mais mato acumulado. 

Para populações mal-informadas e para partidos torna-se mais fácil e cómodo culpar "os incendiários" ou "as empresas" e louvar o esforço abnegado de bombeiros, do que exigir políticas de eficiência a longo prazo.

De facto, o que fata é consciência e coragem política para mexer em interesses (como o do negócio com a celulose) e investir em prevenção.

De resto, de uma maneira geral, a sociedade prefere o drama do momento (notícias de incêndios) em vez de exigir em privado e em público, mudanças estruturais (2).

O problema dos incêndios deveria tornar-se em questão de prioridade nacional (para isso partidos, candidatos a presidente, deveriam apresentar estratégias e projetos para uma solução real do facto dos incêndios). Imagine-se que em vez de Portugal comparticipar com milhões em despesas para a guerra na Ucrânia ou para instituições ecológicas mundiais empregava esse dinheiro, a mente e o esforço numa reflorestação e numa ecologia portuguesa sustentável. Afinal, que interesses estão em jogo e que cartadas valem mais?

Para isso seriam necessários programas de redução de monoculturas inflamáveis e promover a diversificação das espécies sem perder de vista que o pinheiro é uma planta natural e que o sobreiro com ele contribuiria para o equilíbrio ecológico em parte das nossas florestas.

Obrigar a limpeza de terrenos com fiscalização pesada, mas implementá-la com apoios estatais, e projectos de reflorestação, dado tratar-se de uma incumbência nacional que tem também a ver com a natureza do território.

Enquanto isso não acontecer, o ciclo vai repetir-se – e as teorias sobre incendiários e conspirações vão continuar a dominar o debate.

Portugal é um temporal perfeito para incêndios: clima propício, vegetação inflamável, abandono rural, gestão florestal deficiente e factores humanos. A solução exigiria uma combinação de reflorestação com espécies menos inflamáveis, melhor gestão territorial, fiscalização rigorosa e investimento em prevenção.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10182

(1). Activistas: https://arquivo.climaximo.pt/2022/07/18/acao-eucalipto-e-fogo-e-a-navigator-a-altri-e-o-icnf-sao-responsaveis/

Aspecto complementar: A Navigator exporta cerca de 91% dos seus produtos para 130 países dos cinco continentes e a Altri exporta 530 milhões de euros (2019): https://www.publico.pt/2020/07/27/sociedade/noticia/altri-navigator-concorrentes-negocio-aliados-combate-incendios-1925982

(2) Fogos: um problema que se repete repetindo-se os mesmos lamentos: https://www.mundolusiada.com.br/portugal-atafegado-com-o-fumo-dos-fogos-e-da-corrupcao/

 

https://antonio-justo.eu/?m=201710

quarta-feira, 30 de julho de 2025

A DEMOCRACIA PORTUGUESA E A DIÁSPORA: UM CASO DE DESENCONTRO

 

O Voto dos Emigrantes não chega para legitimar mas questiona

 

A cerimónia de tomada de posse da Comissão Nacional de Eleições (CNE), no dia 25 de julho de 2025, trouxe à luz um problema que há muito se arrasta: a relação frágil entre a democracia portuguesa e os seus emigrantes. O Presidente da Assembleia da República (PAR) abordou, com pertinência, a alarmante abstenção de 80% e os 30% de votos nulos entre os portugueses no estrangeiro. Estes números não são apenas estatísticos, (1) eles são um grito de desencanto, um sintoma de um sistema que falha em incluir quem, mesmo longe, não só mantém Portugal no coração como concorre substancialmente para o seu desenvolvimento.

Mas por que razão os emigrantes portugueses, uma comunidade vibrante e economicamente relevante, se afastam das urnas? E o que diz este afastamento sobre a saúde da nossa democracia?

Quais são as Barreiras que afastam os Emigrantes das Urnas

O discurso do PAR identificou alguns dos obstáculos que desencorajam a participação eleitoral:

Uma burocracia excessiva exigindo registo prévio, prazos curtos e a necessidade de deslocação a consulados distantes transformam o ato de votar num verdadeiro obstáculo, não num direito;  a falta de informação concorre  para que muitos emigrantes desconheçam o impacto do seu voto ou desconfiam da eficácia do sistema político; o desencanto com a política que vem da  sensação de que os partidos veem a diáspora como um alibi eleitoral, e não como uma comunidade com necessidades específicas, mina a confiança.

Se o voto não produz efeitos visíveis, por que razão haveriam os emigrantes de se dar ao trabalho?

O que podemos aprender com outros Países?

Portugal não está sozinho neste desafio, mas outros países encontraram soluções eficazes que poderiam servir de inspiração:

O Brasil:  tem voto facultativo e simplificado, registo automático (sem renovação anual), voto presencial em consulados ou por correio; em 2022, cerca de 700 mil brasileiros no exterior votaram.

A França: tem voto por procuração (um eleitor pode delegar o seu voto a outro), tem equipas consulares móveis que se deslocam a cidades sem representação; em 2022, 50% dos franceses no Reino Unido votaram por procuração.

A Estónia: tem voto online seguro desde 2005 (com ID digital ou telemóvel) e deste modo redução drástica de custos logísticos; a participação dos emigrantes subiu de 6% (2005) para 44% (2023).

A Itália: tem 12 deputados e 6 senadores eleitos exclusivamente por emigrantes e deste modo representação direta no Parlamento, os partidos apresentam listas específicas para o exterior; em 2022, a participação foi de 30% (acima da média europeia).

Os EUA: têm voto postal em massa devido a envio automático de cédulas em alguns estados e a prazos longos (até 2 meses antes da eleição); em 2020, 65% dos votos de americanos no exterior foram postais.

O que falta a Portugal? Vontade política

Os exemplos internacionais mostram que há soluções. Mas em Portugal, o problema persiste por falta de acção.

O voto eletrónico, já testado com sucesso noutros países, poderia ser implementado progressivamente e alguma região ou país de emigração poderia servir como início experimental.

O voto postal universal (hoje restrito a casos excepcionais) deveria ser uma opção normal real, sem necessidade de justificação. Poderia fazer parcerias com serviços postais internacionais (ex.: DHL) para entrega segura.

Consulados móveis, como os da França, poderiam chegar a comunidades distantes.

Mais deputados da emigração (4 são claramente insuficientes) e debates parlamentares focados na diáspora.

Mas há um obstáculo maior: interesses partidários.

 

Razão por que o PS e Outros resistem à Mudança?

Rumores insinuam que os partidos tradicionais temem que a facilitação do voto no estrangeiro beneficie forças políticas mais centristas ou contestatárias. Os resultados das últimas legislativas confirmam essa tendência: O CHEGA venceu nos dois círculos da emigração (26% dos votos), a AD ficou em segundo lugar (16%), o PS, pela primeira vez, não elegeu nenhum deputado pela diáspora (2).

Deputados eleitos na Europa: José Dias Fernandes pelo CHEGA e José Manuel Fernandes pela AD.

Fora da Europa: Manuel Magno Alves pelo CHEGA e José de Almeida Cesário pela AD.

Se o sistema continuar a dificultar o voto, a abstenção manter-se-á alta e a legitimidade democrática, baixa.

A Diáspora merece mais que Promessas

A intervenção do Presidente da AR foi um primeiro passo, mas precisa de ações concretas:

Simplificar o voto (eletrónico, postal, por procuração), aproximar as instituições das comunidades emigrantes e combater a desinformação e envolver as associações da diáspora e jornais de papel ou online com verdadeira incidência no meio dos emigrantes.

Os emigrantes não são apenas "portugueses de segunda categoria", são um pilar económico e cultural do país. Se a democracia portuguesa quer ser verdadeiramente inclusiva, tem de olhar para além-fronteiras.

Caso contrário, continuaremos a assistir a um divórcio perigoso entre Portugal e os seus filhos espalhados pelo mundo e a desperdiçar uma potencialidade já inserida nos diversos países. Eles são os verdadeiros embaixadores de Portugal.

Urge usar a diáspora como força económica e política. Se Portugal soubesse aproveitar o potencial da sua diáspora, não só eleitoral, mas também económico e cultural—poderia tornar-se num caso de estudo em democracia inclusiva. Basta querer e agir. Continuar encerrados em meros interesses de imagens individuais e partidárias (3) corresponderia a continuar cada vez mais na mesma. Os partidos ainda se sentem tão seguros que se permitem exigir dos votantes sacrifícios desproporcionados. Encontramo-nos num processo de desenvolvimento cívico em que as instituições quer sejam religiosas quer políticas (se se querem afirmar-se) têm de se dirigir ao povo e não o povo a elas.

António da Cunha Duarte Justo

Notas em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10153