quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

CUIDAR DE QUEM CUIDA

 

Satisfação vocacional e o Risco de burnout na Vida sacerdotal

Inquéritos feitos a padres nos EUA em 2025 (e na Europa) revelam níveis elevados de sacerdotes que vivem a sua vocação com satisfação e sentido, mas enfrentam desafios estruturais graves: sobrecarga, solidão, risco de exaustão, falta de apoio institucional. Ao mesmo tempo, os padres revelam uma clara visão de futuro: priorizar juventude, famílias, evangelização e serviço social, uma Igreja mais “de rosto humano”, comprometida com o mundo real (1).

As percepções sobre liderança, bem-estar comunitário, confiança etc. podem variar muito de diocese para diocese; os resultados gerais não dizem tudo sobre contextos particulares.

Uma realidade que pede atenção e misericórdia

A Igreja é uma família. E como em qualquer família, quando alguém se sente cansado, sobrecarregado ou só, todos somos chamados a reparar, escutar e ajudar.

Em muitas comunidades portuguesas e europeias, os padres vivem hoje com grande dedicação, mas também com um peso crescente de responsabilidades: várias paróquias a cargo da mesma pessoa, exigências administrativas, deslocações constantes e expectativas que nem sempre são humanas porque puxam mais para fora do que para dentro.

Muitos continuam a servir com alegria e fidelidade. Outros vivem momentos de cansaço profundo, solidão ou stress, nem sempre visíveis, nem sempre partilhados.

Reconhecer esta realidade não é criticar a Igreja, mas amá‑la com verdade porque somos todos humanos.

Alguns dados simples para compreender melhor

- Em várias regiões da Europa, incluindo Portugal, a proporção aproxima‑se hoje de 1 padre para 3.000 a 4.000 fiéis.

- Estudos europeus e internacionais indicam que cerca de 30% a 40% dos padres apresentam sinais de cansaço emocional prolongado (burnout) em algum grau.

- Padres mais jovens ordenados após 2000 ou com múltiplas paróquias tendem a sentir maior pressão e solidão.

- Em Portugal, uma investigação recente em que foi aplicada a ferramenta psicológica Francis Burnout Inventory (FBI) que mede a saúde mental no trabalho (exaustão emocional e satisfação no ministério) aplicada a padres portugueses (amostra de 266) confirma que também entre nós existem sinais de exaustão associados à falta de descanso, de apoio regular e de partilha fraterna e também pensamentos sobre deixar o ministério.

 

Estes dados não descrevem pessoas concretas, mas ajudam‑nos a perceber melhor o contexto em que muitos sacerdotes vivem hoje.

Quando o cansaço se prolonga

Quando a sobrecarga se prolonga e não se é escutado nem cuidado, o desgaste pode levar a:

- Ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas;

- Solidão profunda e perda de alegria ministerial;

- Distanciamento afetivo das comunidades;

- Risco de abandono do ministério;

- Empobrecimento da vida pastoral das paróquias e da vida comunitária.

Cuidar dos padres é cuidar da qualidade da vida cristã de todos.

Uma palavra de gratidão aos padres

A entrega do sacerdote é preciosa e a sua humanidade também.

Jesus não chamou servidores incansáveis, mas amigos. Descansar, pedir ajuda, partilhar o peso com irmãos e comunidades não diminui a vocação, pelo contrário, protege‑a.

A fraternidade entre padres, vivida com amizade, oração e partilha sincera e com a oração partilhada é uma das maiores fontes de cura e perseverança.

A paróquia é uma comunidade de vida

A paróquia não é apenas o lugar onde o padre trabalha, é uma comunidade de corresponsáveis, uma comunidade de vida.

Cada comunidade pode ser mais leve e mais fraterna quando: partilha tarefas e responsabilidades; respeita limites e tempos de descanso; valoriza a presença humana do padre, não apenas o que ele faz; cria equipas e ministérios activos e valoriza momentos simples de convivência.

Uma comunidade viva não sobrecarrega o padre, caminha com ele anunciando o Evangelho com gestos concretos.

Caminhar juntos com esperança

A Igreja precisa de bispos que sejam pais e pastores, não apenas gestores.

Estas palavras não nascem de críticas, mas de um desejo simples: uma Igreja mais atenta, mais humana e mais evangélica.

Cuidar de quem cuida é uma missão de todos.

“Vinde repousar um pouco comigo.” (Mc 6,31)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10482

(1) O relatório do inquérito de 2025 feito nos EUA a padres sobre a sua situação pode ser consultado em  https://catholicproject.catholic.edu/wp-content/uploads/2025/10/NSCPWave2FINAL.pdf    entre outras coisas identificou que ~ 40% dos padres ordenados após 2000 manifestaram sentimentos de solidão em algum grau. Cerca de 39% dos padres relataram ao menos um sintoma de “burnout” (cansaço emocional, esgotamento, visão negativa) e 5% relataram ter todos os sintomas. Há diferença entre padres diocesanos (mais em risco — 7% apresentam “alto burnout”) e padres religiosos (2%).

Os padres que responderam à pesquisa mantêm níveis elevados de “florescente” pessoal: pontuação média de 8,2/10 (igual à de 2022)  ou seja, saúde mental, propósito, relações sociais etc., em bom nível.

Estudos empíricos recentes em Itália mostram que, além da sobrecarga objetiva, fatores pessoais (traços de personalidade) e a falta de atividades de lazer/proteção profissional influenciam a propensão ao burnout.

DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Repensar a Europa dos três (E-3)

O Vírus da Guerra
Imagine a guerra não como um incêndio ocasional, mas como uma doença crónica que se instala no corpo da Europa. Com este artigo pretendo alertar para o facto de estarmos a normalizar o conflito. O rearmamento acelerado e a narrativa de que a guerra é inevitável não são só decisões políticas, são uma mudança profunda na nossa alma coletiva. A Europa está a trocar o seu projeto de paz por um colete blindado. Cega parece seguir os interesses de uma Europa dividida e determinada pela Europa dos três (E-3).

O Antídoto Ético: Uma Paz que Desarma
No meio deste ruído de armas, surge uma voz rara e corajosa: a da Conferência Episcopal Italiana. Com a sua Nota Pastoral "Educar para uma paz desarmada e desarmante", eles não propõem uma paz frágil, mas uma força ativa. É um apelo para desarmarmos os nossos espíritos antes de pensarmos em desarmar os exércitos. É o primeiro grande contraponto a uma cultura que está a adormecer para o horror.

A Amnésia Perigosa: A Alemanha Esquece as Lições
A Alemanha, outrora guardiã da memória dos horrores da guerra, tornou-se a principal motorista do rearmamento. É como se um ex-fumante, curado de um cancro, começasse a vender cigarros. Chama-se a Alemanha à atenção de uma "amnésia estratégica": a sua verdadeira segurança sempre veio da cooperação, não das armas. Ao abraçar cegamente a lógica da NATO, Berlim está a desistir de pensar uma Europa autónoma e a empurrá-la para o abismo de um confronto sem fim com a Rússia.

Os Arquitetos da Divisão: NATO e Reino Unido
A NATO já não é só um guarda-chuva defensivo; tornou-se um professor que dita o que uma sociedade deve pensar e valorizar. A exigência de se gastar 5% do PIB na defesa é a receita para militarizar não só os orçamentos, mas também as nossas mentes. Paralelamente, o Reino Unido, após o Brexit, age como um "sismógrafo do caos": para se manter relevante, semeia a divisão no continente, uma estratégia antiga das potências marítimas que deixa a Europa mais frágil e instável.

A Europa sem Bússola: Reagir sem Pensar
Aqui está a metáfora central: a União Europeia parece um barco à deriva, sem leme nem mapa. Reage às ondas (as crises), mas não sabe para que porto quer navegar. A EU movida pela EU-3 esquece um facto geográfico crucial: a Europa é uma península da Ásia. Tentar isolar ou humilhar a Rússia é como tentar separar o quarto da casa em que se vive. A verdadeira segurança só pode ser construída com o vizinho, nunca contra ele. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

A Escravatura Invisível: O Neocolonialismo das nossas Mentes
O colonialismo de outrora roubava terras e corpos. O de hoje é mais insidioso: rouba o nosso pensamento. Através de uma informação centralizada e de narrativas simplistas e maniqueias, somos condicionados a aceitar a guerra como normal. É um "colonialismo mental" que nos escraviza desde a infância, fazendo-nos temer e odiar antes mesmo de podermos refletir. A guerra já não precisa de ser declarada; ela já venceu quando se instala no nosso inconsciente. E no neocolonialismo das mentes estabelece-se um regime sustentável das elites em que já não é a humanidade nem o humanismo que contam, mas o funcionamento da máquina. O argumento da guerra no seguimento do regime COVID-19 prepara os espíritos para a servilismo total.

Quem paga a Conta é o Povo. Quem lucra são as Elites e as Potências.
Uma verdade antiga e cruel: as guerras são decididas em gabinetes luxuosos, mas pagas com o sangue dos filhos das famílias comuns. Enquanto a indústria bélica e as elites políticas e financeiras lucram com o medo, a paz torna-se um perigo, porque exige justiça, transparência e cooperação, que ameaçam os seus interesses.

 

A grande Viragem seria investir na Paz como Estratégia
E se, em vez de gastarmos milhares de milhões em armas, investíssemos o mesmo numa "Cultura da Paz"? Seria de começar com essa revolução:

- Educação para o pensamento crítico.

- Diplomacia ativa e preventiva.

- Justiça social como a melhor política de segurança.

- Media diversificados e descentralizados mais conformes com um regime democrático.

- Cooperação global que leva desenvolvimento, e não apenas exploração.
Isto não é um sonho ingénuo; é o único plano realista de sobrevivência a longo prazo.

Conclusão: A Encruzilhada Final
A Europa está numa encruzilhada histórica:

- Caminho 1: Ser uma "Europa Armada", rica em armas, mas pobre em consciência, subalterna, dividida e reativa.

- Caminho 2: Ser uma "Europa Pensante e Consciente", que investe na paz como força civilizacional iniciando finalmente o processo de realizar o ideal cristão da irmandade entre todos os humanos e entre todos os povos.

A pergunta final do artigo é uma faca na consciência coletiva: Que tipo de humanidade queremos promover? Financiar a guerra é fácil e dá votos a curto prazo. Construir a paz exige coragem, paciência e uma visão que vai além do próximo ciclo eleitoral. A verdadeira segurança começa no dia em que a guerra deixa de ser sequer imaginável.

 

Sintetizando
A Europa está a adoecer da "normalização da guerra", guiada pela amnésia da Alemanha, pela lógica divisionista da NATO/Reino Unido e pela sua própria falta de visão. Estamos a trocar o projeto de união por um pesadelo de militarização e colonialismo mental, onde as elites lucram e o povo paga. O antídoto? Uma audaciosa "Cultura de Paz", financiada com a mesma verba que se destina às armas. A escolha é entre sermos um forte militar ou uma luz para o mundo.

António da Cunha Duarte Justo

Resumo do artigo integral em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10478

 

 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

MARIA E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA VISÃO DO REAL

Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo

 

A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.

O símbolo como acesso ao real

A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.

Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).

Conhecimento, consciência e limites da objetividade

Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.

Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.

Virgindade e novo paradigma ontológico

A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.

Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.

Encarnação e superação da dualidade

A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.

Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.

Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade

Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.

A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.

Conclusão: uma verdade em processo

A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.

Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.

“A verdade não é algo que possuímos, mas uma realidade que nos envolve e transforma.”
(K. Rahner)

Parabéns a todas as mães biológicas, espirituais e simbólicas.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo                                                                                                                                 Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10470

domingo, 7 de dezembro de 2025

EDUCAR PARA UMA PAZ DESARMADA E DESARMANTE

 

EDUCAR PARA UMA PAZ DESARMADA E DESARMANTE

 

Voz da Igreja Católica Italiana: Uma voz no Deserto?

 

 Na recente “Nota Pastoral” da Conferência Episcopal Italiana (CEI), publicada em 5 de dezembro de 2025 sob o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, os bispos italianos tornam-se na consciência crítica à onda de armamento na Europa apresentando um contraponto moral e cultural à espiral de rearmamento. Já no Jubileu do Mundo Educativo o Papa Leão XIV afirmado que “uma educação desarmante e desarmada cria igualdade e crescimento para todos”.

O objetivo central da nota dos bispos reunidos em Assisi é “redescobrir a centralidade de Cristo como fundamento da paz „ e chamar comunidades, fiéis e sociedade a adotarem uma “cultura de paz” e “não de violência”.

Diagnósticos que fundamentam a exigência de um apelo à paz

A Escalada de conflitos e risco nuclear:

- O documento da CEI assinala um crescimento do “nível de conflitualidade entre as grandes potências”, com a possibilidade, por vezes real, de “escalação nuclear”, o que gera angústia e “erosão da esperança”, especialmente nas novas gerações.

- A guerra, com suas “inúteis carnificinas”, muitas vezes de civis e crianças e a lógica da “dissuasão armada” são vistas como moral e socialmente insustentáveis.

Crescente investimento militar e mercado de armas

A nota denuncia o crescimento acelerado dos gastos militares: segundo o documento, o gasto militar mundial em 2024 ultrapassou 2,7 trilhões de dólares. Esse montante, observa a CEI, desvia recursos necessários para construir um mundo habitável: combater fome, pobreza, crises ambientais e promover um desenvolvimento humano.

A CEI chama atenção para quem lucra com o comércio e a produção de armas, inclusive bancos e investidores e convida para o desinvestimento (objeção financeira) dessas indústrias.

Desconfiança da lógica do “rearmar para defender”

A argumentação central é que a necessidade de defesa não pode ser usada como pretexto para uma corrida aos armamentos. A CEI considera “contraditórias” as políticas de pesados investimentos bélicos adotadas desde a invasão da Ucrânia pela Rússia.

A nota convoca a União Europeia a retomar o caminho da paz, construído no pós-Segunda Guerra Mundial, ao invés de transformar a segurança num negócio de armas e poder militar.

Propostas e orientações da CEI

A CEI não se fica só pelo diagnóstico, ela sugere uma série de caminhos práticos e culturais para enfrentar a crise da paz:

- Educar consciências: as comunidades cristãs (paróquias, dioceses), famílias, escolas — todos devem promover “a cultura da paz, do diálogo, da misericórdia, da fraternidade e do respeito mútuo”.

- Serviço civil obrigatório em vez de serviço militar obrigatório: como alternativa à militarização, a nota propõe a instituição de um serviço civil obrigatório para os jovens, como  forma de investir em paz, solidariedade e cuidado social.

- Rever a presença religiosa nas forças armadas: a CEI questiona o papel dos “cappellani militari” integrados ao aparato militar, sugerindo formas de assistência espiritual não vinculadas diretamente às forças armadas.

- Objeção financeira: incentivar indivíduos e instituições a desinvestirem de empresas e indústrias armamentistas.

- Construção de “casas de paz”: cada comunidade cristã é convidada a tornar-se “uma casa de paz e de não-violência”, cultivando justiça, perdão, diálogo, acolhimento e solidariedade.

- Aposta na justiça restaurativa e cuidado da Criação: a paz — para a CEI — não é apenas ausência de guerra, mas justiça social, reconciliação, cuidado com o meio ambiente e com o humano.

Tom teológico e ético: paz como chamamento existencial e comunitário

- A CEI reafirma que a paz não é uma abstração ou opção política neutra, mas um compromisso radical inspirado no Evangelho. A “regra da paz” exige um “exercício global e cotidiano” de misericórdia, fraternidade, cuidado pelo outro em oposição à lógica da força.

-A nota retoma o ensinamento de Papa Francisco (e de Fratelli tutti) de que a paz exige conversão cultural e ética: não basta evitar guerras, é preciso construir comunidades que pratiquem justiça, reconciliação e solidariedade.

- Para a CEI a paz não é passiva: é um esforço ativo, “desarmado e desarmante”, que rejeita a lógica da detenção do poder militar como condição de segurança.

Relevância para o contexto atual da Europa e implicações para a Alemanha

Considerando a crescente militarização e os debates sobre defesa na Europa (incluindo países como a Alemanha), a nota da CEI destaca-se como um contraponto moral e cultural à espiral de rearmamento. Algumas implicações que podem fomentar uma atitude crítica:

- Crítica à “segurança pela arma”: ao questionar investimentos massivos em armamento e afirmar que a defesa não justifica o rearmamento global, a CEI sugere que a lógica da segurança militar permanente é autodestrutiva, especialmente num continente com tensões históricas e memória de guerras.

- Alternativas concretas de paz e segurança: propostas como serviço civil obrigatório, desinvestimento da indústria bélica, justiça restaurativa, acolhimento, solidariedade, oferecem alternativas à militarização, valorizando coesão social, bem-estar, dignidade humana e ecologia.

- Apelo à Europa como agente de paz e de integração: a CEI entende que a União Europeia não deve tornar-se um bloco de “poder militar”, mas um espaço de cooperação, diálogo e convivência, visão esta que desafia nacionalismos e retóricas securitárias.

- Dimensão ética e espiritual: num momento de crise de valores, desemprego, polarização social, crises de refugiados e xenofobia, a nota oferece um referencial ético profundo de reconciliação, acolhimento, cuidado com a fragilidade humana como alternativa à escalada armamentista.

- Prevenção de lógicas de guerra como cultura dominante: a CEI adverte que o apego à “ameaça” e à produção/negócio de armas pode normalizar a guerra como meio de resolução de conflitos, é algo perigoso para a paz duradoura e para a promoção dos direitos humanos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10466