quarta-feira, 17 de setembro de 2025

O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS

 

(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, vivido agora em férias)

 

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pelo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu: «Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras. «É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor: «Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu: «Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite. «Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10332

 https://poesiajusto.blogspot.com/2025/09/o-concerto-dos-caes-acorrentados.html

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O QUE NÃO SE FALA NÃO EXISTE!

 

Pois é, meus caros, que bela notícia!
Afinal de contas, a injustiça e a pobreza já são problemas ultrapassados, resolvemos não falar mais deles, e, como bem se sabe, o que não se fala não existe.
Agora, o verdadeiro progresso está em rearmar a Europa! Que alívio saber que os 800 mil milhões de euros que a UE planeia gastar em defesa nos próximos anos vão certamente tornar-nos todos mais seguros… principalmente contra a ameaça terrível de idosos sobreviverem com 250 euros por mês ou pensionistas portugueses que ousam receber pensões de até 500 euros. Em Portugal em 2024 havia 1,4 milhões de pensionistas que recebiam uma pensão de velhice de até 500 euros, o que representava quase metade dos pensionistas da Segurança Social.
É claro que faz todo o sentido que Portugal gaste 6.256 milhões de euros em defesa até 2029, afinal, quem precisa de reformas decentes, serviços públicos que funcionem ou apoio social quando podemos ter mísseis mais modernos e tanques reluzentes?
O importante é manter as prioridades em ordem: primeiro, enchemos os arsenais; depois, talvez, se sobrar algum trocado, lembramos que há pessoas a viver na miséria.
Mas calma, não sejamos dramáticos! Afinal, o que é a pobreza perante a grandiosa estratégia geopolítica europeia?
Sigam em frente e não se esqueçam de apertar o cinto… mas só até 2029. Em compensação, sentimo-nos bem-comportados e esforçados em cumprir as estratégias de Trump em relação à NATO! Isso dá mais honra e lustro aos nossos engravatados quando se passeiam em Bruxelas!
António da Cunha Duarte  Justo
Pegadas do Tempo

O ATLAS DE FUMO E O FIO DE OURO

 

Introdução: A Biblioteca das Épocas (1)

 

Na vastidão do não-tempo, onde as épocas se dissolvem em névoa e os mapas do mundo se redesenham a cada expiração do cosmos, existia uma biblioteca infinita. Não era feita de pedra ou madeira, mas do próprio tecido da memória humana. As suas estantes, labirínticas, guardavam não livros, mas painéis luminosos onde cintilavam as constelações de ideias, paixões e ambições de cada época. Era o reino do pai do tempo Cronos (2), o velho Tecedor, um ser de aparência serena, mas com olhos que reflectiam a fadiga de milénios. Ele não era um deus, mas um arquivista, o Narrador silencioso da história. Tinha entre mãos um tear dourado onde tentava entrelaçar os fios caóticos do destino humano num padrão coerente.

Os seus dois principais assistentes, ou antagonistas, eram Dogma e Providência.

Dogma era um homem de rosto anguloso e vestes impecáveis, sempre carregando uma bússola de aço e um livro das regras da sustentabilidade. Acreditava que o painel do Ocidente, aquele erguido após a última grande convulsão, a que chamaram Renascimento e depois Iluminismo, era a obra final, perfeita e inalterável até aos finais dos tempos. Para ele, a luz daquela constelação, embora já pálida, era a única verdadeira a brilhar no céu de Bruxelas. Uma luz teimosa, sustentada por combustíveis grosseiros, guardados em tanques enferrujados.

Providência, por sua vez, era uma figura etérea, de olhos que pareciam ver não o que é, mas o que poderia ser. Usava um manto bordado com os símbolos de todos os povos e sussurrava sobre conexões, complementaridades e um novo painel a surgir do Sul, mais colorido e complexo. Era a voz da intuição racional, do bom senso que vê além do horizonte imediato.

E havia Caos (o espaço vazio, abismo (3), a força primordial que Dogma mais temia. Não era uma pessoa, mas uma energia turbulenta que emanava dos painéis: a emotividade irracional, o medo, o ódio tribal que fermentava nas sociedades quando se sentiam perdidas.

(O mundo da História encontrava-se assim dividido em painéis representados em várias áreas da biblioteca)

O Painel Ocidental e as Fendas

O painel do Ocidente brilhava intensamente. Nele, via-se a catedral do poder: torres de marfim onde as elites, representadas por uma figura etérea e arrogante chamada O Inquisidor (4), admiravam a sua própria obra. Tinham construído um sistema engenhoso, um capitalismo de tipo bússola e privilégio privado. Mas, como notava Cronos com um suspiro, tinham cometido o erro fatal: confundiam o seu painel com o universo inteiro.

"O padrão está completo!" proclamava Dogma, ajustando o compasso. "Todos os outros painéis devem calibrar-se pelo nosso. E para nós os valores válidos são os da nossa Constituição".

Porém, o Tecedor apontava para as rachaduras. O brilho intenso do painel não iluminava os seus cantos mais sombrios: os desfavorecidos, os idosos e os jovens, representados por uma figura colectiva e cansada, O Povo, que, na penumbra, viam os fios dourados da sua prosperidade serem desviados para alimentar uma grande forja de armas reluzentes e magnates globais, fora do painel. O Povo não entendia os desígnios do Inquisidor; sentia apenas um frio crescente e uma ansiedade surda, um mal-estar que era o combustível de Caos.

O Inquisidor, sentindo o controlo a escapar, não apelava à razão. Em vez disso, sussurrava para o painel. Murmurava medos antigos, alimentava suspeitas, pintava o mundo exterior de cores ameaçadoras. Era mais fácil unir O Povo pelo temor do que pela esperança. A emotividade, como um vinho forte, entorpecia a capacidade de questionar.

O Novo Mosaico e a Renitência

Enquanto isso se dava, noutra ala da biblioteca, um novo painel ganhava forma. Era um mosaico vibrante de cores terrosas, verdes luxuriantes e azuis profundos: O Sul Global. Não seguia o mesmo desenho. As suas torres não eram de marfim, mas de bambu e aço, erguidas por mãos estatais e colectivas. Era um capitalismo diferente, menos privado, mais comunitário na sua origem, unido por fios de tradição e soberania que o Ocidente julgara obsoletos.

Providência observava, fascinada. "Vê, Cronos? É a mesma transição que ocorreu quando o feudalismo deu lugar aos nossos reinos comerciais. É a História a repetir a sua dança, noutro palco."

Dogma, contudo, olhava para aquele painel e não via inovação, viu apenas uma heresia. "Eles não seguem as regras! O compasso não se aplica nem tem sentido! É uma afronta à nossa constelação!".

O Inquisidor, ecoando Dogma, começou a gritar. Em vez de buscar dialogar com o novo mosaico, começou a apontar para ele as suas armas reluzentes, a tentar cercá-lo com um anel de fogo. A renitência em aceitar a mudança tornou-se a própria semente do conflito. A NATO, nessa narrativa, era o seu exército de sombras, a tentar conter a maré com velhos mapas.

A Torre de Babel da Esquerda e o Profeta

No próprio painel ocidental, uma guerra silenciosa corroía a base. O Centro da polis temia que os ventos fortes vindos da direta lhe desabrigassem as raízes. A Esquerda, que outrora pretendia ser a voz de O Povo, estava dividida. Dois grupos lutavam. Os Jacobinos Verdes, discípulos involuntários do Inquisidor, tinham trocado o vermelho pelo verde escuro num pacto de poder. A sua ecologia tornara-se dogmática, belicista e distante das necessidades terrenas de O Povo. Eram a ala moralizadora e emocional, úteis ao Inquisidor para manter a narrativa de medo.

Do outro lado, uma voz mais calma, mas persistente tentava fazer-se ouvir. Era O Profeta, não um adivinho, mas um pragmático com alma. Representava aqueles que viam a loucura do momento. "Não podemos defender O Povo fomentando o seu medo!" clamava. "Precisamos de um meio termo, de uma razão integral que una a justiça social à pragmática colaboração com o novo mosaico. A nossa luta não é contra o Sul, é contra a injustiça de uma desigualdade que nos consome por dentro!"

Mas a sua voz era abafada pelo ruído ensurdecedor de Caos, amplificado pelo Inquisidor e pelos Jacobinos Verdes.

O Grande Tear Eurasiático

Cronos, o Narrador, cansado da cacofonia, decidiu agir. Não com força, mas com lembrança. Ele projectou uma visão sobre os painéis em conflito.

Era a imagem de um Grande Tear Eurasiático. Mostrava a Rússia não como um inimigo, mas como uma ponte vasta e antiga entre a Europa e a Ásia. Mostrava rotas não de invasão, mas de comércio, de cultura, de energia e de ideias fluindo de Lisboa a Xangai, unindo províncias e continentes num novo padrão.

"Olhem", sussurrou Cronos, sendo a sua voz pela primeira vez audível para todos. "O espírito do Renascimento não era de isolamento, era de redescoberta através do encontro. A mesma coragem que vos fez navegar para ocidente é necessária agora para navegar para oriente, não com naus de guerra, mas com a ânsia de aprender e colaborar. O mundo virtual que criaram pode ser esta nova rota da seda, se o desejarem."

O Povo, intoxicado pelo medo, começou a esfregar os olhos. A visão era estranha, mas fazia um sentido profundo que a emotividade do Inquisidor nunca lhe proporcionara.

O Fio de Ouro

A batalha não terminou. Dogma e o Inquisidor ainda gritam e Caos ainda sussurra.

Mas a visão plantou uma semente. O Profeta encontrou ouvidos mais atentos. Providência sorriu, vendo que o novo painel do Sul (propriamente formatado pela Europa) não pretendia apagar o Ocidental, mas sim conectá-lo, oferecendo-lhe novas cores para o seu padrão.

Cronos voltou ao seu tear. Entre todos os fios de prata do poder, de ouro do capital, de carmesim da paixão e de sombra do medo, ele começou a entrelaçar um novo fio, que era fino, mas incrivelmente resistente. Era um fio de razão serena, de bom senso histórico, de colaboração necessária.

Era o fio que O Profeta defendia, o fio que O Povo instintivamente desejava, o fio que poderia costurar os pedaços do atlas partido num novo mapa, não de um mundo unificado sob um único dogma, mas de um mundo multipolar, unido pela aceitação da sua própria diversidade e pelo desejo final de um destino comum.

A história, afinal, não se repetia como uma tragédia ou uma farsa, mas como uma oportunidade de correcção. A crise axial era, assim, o doloroso e necessário parto de uma consciência nova. (Teilhard de Chardin resumiria: o despertar de uma consciência cósmica na convergência de todo o mundo para o Ponto Ómega!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10314

 

(1) Uma macro análise da encruzilhada da História

(1) Cronos, o pai do tempo, um dos Titãs da mitologia grega, filho de Urano (o céu) e Gaia (a terra), conhecido por destronar seu pai e tornar-se o rei dos deuses, governando durante a chamada Idade de Ouro.

(2) Khaos (ou Caos), na mitologia grega, é a primeira entidade primordial a surgir no universo, o espaço vazio e primordial do qual tudo se originou, segundo a obra do poeta Hesíodo. O termo significa "abismo", "vazio" ou "imensidão", e Khaos é uma força que gera o cosmos por meio da cisão, sendo o oposto de Eros, que representa a união. De Khaos, surgiram outras divindades primordiais como Gaia (a Terra), Érebo (a Escuridão) e Nix (a Noite).

(3) Livro 1984 de George Orwell critica o totalitarismo e a manipulação da verdade, algo que começou a ficar em evidência após a Segunda Guerra Mundial (vigilância em massa e da lavagem cerebral na sociedade).

sábado, 30 de agosto de 2025

A VILA E O OCEANO: UM BRAMIDO NOS AREAIS (Conto filosófico)


Numa pequena vila de pescadores, três amigos discutiam à beira-mar.

Pedro, o Poeta, olhando o horizonte:

- Para mim, o mar é tudo. O mar é os peixes, as ondas e até a areia molhada. Se tudo é mar, então tudo é divino. Isso é o panteísmo: não há fora, só há mar.

Joana, a Céptica, balançou a cabeça:

- Mas se o mar é tudo, até o peixe podre seria divino. Isso não pode ser certo.

António, o Velho Pescador, sorriu e respondeu:

- Eu penso diferente. O peixe vive no mar, mas não é o mar. O mar é maior que ele. O peixe está no mar, o mar está no peixe, mas o mar não se reduz ao peixe. Isso é o panenteísmo: tudo está em Deus, mas Deus é mais que tudo.

Joana arregalou os olhos:

- Então o mar envolve e sustenta, mas não se confunde com os peixes?

Pedro repensou:

- E nós, onde ficamos?

O silêncio dos três era uma concha que ampliava o rugir do mar, e naquele som das vagas mergulharam numa epifania muda de que Deus é o mar, mas é também o além-mar; um oceano sem margens onde todos os significados se dissolvem e renascem. A noite, encimada por uma lua solene, tecia claros e escuros não apenas na paisagem, mas nos recônditos dos três corações, ainda assombrados pelo bramido que confundia a criação com o Criador, deixando-os a balancear os seus espíritos entre o divino no mundo e o mundo no divino. E, ainda que o diálogo lhes houvesse trazido alguma claridade, Pedro sentiu naquela noite uma maré de ideias em redemoinho, que arrebatou consigo o seu sono.

No dia seguinte, à tardinha, os amigos voltaram a conversar.

Pedro, insistiu:

- Mas se o mar é Deus, eu sou só uma gota sem importância.

António, sorriu e respondeu:

- Não, Pedro. Para nós cristãos o mar verdadeiro é trinitário. Ele não é solidão sem forma, mas comunhão viva. O Pai é como a fonte que gera as correntes, o Filho é o rio que mergulha no mar e nos leva de volta, e o Espírito é a água que circula em todos os peixes e ondas.

Joana, refletiu:

- Então cada um de nós é peixe vivo nesse mar, único, mas ligado aos outros. O mar envolve-nos, mas não apaga a nossa forma. Não somos gotas perdidas, mas pessoas chamadas pelo nome.

António concluiu:

- Exato. Se a Joana fosse apenas gota dissolvida, não haveria amor, nem responsabilidade. Mas porque é pessoa em inter-relação, tem valor e dever. O oceano trinitário não apaga quem és, faz de ti parte de uma dança maior, sem perderes a tua voz.

Os três calaram- se diante das ondas.

Já não era apenas um mar (1).

Era um mistério de amor que os chamava pelo nome e os envolvia, sem jamais os apagar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo https://antonio-justo.eu/?p=10308

(1) Assim, o panenteísmo cristão mostra-se como uma visão do mundo em que Deus está em tudo, mas tudo é chamado a viver em comunhão pessoal com Ele. Diferente do panteísmo, que apaga a pessoa na totalidade, o panenteísmo trinitário preserva a liberdade, a dignidade e a responsabilidade humana diante do cosmos. O mistério trinitário pode ser visto como a chave de leitura da existência: uma “fórmula da realidade” que sustenta o mundo, valoriza a pessoa e orienta a história para a plenitude em Cristo. Para os cristãos, Cristo é como a ponte: Ele mergulha no mar connosco e leva-nos para o coração do oceano infinito. E o Espírito é como a água que circula em cada peixe, mantendo-o vivo.

Ver artigo sobre o assunto: O OCEANO EM NÓS em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10306

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

AS FRONTEIRAS QUE NOS DÃO FORMA: ENTRE O SER E O ESTAR EM SOCIEDADE


O Paradoxo das Limitações que libertam

 

.... Muitas pessoas sentem-se perdidas entre o que são verdadeiramente e o que a sociedade espera delas, oscilando entre a conformidade absoluta e a revolta sem rumo. Esta tensão existencial não é acidental, é o reflexo de uma questão fundamental: como poderão as limitações que nos cercam, paradoxalmente, tornar-se a chave para a expressão autêntica da nossa personalidade?

As fronteiras/limites que nos enquadram não são apenas obstáculos a superar, mas sim as próprias condições que tornam possível a nossa existência única e a nossa capacidade de nos relacionarmos com o mundo de forma consciente e criativa...

A nossa identidade, aquilo a que podemos chamar "ipseidade “forma-se na intersecção entre o núcleo mais íntimo do nosso ser e as circunstâncias que nos envolvem desde a concepção...

O espaço-tempo constitui a primeira e mais fundamental dessas fronteiras... Não somos nem pura essência nem mera circunstância, somos a dança criativa entre ambas e a que a alma dá consistência...

Após o "berro" do nascimento - essa primeira afirmação sonora da nossa existência - começamos a ser moldados pela educação, pela cultura, pelas estruturas sociais que nos acolhem ou nos rejeitam...

Reconhecer estas fronteiras, sejam elas físicas, culturais, psicológicas e sociais, não significa submeter-nos cegamente a elas, mas compreender o mapa do território onde podemos mover-nos com maior ou menor adequação...

Não basta ser inteligente no sentido puramente cognitivo; é preciso desenvolver uma forma de "esperteza humana" que nos permita navegar conscientemente entre as normas estabelecidas e as nossas aspirações pessoais. Esta capacidade implica reconhecer que as fronteiras são simultaneamente limitações e possibilidades, tal como a margem de um rio, que ao mesmo tempo contém as águas e lhes dá direção. De facto, não há liberdade sem resistência, nem personalidade sem delimitação.

A tensão entre o ser profundo (o "mar infinito" da nossa essência) e a personalidade que as circunstâncias nos levam a desenvolver (a "onda personalizada") não é um problema a resolver, mas uma dinâmica criativa a abraçar. É desta tensão que nasce a nossa capacidade de expressão autêntica, como o botão da rosa que desabrocha precisamente devido às condições específicas que o rodeiam...

O espírito crítico, mesmo quando desconfortável, constitui parte essencial daquilo a que Henri Bergson chamava "élan vital", a força criativa que impulsiona tanto o desenvolvimento individual como o progresso social sustentável...

A individuação autêntica não acontece no isolamento, mas na relação. É essencial partir do "eu" através do "nós", reconhecendo que a comunidade não é apenas o contexto onde aparecemos, mas a própria condição que torna possível o nosso aparecer e o nosso caminhar consciente.

Esta perspectiva contrasta com duas tendências problemáticas da modernidade: por um lado, o individualismo exacerbado que ignora as condições comunitárias da existência; por outro, a identificação total com as circunstâncias envolventes, que reduz a pessoa a mero produto do meio.

O grande equívoco contemporâneo consiste em identificar completamente o eu - a ipseidade - com as circunstâncias que o rodeiam...

As fronteiras que nos delimitam não são prisões, mas sim as condições necessárias para que possamos existir como seres únicos e relacionais. Como um instrumento musical precisa de cordas tensionadas entre pontos fixos para produzir música, também nós precisamos das limitações que nos constituem para podermos expressar a sinfonia única da nossa existência...

Para aqueles que se sentem perdidos entre as expectativas sociais e os anseios pessoais, a resposta não está na fuga nem na submissão total, mas na compreensão de que somos precisamente o resultado criativo da tensão entre o infinito do nosso ser e o finito das nossas circunstâncias...

As fronteiras que nos delimitam são, afinal, as próprias condições que tornam possível a expressão da personalidade do nosso ser. Não apesar delas, mas através delas, descobrimos quem somos e como podemos estar no mundo de forma plena e responsável.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Versão completa em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10298

terça-feira, 26 de agosto de 2025

CONCÍLIO DO GALINHEIRO DOURADO

 

Uma Fábula geopolítica sobre a Farsa da Ambição no Ninho da Águia e no Galinheiro Dourado

 

No alto do Monte Olimpo de Bruxelas, onde o nevoeiro é feito de diretivas e o trovão do discurso político ecoa nos salões de mármore, os deuses menores agitavam-se. A notícia chegara como um raio: a grande Águia-de-cabeça-branca, do outro lado do oceano, mudara de humor. O seu piar, outrora beligerante e estridente, agora papagueava palavras estranhas: "paz", "negociação", "fim de hostilidades".

Isto deixou os deuses do Olimpo em desarmonia total. Durante luas, tinham dançado ao ritmo guerreiro da Águia, martelando armas no seu Monte em vez de pão, tecendo para o povo narrativas de demónios e heróis com o ouro que lhes era enviado. O Galo Gaulês, vaidoso e orgulhoso, e a Águia Negra Federal, pragmática e calculista, haviam-se convencido de que a sua sobrevivência dependia daquela guerra distante, na grande planície do Urso Pardo. Nesse sentido camuflaram os seus interesses com os desígnios da Cegonha (1) que sempre acompanhavam e controlavam.

A mudança da Águia-branca forçou a convocação de um concílio. Mas não no grande salão do Olimpo, onde todos os estados-deuses tinham assento. Não. Foi num anexo reluzente, um Galinheiro Dourado, que a Deusa dos Protocolos, uma figura etérea de suave cinzento e gravata invisível, a tal que substituíra o acomodado Lobo Ibérico do Gerês na condução dos destinos comuns, reuniu os escolhidos.

Estavam lá, entre outros, o Galo Gaulês e a Águia Negra, como é claro. O Leão Britânico, já fora da cerca do galinheiro, mas ainda a rugir à porta, observava. Mas, a final de contas,  onde estava o Veadinho Vermelho, que sempre alertara para a insensatez do conflito? Onde estava a Águia-rabalva, feroz e diretamente na linha de fogo? E que era feito do Lince Romeno, guardião de outra fronteira? Foram deixados do lado de fora, a cacarejar a sua inquietação de ignorados. O concílio não era para vozes dissonantes, era para consolidar a narrativa.

A missão era clara: voarem juntos até ao novo ninho da Águia-branca e convencê-la, com ar de subserviência, mas punhos cerrados de determinação, a não abandonar a guerra. A Deusa dos Protocolos lideraria a comitiva. O Lobo Ibérico do Gerês, que representava a vontade coletiva de todos os deuses do galinheiro, foi convenientemente esquecido. Aquele não era um assunto de vontade coletiva, era um assunto de interesse coletivo, mas apenas daqueles que se julgavam colectivamente donos do colectivo.

A cena no novo ninho da Águia-branca foi de um ridículo sublime. Lá estavam eles, o Galo e a Águia Negra, plumagens bem penteadas, rodeando o trono da grande Águia-branca, que os observava com um ar entre o enfastiado e o divertido. Pareciam pintos ansiosos por migalhas de aprovação, cacarejando em uníssono a velha cantiga: "O Urso é um demónio, a guerra é necessária, não podemos fraquejar".

A Águia-branca ouviu, bicou algumas sementes, e piou algo vago sobre "paz através da força" e “razões económicas”. Eles regressaram ao Olimpo, pavoneando-se como se tivessem obtido uma vitória colossal. Mas nos seus olhos lia-se o vazio de quem sabe que se humilhou por uma migalha de relevância.

Enquanto isto se dava, nas planícies da Ucrânia, os verdadeiros animais, os homens, continuavam a ser alimento para a terra, que já não acreditava em deuses de Bruxelas ou de Washington. O Urso Pardo, longe de ser o demónio desenhado nos mosaicos do Olimpo, estava sentado à sua mesa, pacientemente, oferecendo garantias que ninguém no Galinheiro Dourado queria ouvir. Porque ouvir significaria negociar, e negociar significaria admitir que a realidade não era o conto de fadas heroico que tinham vendido aos seus povos.

A grande farsa foi revelada. A União, que poderia ter sido uma fénix a renascer das cinzas da sua própria dependência, escolheu ser um papagaio, repetindo slogans gastos de um mestre que já nem os acreditava. Apostaram tudo no "tudo ou nada" e, no fim, quem tudo arrisca, tudo perde. E a factura, como sempre, estava a ser paga nos campos de trigo encharcados de sangue, longe do mármore limpo do Monte Olimpo.

O verdadeiro desafio nunca foi o Urso, nem a Águia volúvel. O desafio sempre foi olharem-se ao espelho e verem, não os deuses benevolentes que julgavam ser, mas apenas galos e águias menores, presos no seu próprio galinheiro dourado, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem. (Interpretação do conto em nota 2)

António da Cunha Duarte Justo

Notas em Pegadas do Tempo©: https://antonio-justo.eu/?p=10296

sábado, 23 de agosto de 2025

O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

 

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

 

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil…

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1)...

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado...

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas...

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores...

O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação...

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos...

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares...

É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Texto completo e nota em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10282