sexta-feira, 7 de novembro de 2025

O ÚLTIMO JARDIM

No alto de uma colina esquecida, existia uma quinta com muitas árvores, destacando-se nela ciprestes antigos. Chamavam-lhe “O Último Jardim”. Lá vivia Aurélio, um velho filósofo que passara a vida a estudar o espírito das máquinas e o silêncio do Homem.

Durante décadas, o mundo lá em baixo transformara-se numa rede cintilante de luzes, ecrãs e promessas. As pessoas comunicavam mais do que nunca, mas já não se olhavam. Trabalhavam, produziam, votavam, seguiam tendências e, no entanto, ninguém parecia saber porquê nem para onde ia a sociedade.
A cada ciclo eleitoral, a multidão subia à praça, esperando um novo messias político que prometia “liberdade”, “progresso”, “crescimento” e “inovação”. Mas o que recebiam era sempre o mesmo: um novo modelo da mesma prisão.

Aurélio observava a sociedade como quem contempla um doente que se recusa a aceitar o diagnóstico. Na quietude do monte, ele procurava um fio de esperança no tear desfeito do mundo. Olhando para o vasto latifúndio cultural à sua frente, um pensamento ecoou dentro de si, claro e frio como o ar da noite:
“A
humanidade não padece de falta de liberdade, mas da falta de limite. E quando o limite desaparece, a fronteira entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, o essencial e o supérfluo, o eu e o outro desaparece e a alma evapora-se.

Certa noite, uma jovem de nome Íris, sob um manto de estrelas, subiu a colina. Seus pés, pesados da poeira das cidades-mercado em ruínas, arrastavam o desaponto de uma busca. Outrora, aquelas terras foram um mosaico vibrante, um caleidoscópio de vozes e cantos. Agora, sentia o mundo achatado, reduzido a um deserto uniforme, um latifúndio estéril onde só germinavam as sementes da economia e do poder, ceifadas por um punhado de mãos. Em   Aurélio ela buscava uma resposta que o mundo lá em baixo já não sabia dar.
“Mestre, disseram-me que compreendes as máquinas. Elas agora decidem quase tudo! Decidem o amor, o trabalho e até o que devemos pensar. E a vida do dia-a-adia tornou-se em rotina aborrecida! Vive-se num mundo desarraigado, nutrido pelas miragens enganosas do liberalismo e de outras ideologias sem solo, que prometem um céu e entregam um deserto. Haverá ainda esperança?”

Aurélio sorriu com ternura.
“A inteligência artificial é o espelho mais nítido que agora tivemos. Mas o que ela reflete é a nossa própria sombra. Não temas o espelho, teme o vazio de quem não ousa ver-se nele.”

Íris um pouco confusa insistiu:
“Então a saída está em rejeitar a tecnologia? Em voltar ao passado?”

O sábio sorriu com brandura.
“Não, filha. A solução não está em voltar atrás, mas em relembrar. A tecnologia deve ser a continuação da nossa alma, não um deus faminto que a devora. O perigo nunca esteve no poder da tecnologia ou das máquinas, mas na nossa incapacidade de ver nelas a nossa própria humanidade refletida ao criá-las. Doutro modo torna-se num ídolo que devora os seus criadores.”

Aurélio e Íris desceram juntos ao jardim. Lá, entre árvores e pedras cobertas de musgo, crescia um pequeno altar com três palavras gravadas em pedra:
Limite. Relação. Responsabilidade.

Aurélio explicou:
“O limite é o contorno do ser; sem ele, tudo se dissolve.
A relação é o tecido invisível que faz do indivíduo um nós.
A responsabilidade é o amor tornado ação.”

Íris esforçou-se por suster as lágrimas.
“E quem ensinará isso às cidades?”

O filósofo sentiu em si as lágrimas de Íris correr-lhe pelo pensamento e olhando o horizonte eletrificado pensou para si: a vasta teia luminosa que conecta o mundo, o homem, na sua solidão essencial, nutre-se das próprias vibrações que o mantêm cativo, até que, insensivelmente, se transforma no sustento do labirinto que o envolve! Depois respirou fundo e respondeu:
“As cidades não se transformam por decretos, mas por contágio. Quando um coração desperta, tremem mil algoritmos. Quando duas pessoas se olham e se reconhecem, hesita o sistema inteiro. É assim que começa a cura.”

No dia seguinte, Íris desceu a colina. Levava consigo o sofrimento do mundo e no peito as três palavras que a levaram à autoconsciência.
Por onde passava, desligava um ecrã, escrevia um poema num muro, ensinava uma criança a plantar uma semente.
E em cada gesto simples, nascia o rumor de um novo tempo, de um tempo em que a sociedade deixava de ser máquina e voltava a ser jardim.

Epílogo

Aurélio morreu em paz, certo de que o seu nome seria esquecido.
Mas o Último Jardim floresceu como uma lenda: falava-se de um velho e de uma jovem que semearam uma revolução sem bandeiras; esta verdadeira revolução é feita de consciência, compaixão e silêncio.

E, pela primeira vez em séculos, o mundo não perguntava “para onde vai a sociedade”,
mas para onde vai a alma do homem

e essa, enfim, voltava a caminhar.

António da Cunha Duarte Justo

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terça-feira, 4 de novembro de 2025

UCRÂNIA E O REDESENHO DO MUNDO

 

O CONFLITO GEOPOLÍTICO NA UCRÂNIA E O REDESENHO DO MUNDO

 

A guerra na Ucrânia expôs as contradições do Ocidente e revelou que o mundo já não se organiza em torno de uma única hegemonia. Entre velhas potências e novos polos, o futuro exigirá reconciliação, complementaridade e coragem política.

A narrativa que se desmorona

Quando o conflito geopolítico na Ucrânia acabar, a classe política e o jornalismo europeus enfrentarão um sério embaraço. Terão de reconhecer que a narrativa que ajudaram a construir foi parcial, simplista e, em muitos casos, manipuladora e enganosa. Portugal, infelizmente, não escapa a esse enredo de formatação da opinião pública que foi conduzida a uma visão distorcida dos factos.

Durante anos, o discurso político-mediático formatou o pensamento coletivo, condicionando a perceção popular dos factos. Mas a realidade factual, uma Europa em declínio, subordinada a uma NATO e a uma burocracia de Bruxelas cada vez mais distantes dos valores humanistas, acabará por impor-se.

Portugal e o peso da submissão diplomática

O Palácio das Necessidades, símbolo da diplomacia portuguesa, tornou-se quase numa “casa de necessidades”, administrando interesses externos em vez de defender a identidade nacional. Portugal, com a sua experiência multicultural e o seu histórico de convivência entre povos, poderia exercer um papel exemplar na diplomacia internacional, defendendo, para isso, uma política externa baseada na irmandade e complementaridade dos povos, e não na submissão a blocos.

Washington e Bruxelas perdem credibilidade à medida que o mundo se reorganiza em torno de novos polos, como os BRICS, que representam uma alternativa concreta à hegemonia anglo-americana. A Europa, porém, insiste num modelo de dependência militar e ideológica que a prende ao passado.

A guerra como instrumento geopolítico

O que se apresenta como uma “guerra entre a Ucrânia e a Rússia” é, na verdade, um conflito instrumentalizado, um tabuleiro geopolítico em que a Ucrânia é usada como “cavalo de Troia” de um mundo velho, por potências que pretendem prolongar a sua influência global. O povo ucraniano, composto por diversas etnias que antes viviam em paz, tornou-se vítima de uma guerra que serve mais os mercados e as indústrias militares do que a justiça ou a democracia.

Países como Estónia, Letónia e Lituânia enfrentam idêntico destino: são peças menores num jogo de hegemonias. Historicamente, o Ocidente tem sido o mais agressivo nas suas políticas expansionistas, fomentando desestabilizações internas para justificar a sua intervenção. Trata-se de um expansionismo refinado e hipócrita, que utiliza as fragilidades dos pequenos para ampliar o poder dos grandes.

O vazio moral da Europa tecnocrática

Enquanto líderes como Viktor Orbán, em Budapeste, afirmam uma visão alternativa de soberania europeia, a União Europeia mostra-se incapaz de responder à mudança histórica em curso. Enredada em contradições, aposta na indústria militar e compromete o seu próprio futuro económico.

A prosperidade europeia floresceu quando predominavam governos social-democratas e conservadores moderados que eram os herdeiros do humanismo cristão e do capitalismo social que nasceram do Iluminismo e da doutrina social da Igreja Católica. Essa herança ética e filosófica foi sendo substituída por um tecnocratismo sem alma, afastado da experiência humana real.

A nova ordem multipolar

A nova geopolítica já não se organiza em torno de um único poder. O futuro do mundo será moldado por hegemonias partilhadas, em que Estados Unidos e China se reconhecerão mutuamente como parceiros e rivais necessários. A paz não virá da imposição de blocos, mas da interligação das economias e da complementaridade entre regiões.

Nesse cenário, a Europa e a Rússia só terão futuro se compreenderem que a reconciliação entre elas é condição de sobrevivência. Ou se reconciliam e colaboram, ou se tornam irrelevantes na nova ordem bipartida que se desenha. O mundo está a tornar-se bipolar, mas ainda há espaço para uma terceira via, a via da lucidez, da dignidade e da paz.

Há momentos em que se torna imprescindível interrogar a legitimidade das decisões proferidas em contextos de profunda incerteza, sob o prisma cultural e político-social, de modo a enriquecer o debate e integrar visões até então marginalizadas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10410

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

ENTRE A NOITE DAS SOMBRAS E O DIA DA LUZ

 Na aldeia de São Martinho das Fontes, o tempo tinha a respiração lenta do sino. O povo, embalado por essa cadência e embebido pela maresia, guardava na pele uma languidez dourada e, nas veias, o vigor salgado do mar.

O vento, mensageiro de memórias antigas, corria os becos e punha as janelas a falar: umas, em sussurros de receio; outras, em murmúrios de prece.
Era a véspera de Todos os Santos.
E como vai acontecendo com o andar dos tempos, a aldeia já não sabia bem o que celebrava.

Nas vitrines do centro comercial da vila vizinha, abóboras ocas e bruxas sinuosas entretinham um diálogo mudo de piscares luminosos, atraindo tanto os olhos curiosos das crianças como o sorriso contido de adultos. 
O riso metálico das promoções fundia-se com o alvoroço infantil, enquanto as mães, rendidas ao cansaço e à pressão da quadra, se deixavam levar entre prateleiras que sussurravam promessas de alegria instantânea.
Uma delas, Dona Amélia, segurava a mão do filho, o Tiago, de sete anos.
O menino queria uma máscara.
Ela hesitou.
Sabia que o dinheiro mal dava para o pão e o gás. Mas, ao olhar em volta, viu as outras mães comprando máscaras para os filhos. Sob o peso invisível daquela comparação, soltou um sorriso resignado e disse:
“Vá lá, Tiago, escolhe uma...”                                                                                                  

A criança agarrou uma caveira luminosa.
E Amélia pensou, sem o dizer:

“Será que é isto que o mundo quer que eu ensine ao meu filho? Que o riso vem do medo e a alegria do disfarce?”

No regresso, o vento pareceu escutar-lhe o pensamento e murmurou-lhe ao ouvido:

“Nem tudo o que brilha é luz, minha filha. Há brilhos que apenas escondem o escuro.”

À noite (véspera de Todos os Santos), a aldeia parecia ferida ao encher-se de sombras. As crianças, enfeitadas de demónios e fantasmas, percorriam as travessas com risos que não pertenciam à infância, e batiam às portas com vozes de ameaça disfarçada:                                                                                                                                                                  Doçura ou travessura!”


E o medo, vestido de brincadeira, passeava-se livremente.
Os risos pareciam leves, mas deixavam no ar um sabor vazio, como o de um pão sem miolo, e uma frieza reminiscente das tardes escuras de novembro.

Sentia-se uma tristeza nas casas meio adormecidas na sua caiada solidão, a contemplar as faces de abóbora que, em papel, consumiam de uma vez só o seu fogo efémero.
As velhas oliveiras da encosta, que guardavam na seiva o sal das lágrimas e da oração, estremeciam
e uma delas, muito velha, sussurrou à lua:

“Tantas gerações de mãos que rezaram sob mim... e agora vejo crianças mascaradas de fantasmas, brincando com o que nunca deviam temer.”

A Lua, de rosto magro e saudoso, perguntava-se se os homens ainda se lembravam que ela também iluminava os caminhos dos anjos, mas respondeu:

“Não é o medo o problema, minha amiga, é o esquecimento. O homem esqueceu que a morte é caminho, não destino.”

Mas o tempo, que tudo transforma, caminhou sobre a noite, e quando os galos cantaram, na manhã seguinte, o sino da igreja ergueu-se sobre a aldeia como um coração que desperta.


Era Dia de Todos os Santos.
E as mesmas ruas que na véspera ecoavam gargalhadas, agora acolhiam passos lentos e vozes baixas.
As pessoas subiam ao cemitério com flores e velas, como quem sobe um monte de esperança.
E as campas, antes frias, sorriram sob o toque das mãos humanas que as   vestiam de flores e velas. Ali até as almas dos finados pareciam espreitar entre as pétalas e o incenso, e as campas, que tantas vezes guardaram lágrimas, murmuraram uma melodia suave:

“Não temais a noite, que ela é apenas o véu da aurora.”

Tiago, o menino da máscara, foi com a mãe ao cemitério.
Levava na mão um raminho de crisântemos e no bolso, ainda o resto do doce da noite anterior.
Ao chegar junto da campa do avô, Dona Amélia ajoelhou-se.
Acendeu uma vela.
O lume tremia como uma oração viva.

Tiago perguntou:
“Mãe, o avô ouve-nos?”
E ela respondeu, num murmúrio que parecia também falar consigo própria:
“O avô vive noutro tempo, filho. Num tempo que não passa.”

O menino ficou a olhar o lume e, de repente, retirou do bolso o doce que tinha guardado e colocou-o junto da vela.
“É para o avô.”
E sorriu já com um sorriso leve, sem medo.

A chama comovida dançou mais alta, e o vento soprou suavemente.
Parecia aprovar o gesto.

No dia de Todos os Santos, as crianças da aldeia, já sem máscaras, saíram outra vez às ruas, mas agora, com os bolsos vazios e o coração cheio, dizendo:
Pão por Deus!”


E cada porta que se abria era uma bênção partilhada, não um negócio programado.
Quem dava, dava por amor, pelas almas dos seus.
Quem recebia, levava o pão como símbolo de amor e memória.

A aldeia parecia renascer nesse gesto simples: um gesto que a indústria não podia vender, porque não cabia em embalagem.

À tardinha, o sol desceu como um sacerdote sobre o vale e o velho padre da paróquia, sentado ao pé do cruzeiro, falava para quem quisesse ouvir:

“As sombras só assustam quem esquece o sol.
O Halloween celebra o medo da morte.
O Dia de Todos os Santos celebra a vida que não morre.
Um vende máscaras, o outro revela rostos.
Um alimenta o vazio, o outro sacia a alma.”

E acrescentou, olhando para as estrelas:

“Aqueles que brincam com a morte como se fosse um brinquedo, acabam por esquecer o valor da vida.
Mas quem contempla a morte à luz de Deus, encontra nela a porta da eternidade e vive sem medos.”

Naquela noite, Dona Amélia adormeceu em paz.
Sonhou com o avô de Tiago, sentado sob uma grande oliveira.
Ele sorria e dizia:

“Ensina o menino a escolher a luz, mesmo quando o mundo vende trevas em promoção.”

E quando o sino tocou de novo ao amanhecer, o vento levou consigo a voz do tempo:

“Entre a Noite das Sombras e o Dia da Luz, o homem escolhe o que servir: o medo ou o amor.”

 Na aldeia de São Martinho das Fontes, nunca mais o Halloween teve o mesmo sabor.

As crianças continuaram a brincar, mas agora sabiam que o medo só é senhor enquanto esquecemos o Amor.

E quando chegava o “Pão por Deus”, cada pedaço de pão era uma semente de eternidade partilhada entre o céu e a terra, entre os vivos e os que já vivem noutra forma de luz.

 

António da Cunha Duarte Justo

© Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10399

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