A Terra Prometida é a Realização da Promessa Bíblica
António Justo
Encontramo-nos na Semana da Fraternidade entre Cristãos e Judeus. Na Alemanha as comunidades cristãs e judaicas, especialmente durante esta semana, organizam muitas iniciativas em comum, no sentido da promoção do conhecimento e respeito mútuos.
A Bíblia é o documento base da existência do povo de Israel, constituindo como que a sua identidade normativa. Deus escolheu o povo judaico que se deixa formar e conduzir por Ele ao longo da história, surgindo assim uma relação singular do judaísmo na história. A Bíblia, um livro feito de livros, não encontra paralelo noutras civilizações. Gerações consecutivas foram co-autores escrevendo-a durante centenários. É uma literatura contínua que trata sempre da mesma relação de Deus para com o seu povo. A Tora (Pentateuco) complementada pela mischna (tradição oral da Tora) dá forma ao caminho de Israel e determina o ser judeu no presente e no futuro. O judeu vive na continuidade viva da tradição sempre actualizada. Ao Sábado os judeus juntam-se na sinagoga para recitar a Tora que deve ser toda lida durante o ano.
Já no primeiro livro da Bíblia, no Génesis o Deus de Israel é um Deus diferente dos outros Deuses; é mais que um Deus para um povo ou uma nação. Aí se declara a igualdade de todo o Homem. Mesmo mais tarde quando se estabelece a máxima do “olho por olho, dente por dente” isto significava que o escravo e o senhor não deviam ser julgado com diferentes medidas, além de estabelecer um limite ao exagero da vingança. Já no período arqueológico do judaísmo se determina a inviolabilidade da vida de todo o indivíduo.
A bíblia de Israel é também bíblia do cristianismo. Jesus esclareceu a questão dizendo “Eu não vim para destruir a Tora…”. Os Judeus cristãos dos inícios do cristianismo, com os seus autores do Novo Testamento (NT), não acentuavam a distinção entre novo e velho testamento. A partir do século segundo acentuam-se as diferenças atendendo também ao alargamento do cristianismo a muitos povos desconhecedores do povo de Israel. A necessidade de separação colocou aos cristãos a questão da validade do AT e do especificamente novo.
Então, tal como acontece na luta do adolescente pela auto-afirmação em relação aos pais, segue-se uma fase de concorrência entre cristãos e judeus. Marcion (que morreu no ano 170 d.C.), da comunidade grega, assume uma atitude agressiva, acusando a Igreja Católica de judaísta e contrapondo o Deus da lei antiga (AT) ao Deus do amor (NT) e vê em Paulo o autêntico discípulo de Cristo. Também no estudo hermenêutico dos diferentes evangelhos do NT se pode constatar vestígios das discussões e divergências mais ou menos judaizantes, em curso nas diferentes comunidades da Igreja. Marcion vê dum lado o Deus justiceiro (Deus da lei, AT) e do outro o Deus amoroso (NT) com o mandamento do amor ao próximo (ao estranho). Defende a sua ideia de cristianismo como uma religião totalmente nova e apresenta o Judaísmo como a religião do “vetus testamentum” a ser superada. A Igreja condenou Marcion como herege (mais tarde, pelo ano 400 dá-se a fusão dos seus seguidores com os maniqueus).
Para a Igreja AT e NT não se encontram em contradição mas complementam-se, reconhecendo as duas partes. Assim a Igreja manteve a bíblia completa integrando a Septuaginta que é uma tradução judaica. O segundo testamento só pode ser compreendido na perspectiva do primeiro e é compreendido pela Igreja como sua continuação. Naturalmente surge o problema da compreensão da relação das duas partes. A primeira é a base do judaísmo e na relação entre judaísmo e cristianismo há respostas insatisfatórias. Por isso cristãos e judeus juntam-se na procura de novas leituras da Bíblia.
As ideias de Marcion mostraram-se extremadas nas suas consequências, acusando os Judeus de se negarem a aceitar o Messias Jesus como seu Messias. A destruição do Templo do templo pelos romanos e a anatemização dos judeus passa a ser refinadamente usada por alguns para deslegitimar o direito daquele povo à existência mostrando-se fatal e duma injustiça monstruosa ainda hoje presente na negação ao direito de existência do estado de Israel.
O AT implica uma leitura própria e independente não podendo ser limitado à interpretação cristológica. A leitura e compreensão do AT deve partir duma posição fundamental de que os textos têm um carácter poético e literário que transcende a intenção dos seus autores, como defende o teólogo católico Erich Zenger.
Sob este ponto de vista a interpretação transmitida permite uma doutrina analógica orientada para a vida concreta de cada um. De facto Deus revela-se mas cada um pode fazer diferentes leituras do mesmo dito. Hermeneuticamente podem-se ler os textos a diversos níveis. Nós, cristãos compreendemos a Bíblia diferentemente dos judeus mas não melhor que eles. Estamos dependentes dos judeus. Cada um tem a sua teologia independente sem necessidade de se missionarem uns aos outros. Cristãos e judeus adoram o mesmo Deus que os une e age nos dois. João Paulo II falava do “povo da aliança”, ao referir-se aos judeus. A prática do diálogo pode diminuir assimetrias e ajudar Judeus a um enriquecimento mútuo. Com uma hermenêutica do respeito mútuo e com a deposição das armas da desconfiança e dos mal-entendidos, no reconhecimento bíblico de que “tu deves reconhecer o outro como outro”, constrói-se uma ortopraxia da paz. Rosenzweig dizia: também nós, judeus, estamos dependentes dos cristãos…”. Para os cristãos Deus revela-se como pai, filho e espírito santo. O Deus único trinitário pode abrir os horizontes para um diálogo também com o hinduísmo e com o budismo.
Judeus e cristãos lêem e interpretam cada um à sua maneira dentro da mesma tradição. Uma leitura não se pode reduzir à outra. Neste sentido, os cristãos lêem os textos reconhecendo os judeus como primeiros destinatários e irmãos mais velhos. O judeu lê a Bíblia como o agir de Deus na Bíblia e no seu povo e o cristão lê a Bíblia como o agir de Deus em Jesus Cristo e na comunhão dos cristãos com os judeus e os outros povos. Judeus e cristãos sentem-se ligados pelo sentimento da gratidão. Cristãos e judeus estão de tal maneira interrelacionados que o diálogo entre cristãos e judeus tem um carácter único e é mais relevante que o diálogo com qualquer outra religião, acentua Erich Zenger.
O povo de Israel e a Igreja trabalham na mesma missão de realizar a mensagem do Reino de Deus.
Para o povo israelita há três elementos constitutivos na sua existência: a eleição por Deus; a promessa do país (terra prometida) como espaço e base da vida. O regresso do povo de Deus à terra dos seus antepassados revela-se como concretização da fidelidade divina. Segundo a Tora, cada povo tem direito à sua terra (Deuteronómio 32). A discussão política em torno de Gaza não deve perturbar o diálogo cultural e religioso; muitas vezes as pessoas são mais exigentes para com os judeus do que para com os seus adversários!... Defende-se uma justiça com dois pesos e com duas medidas.
O problema é também pessoal atendendo a que todos vivemos atrasados em relação às exigências que colocamos aos outros.
Haverá sempre questões em relação às imagens de Deus. Se não houvesse diferentes compreensões de Deus não se justificaria a existência de Judeus e de cristãos. Não podemos passar com a rasoira da igualdade contra a diferença. Essencial é a relação de respeito mútuo.
Como exemplo de respeito para com o judaísmo passo a relatar o que se passou em 1978 comigo na qualidade de celebrante da eucaristia e com um aluno judeu que queria participar nela como acólito. Eu deixei-o acolitar mas chamando-o à atenção para que ele ao identificar-se comigo não deveria distanciar-se da sua religião. Passado algum tempo fui convidado pelos seus pais para a celebração da Bar Mizwa do filho, na sinagoga de Lisboa. O respeito pela diferença fomenta a relação e a paz.
António da cunha Duarte Justo
Teólogo
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