Um grito de angústia contra o comodismo da justiça
António Justo
Entre o Desespero e a Esperança!
O “anjo dos pobres” viveu e vive, na Índia, junto dos que moram do lado sombrio da vida e que dela só conhecem os dias do calvário. A Nobel da Paz, que tudo deu pelos pobres, era assolada por um desespero tão tenebroso que não deixava lugar para uma réstia de sol. Na angústia das sombras partilhadas ela pedia contas a Deus. Custa-lhe ter de verificar que a vida não se identifica com o mundo, que ela apenas se expressa nele. À superfície, sempre bem disposta e com um sorriso nos lábios, expressava a harmonia do agir com Deus na criação. O seu interior porém era fustigado com tempestades de dúvidas que se manifestavam na discussão existencial com Deus. Num livro, com as cartas de Madre Teresa, está documentada a sua zanga com Deus. Numa das cartas ela escrevia: “ O lugar de Deus na minha alma está vazio – em mim não está Deus”. No sentir de Teresa manifesta bem a sensibilidade do Homem do século XX e a sua expressão cristã contemporânea. A sua autenticidade tem a ver com o nosso tempo.
A noite escura de Teresa é muito diferente da “noite escura” de João da Cruz. Para a melhor compreender teremos de ter presente o cenário existencialista do mundo moderno. A era moderna que apela para as luzes da razão é por outro lado a era das trevas do espírito, com muitos luzeiros que espalhados pelo mundo lhe vão dando energia e um pouco de calor. A queixa de Teresa é sinal da confiança ofendida no meio do mutismo do mundo, é a queixa contra a pretensa razão. Também Deus é responsabilizado pela vida não vivida. Quando chega a hora dos tiranos serem derrubados e quando chega a hora do direito dos pobres, a era da graça? Onde está Deus, por onde anda a razão? Com Deus morreu a razão! Os mesmos que mataram um mataram a outra. Todo o mundo actua sem ter notado nada.
A sua simpatia e identificação com os pobres não tinham limites. A miséria e a pobreza do mundo não a deixavam indiferente. Em 1961, apesar de já ter alcançado muito, a nível institucional, em benefício dos pobres, a dúvida acompanha-a: “Domina uma tal escuridão que eu efectivamente não posso ver nada.” Este estado de dúvida religiosa purificadora, na vida da fé tem uma correspondência a nível epidérmico na dúvida metódica da filosofia. A vida tomada a sério não deixa ninguém indiferente nem se acomoda a tabus ou explicações simples. Ela espicaça espíritos de grande reflexão e prática. Teresa encarnou nela a dor da pobreza e da miséria a brotar em tanto rosto indefeso e inocente. Ela sabe que não se pode considerar o mistério da redenção sem o mistério da trindade. Aquele tem sido muitas vezes deformado devido ao desconhecimento deste e ao domínio dos sistemas sobre a pessoa. A Madre Teresa lança um grito de angústia contra o comodismo do continuar assim. Na noite escura do sofrimento também Deus se torna escuro. Aí só ajudam as fórmulas, o rito!... Quando se estafa demasiadamente a responsabilidade surge o tempo do deserto, a noite fria ajudando então as formas litúrgicas. Estas ajudam-nos a não nos esgotarmos na dúvida, mesmo que as palavras e os gestos não pareçam nossos. Isto até que tomemos conta de nós no amanhecer duma esperança radiosa.
Quando a dor e a miséria nos bate à porta e a deixamos entrar surge então a vivência do deserto e a solidão da vida. Aí, no descampado do vazio, a nossa alma alcança os limites do horizonte. Aí se desmascara a ideia de Deus e de nós mesmos. A folhagem das ideias corre com o vento e esvai-se na imensidão do limite. Não há mais a sombra duma árvore, o aconchego duma ideia ou um regaço onde nos proteger. Nesse estado torna-se presente o bramir da fome do mundo, o frio da vida no rescaldo do sol: Luz e treva na mesma dança. É noite em pleno meio-dia! Do nosso ser resta aí só um erguer de braços ao céu de prata fria e o amargo cair sobre a areia branca num sussurro de praga contra aquele Deus indiferente e distante, que nos deixa sem resposta. Apenas fica o bater de corpo naquela terra apática que já não gera! Nesse momento sou já o desespero ajoelhado, já cansado do horizonte dum céu que não é meu! Torno-me terra cansada, de tanta miséria regada, só lama contaminada.
Oh Deus, porquê tanta dor, porquê tanta miséria?
Num primeiro momento só resta o fremir do silêncio na imensidade dum céu mudo. Depois as nuvens negras do limite. A seguir, as tempestades da alma entram em sintonia com as da natureza e da sociedade. Sucede-se-lhe a acalmia… É a relação trinitária a acontecer, num mesmo instante a realidade de incarnação-morte-ressurreição a expressar-se.
Deus não precisa de súbditos nem de seguidores obedientes
Depois, no tempo da calmaria e da colheita surge talvez a pena por se ter ralhado com Deus. Alguns, mais sensíveis são posteriormente acompanhados por uma depressão da alma, que muitas vezes é assistida por uma religiosidade sombria, um pietismo rançoso que desconhece a infância do divino, que só aponta para o crucificado. Um mundo interior sem mãe! Um mundo que só reconhece o Outono e o cair das folhas não conhecendo a árvore no esplendor dos seus frutos. Fixam-se naquela árvore da cruz que reprime a vivacidade e a alegria de viver, aquela árvore sem Cristo, talvez só presente na seiva. Sim, também Cristo se chateou da figueira que naquela altura não tinha figos! Ele sabe porém que Deus não é aquele comerciante e mesquinho castigador. Deus não precisa de súbditos e de seguidores obedientes nem quer uma religião consolada e alimentada por um sentimento de culpa. Ele é a seiva da árvore inteira. Não precisa de pastores reduzidos a cães de guarda.
É fácil apoderar-se de Deus para depois se ir lanchar com ele ou ir encurralá-lo nalgum lugar ou nalguma ideia. A experiência da “noite escura” não é prova à fé como pensam os que pretendem fazer de Deus um tentador. A”noite escura” é crise pura. É a noite do monte das oliveiras onde não há salvadores. Nela se compartilha a dor dos pobres, a calidez do universo; ela é dor seca de solidão sem sentimento, é a mesma dor do Jesus abandonado, uma dor fria sem consolo, sem Deus. É fácil não tomar a sério a dor da ausência de Deus refugiando-se no argumento de que “Ele lá sabe”. Porquê tanta discrição na libertação dos miseráveis. Por que é que nós homens não reconhecemos a dignidade dos fazemos inconsoláveis?
A dor não conhece tão-pouco um Jesus invejoso de premeio. Jesus é a dor do mundo; quem a sofre e assume participa directamente na redenção do mundo, torna-se co-redentor e artífice da criação. Aí no abismo da escuridão, se gera a luz e o que se faz é obra de Deus, o mistério trinitário a acontecer. O pobre é o rosto de Deus que se mostra no Filho, no Homem, no crente e no descrente.
Teresa não se deixa prostituir, permanece fiel a si mesma e deste modo reconhece a seiva divina a brotar nela e na humanidade. Tem tempo para se ocupar com Deus e com as suas imagens. Sabe que “a noite escura” também é a hora de Deus, pese isto embora a muitos sacerdotes do povo. Fora do aconchego da tradição o sentir religioso é diferente e tem por companheiro a dúvida… A oração, por vezes, já não obedece à fórmula; o acesso a Deus torna-se mais privado perdendo o carácter de audiência. Em Teresa transparece também a consciência do nosso tempo. Antigamente, numa mentalidade dualista, confiança e medo eram expressões da proximidade ou distanciamento de Deus. O Deus trinitário porém nunca se encontra longe ou perto. Ele está sempre presente quer na paixão quer na ressurreição.
A vida fala no silêncio
As pessoas encontram-se demasiadamente ocupadas com mandamentos, devoções, ideias sobre isto e aquilo, sobre Deus e o diabo, não podendo questionar-se a si, questionar Deus, a vida e o mundo. Distraem-se e são distraídas! Fazem de tudo roupagem para se cobrirem ou enfeitarem como se a vida fosse um teatro de jardim infantil. No desejo de se ser encoberto pela ramagem do jardim, repete-se o momento em que Adão foge à pergunta de Deus “Adão onde estás?” Adão já não é, ele apenas está por aí perdido!
O medo escurece o caminho para Deus, para nós próprios levando-nos a viver do outro lado de nós, na segurança. Aí não se vive, criam-se intervalos da vida: trabalha-se, reza-se, canta-se, chora-se e baila-se. É a pegada dum só pé a que falta a do outro!...
Deus não se zanga da nossa zanga com Ele. Ele não é ultrajado sozinho. Isto corresponderia a uma ideia estranha dum Deus não trinitário que veria a Sua bondade condicionada ao sacrifício e à penitência. Muito ateísmo e arrogância nesta ideia de Deus, a ideia dum Deus vingativo, como se Deus se alimentasse da penitência, do desagravo e da dor. Como se Ele e nós não estivéssemos imbuídos no mesmo mistério!... A nós parece fazer-nos jeito abusar da oração para alcançar milagres, para nos agarrarmos a alguma coisa materializada, como se ele não fosse vida, como se ele fosse um estranho! Nas mãos de Deus estão as nossas mãos, numa acção comum.
Cada estação tem a sua vivência, a sua verdade, a sua cor. Numa é a altura da alegria e do louvor, noutra o momento da indignação, o suspiro do total abandono no calvário. Sim também nos Slums e nos Puffs, na miséria da heroína e de SIDA, também aí se encontra a Paixão por acabar, aí é o momento do abandono, o instante do ateísmo profundo. Aqui na sombra da Páscoa, na Paixão do ser humano, a”noite escura” é processo, é Domingo à Sexta-feira. Somos Cristo a sofrer!
Na amargura da necessidade e da dúvida surge o vazio, a ausência. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” O silêncio, a miséria tornam-se insuportáveis. Deus em tudo e em todos questiona-se a si mesmo. Não precisa de defensores, de cães de guarda, gordos e cientes do seu Senhor, de cães de guarda anafados e cientes do seu estado no Estado. Estes estão alheios a Deus e ao mundo, estes lavam as mãos num povo toalha, sim, num Deus toalha. Estes desconhecem a natureza de Cristo e separam tudo para melhor mandarem, mandarem de fora, não de dentro onde a Realidade acontece.
No momento do abandono não se sabe o que se faz nem o que se diz, é o momento do vazio. A vida também fala no silêncio; a resposta está no silêncio, mesmo quando Deus se cala. Deus é mais que meu vizinho! No meu vizinho encontro esse mais.
A dúvida é um atalho para o meu encontro
A dúvida é um pressuposto para o encontro de mim mesmo, um momento no processo de desenvolvimento. Para me encontrar tenho de me perder. A dúvida é um caminhar atento e em presença, um caminhar em conjunto para o próprio encontro no encontro do outro. De facto encontramo-nos demasiadamente embrulhados para sentirmos o próprio corpo, a própria alma, o próprio ser. Muitas vezes perdemo-nos e deixamo-nos enganar pelos invólucros das ideias de Deus, de vida, de bem, de sociedade, etc. Além disso há muito comerciante só interessado no negócio das fardas.
A dúvida permite a contradição, a expressão polar da vida. No decorrer do desenvolvimento, sistemas e instituições perdem a sua relevância medianeira no encontro com a realidade que passa a ser um processo entre ipseidade e alteridade indefinida, um processo que não pode ser institucionalizado numa forma de vida ou de estar, mesmo a pretexto do bem e da felicidade. A vida acontece em comunidade, é a comunidade na realidade trinitária. A instituição é apenas muleta ou tapete.
A vida é uma poesia, uma oração sempre a ser recomeçada. A devoção, a ideia, a certeza reduzem-se muitas vezes a materialização do espírito. Uma concretização do espírito, a miúdo, tornado pedra, onde se tropeça a caminho da verdade e do bem! Nesse caminhar não se pode ficar entre fé e dúvida no equilíbrio do artifício. Somos campo de batalha sem vencidos nem vencedores.
Na voz dos mortos há uma sonância por Deus e na miséria dos que vivem sem sol na vida uma queixa que quer promessa, uma dissonância que quer ser integrada no concerto universal. Não se trata aqui só da acústica, da atmosfera como podem querer muitos arquitectos do institucional, do conceptual… Não se trata só do existir, do estar aqui. Trata-se da vida toda universal e indivisível, da vida toda em todos.
Teresa, a tua experiência é a de muitos que, na enxurrada da vida, querem represar as cheias. Esta vontade de não querer náufragos chama por Deus para ouvir as vozes dos mudos de tanto sofrer. Na minha dor pretendo de Deus um coração maior que o meu. No meu desespero quero acordá-lo. Porque deixas andar à solta esses lontros e bem anafados que vivem do engano e a enganar? Olha, não vês aquela criança desviada, violada, assassinada, aquela mulher batida, aquele pobre com fome. Afinal, o que se passa contigo, Deus?! Não são eles a outra parte de ti? Porque não brilha o sol da alegria deste lado? Porque fica a sombra da vida aqui. Porque devem as lágrimas dos outros dar o sal para outros temperarem a sua vida? Não vês como os injustos vencem? Também tu fazes parte da injustiça! Porque só me resta a vivência de Job?
Naturalmente que tu te desculpas que te encontras do outro lado das pessoas, que elas se não descobrem e consequentemente não te poderão encontrar! E dirás: Eles procuram-me fora deles, na estrutura, fora dos outros, por isso andam tão perdidos e desencontrados. Quando se encontrarem, as lágrimas na face do mundo terão menos sal porque estas serão então as suas…
A dor é tal que por vezes me separa do todo, de Ti. Então encontro-me solidário, só com as vítimas, deixando de ver o seu outro lado. Dirijo-me ao seu outro lado na condenação da tirania na busca dum maior pulsar do que o do coração humano. Como a tua outra parte é também minha não posso nem quero conformar-me com a tal realidade. Não quero ver o meu grito sufocado por orações nem abafado na paz da igreja ou da política. Também o desespero precisa da sua hora! A ele segue-se a libertação, ou seja, a salvação!...
Aqui no canto chão, neste gregoriano ressoa a voz triste dos sem voz, os suspiros dos da valeta, a tal voz de Deus despercebida. Nela porém se esvai a fé n’Ele tal como o incenso ao ser queimado, como aquelas vidas queimadas à sombra de palavras e sistemas de que só o fumo parece restar, palavras máscara que permitem que a sua alucinação da vida continue apenas no discurso, no texto.
A continuidade da injustiça – uma constante com foros de cidadania
A persistência da injustiça nas instituições, a sua eficácia nas diferentes formas de governo e nos diferentes estilos de vida individuais, é a maior constante observável no contínuo suceder dos sistemas humanos ao longo da história. O argumento dos avanços históricos continua a ser ópio para incautos. Progresso à custa do Homem particular e da dignidade da maioria…
A modernidade dá continuidade à avalanche dos sem fala, do indizível dos sem rosto, onde a esperança morreu num reino de tiranos de caras lavadas sem semblante. De resto, continuaremos a cantar cantigas de amigo procurando o rosto do homem nos segredos da natureza. Entretanto o Teu amor espalhado nas favelas continua a chamar por ti, por mim. O meu amor por ti na favela, me impede, por vezes, de te ver e de te consolar na almofada da Igreja e nos nichos da política. Lá no irmão longe tu irmão Deus és o meu irmão que amo. Lá nele me poderias amar também tu que és frágil também. Porquê tanta divisão, tanto partido, tanta religião? Porquê o cidadão a explorar o cidadão? Nos lares reina a escuridão, na ágora a treva, nos espaços públicos a confusão. Nas cozinhas as baratas e na praça as ratazanas.
Oh se o mundo se deixasse olhar, se permitisse o olhar do pobre no seu olhar! Nesse caso surgiria a caridade e então aquele olhar de mendigo me (te) testemunharia. Então uma época da graça surgiria onde os pobres não andariam mais à mercê e a misericórdia não seria mais uma humilhação. Em contrapartida tu que não te deixas raspar do meu ser, choras desconsolado em mim, aquilo que eu não faço, aquilo que a correcção política nunca faz. Continuas incompreensível porque não queres simpatia porque não és poder. És porém exigente ao pretenderes dar-nos um novo coração e um novo espírito.
Tu, Deus, és o meu vizinho!
De gatas terei de começar de novo, sem mão a ajudar-me. Sei que és um Deus da graça onde a liberdade está em casa e não na boca dos que a anunciam. No teu olhar bondoso as minhas ilusões desaparecem. O mal e as lágrimas que a favela chora são, contigo, a acusação do poder e da violência. Tu, Deus, és o meu vizinho!
Madre Teresa tinha razão em revoltar-se contra ti. Ela sabe que em teu nome, em nome do poder e do costume, se afirma e dá continuidade à injustiça. Eles sabem que a tua relação é pessoal, do eu para o tu e do tu para o eu. Por isso não Te querem como vizinho. Ter Deus como vizinho não é agradável. O teu amor e a tua graça, nosso bem individual e comum, foram encarcerados na instituição e sistemas, em estados, religiões e partidos, em cada um de nós... Assim pode o mal andar à solta e ganhar foros de cidadania. Teresa diz-nos que já chega de jogo da cabra cega, que vai sendo tempo da metanóia.
O homem na tentativa de tornar o povo ovelha perdeu a humanidade para passar a ser cão, cão de guarda do que não lhe pertence. Cães vadios guardando e vivendo da degradação e da inércia do outro num campo de concentração. Abstracções não se amam! Deus é pessoal, conhece-te pelo nome, ele é povo mas não massa inerte. O amor não é abstracção, é relação a dois, a três. Também o próximo é uma singularidade, uma pessoa onde se concretiza o amor ao todo. Este começa naquele.
Teresa sentiu cedo o chamamento: “vem sê a minha luz!” Este foi o chamamento de Deus a Jesus, a cada um de nós, à criação inteira! Porque continuar a adiar a incarnação?
António da Cunha Duarte Justo
2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário