Na infelicidade andamos desencontrados de nós mesmos
António Justo
Numa altura em que vivia em comunidade, foi assinalada, com surpresa, a minha afirmação de viver feliz mas sem gozo.
A felicidade, a alegria interior, não tem razão para o ser. Acontece no centro de nós mesmos, à margem de razões para isso. Já o gozo não; ele depende das circunstâncias, depende também do outro. Geralmente andamos à nossa procura, angariando fora de nós o que está dentro. Distraídos esquecemo-nos que dentro e fora são pólos duma mesma realidade mais profunda; a verdadeira vivência (felicidade) acontece no centro de nós mesmos onde se encontra um tesouro soterrado.
No cruzamento do nosso corpo com o nosso espírito encontra-se a onda de ressonância com o todo, com o universo. No chão (no nivelado) do espaço e do tempo não há só a dimensão do horizontal, a linha do passado e do futuro nem apenas a linha vertical do alto e do baixo, do céu e da terra. A Realidade é a-perspectiva, nela tudo flúi, tudo é complementar. Os extremos tornam-se becos sem saída, verdadeiros desvios da Realidade. A felicidade acontece no meio, no aqui e agora duma Realidade mais abrangente entre o pólo material e espiritual. Os extremos tocam-se e no seu limiar ressoa a onda do transcendente e do imanente. Acontece incarnação e ressurreição numa complementaridade de ciência arte e religião.
A felicidade depende de nós, é uma condição de espírito, do nós a caminho. A felicidade é um filão que jorra no nosso íntimo sem passado nem futuro, sempre presente na vivência dum presente no todo a acontecer (kairos). Não pode ser procurada no passado nem no futuro, na recordação nem na aspiração. Estas são a parte de fora de nós, uma visão numa perspectiva determinada. Aí, as ideias e os sentimentos circulam sem nós e até mesmo contra nós. Do mirante do nosso intelecto apenas podemos fotografar a realidade, à margem da mesma, com as tonalidades positivas ou negativas das nossas ideias que determinarão a matriz (o negativo) dos nossos sentimentos. Aquele formata grande parte da vida que passa a ser uma cisma sobre ideias e sentimentos: um depender de ideias, um viver em segunda mão. Em vez de actores da vida tornamo-nos espectadores perante um palco de ideias positivas ou negativas. Geralmente permanecemos numa ideia positiva ou negativa ampliada num sentimento de gozo ou de sofrimento. Por isso andamos desencontrados de nós mesmos, longe da Realidade e consequentemente distantes da felicidade.
Assim a procura da felicidade torna-se vã pois não reconhece a realidade de nós e do mundo. De facto, a vida, tal como a natureza tem altos e baixos, vales e montanhas, Inverno e Verão. Ela é mudança sendo-lhe subjacente a alegria de viver. A felicidade não está no pensamento como o ano, a natureza, não se reduz ao tempo. A vida, a felicidade encontra-se na graça do viver.
A realização de desejos é apenas como a brisa que passa, que movimenta as folhas na sua superfície dando-lhes o gozo da frescura. A mesma brisa, porém, no Inverno acentua o sentimento do frio presente. Se reconhecemos, no nosso ser, o ser da temperatura, o frio e o calor serão apenas momentos da sua realidade. Se no Inverno nos tornamos infelizes por não termos o Verão procuramos fora de nós o que está dentro de nós, o verão e o Inverno, o gozo e o sofrimento. Não podemos colocar a nossa felicidade no aparecer das folhas primaveris porque então a sua perda no Outono trará consigo a lamentação. O acto de dar à luz é processo, faz parte integrante do acto da geração e da gestação. “No princípio era a Informação (o Verbo) e esta se fez carne” constatava João e Paulo tinha a experiência do “Cristo (o Outro) vive em mim”.
O gozo e o sofrimento são como o ir e vir, como a melodia, em tom maior ou menor, do acenar das folhas das árvores no passar do vento. Também nós, como o tempo e o vento, sempre em fuga descontente, fugimos à mudança na procura dalguma folha fixa. De nós e da realidade registamos apenas a fuga, a passagem, as folhas puxadas pelo vento que caem no Outono, sem percebermos que na sua queda se abre um novo horizonte, que no cair da folha se mostra o ser da árvore. O sentimento profundo da felicidade acontece na mudança, na metanóia e não num momento cristalizado duma queda aparente. Nela a melodia da felicidade trespassa os tons do gozo e da dor.
Num registo linear da vida somos levados a registar apenas os momentos de alegria e de sofrimento, numa realidade mais profunda. Não somos só palco; somos mais que o tempo, mais que as estações do ano, mais que obrigações e necessidades do dia a dia. Somos mais do que o clima e o tempo que parece e aparece.
Partindo duma pedagogia dialéctica para dominar o dia a dia, e chegarmos à felicidade há que começar por abdicar de ideias e de sentimentos negativos e esperar pelo despertar da Primavera em nós. Então virão os passarinhos abrigar-se nos nossos ramos, nas hastes da nossa natureza e farão nelas os seus ninhos. E nós, como parte da sua melodia, ingressados no seu espírito, estaremos, então, preparados para tomar decisões na ressonância com o todo.
Estamos chamados a dar à luz a realidade e não só a pensá-la a partir do de fora dela. Será preciso gerá-la no nosso interior e libertar-se dela, num acto de partilha e libertação, como o da parturiente… Para isso há que mobilizar a vontade na descoberta da essência do nosso ser e descobrir o ciclo das próprias dependências e hábitos. Então reconheceremos em nós a essência da natureza com as suas estações à superfície, o nosso ser de árvore que para dar novos frutos (alegria) perde as folhas (sofrimento) arrastadas pelas ventanias do Outono. Pressupõe-se um processo de desprendimento de ideias e de desapego de sentimentos, um deixar de ter e possuir para ser. Abertura e desprendimento não significam engolir sem mastigar mas pressupõem uma atitude de reconhecimento e agradecimento perante tudo e todos. Tudo é oferta, e, uma vez em sintonia com o todo tornamo-nos benevolentes, passando a abençoar-nos ao abençoarmos o mundo.
A alegria antecipada é a irmã do medo. Podem, por vezes, implicar alívio. Não é o outro que me pode tornar feliz ou infeliz; com ele posso ser feliz. Não se trata de ter uma alegria, um gozo ou uma tristeza. A felicidade acontece a nível não do ter mas do ser. Ela vem de dentro e não de fora. De fora vem o gozo e o sofrimento que se dão no ego. Muitas vezes usamos como substitutos da felicidade o sexo, o álcool, a comida. Procuramos apenas ter, dominar e receber reconhecimento, quando o essencial seria procurar entrar na ressonância com o outro.
A felicidade é um estado que suporta o gozo e a dor. Quem procura o gozo ou foge à dor anda sempre dois paços atrás da felicidade e três atrás de si. Parte da falta e não da abundância. A felicidade encontrada e vivida é como o Sol que traz calor à paisagem. No interior sábio, de cada um de nós, encontram-se as correntes das melhores ideias e dos melhores sentimentos. Trata-se de abrir caminho para elas e então virão ao de fora na estação apropriada. Então chegará observar sem analisar para descrever sem explicar.
No teatro da vida actua-se, não se prestam provas. Cada qual tem o seu ciclo de tempo com os seus ciclones e anticiclones, pressões e depressões. Uma nova consciência da realidade, na complementaridade da pequenez e da grandeza, do espírito e da matéria, do eu e do outro, conduz a uma nova vivência da Realidade una e diversa. A participação na divindade conduz à compenetração do que o Evangelho descreve como experiência do reino de Deus. Aí acaba a imanência e a transcendência. A transcendência emerge na criação como o som musical da guitarra na harmonia das notas. Aí acontece individuação na consonância da tríade eu tu nós. Ao tocarmos as cordas do nosso interior possibilitamos a experiência da felicidade em nós como ressonância do divino no ser que Ele também é. Uma vez entrados na casa do ser onde mora a deidade as tempestades e bonanças das nossas ideias e sentimentos passam a ser parte integrante da vida sendo vistas e sentidas como o ruído que o vendaval provoca ao passar no telhado, na distância do aconchego da casa.
Para lá do alto do conhecimento e da profundidade do sentimento há outros horizontes a descobrir: os horizontes da experiência alargada da ipseidade e alteridade em tudo presente e a tudo comum. Na sua relação se realiza a individuação, que se torna pessoa.
Para além do horizonte do nosso eu descobrimos um tu possibilitador do nós. Aí no mar do mistério adquirimos uma dimensão consciente da totalidade. Para lá do horizonte do nosso eu, entramos no fluido da mudança realizado na fórmula Tríade que resume a mística ocidental. Então passaremos da consciência do diálogo para a dinâmica do triálogo. Aí chegados, a nova consciência entende a dicotomia não se deixa enredar nela.
António da Cunha Duarte Justo
Pedagogo e Teólogo
in Pegadas do Tempo
antoniocunhajusto@googlemail.com
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