quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Religião não é Renúncia mas Participação
Cristianismo é Teísmo e Panenteismo
António Justo
Os dogmas da religião e as teorias científicas seriam mal-entendidos se fossem reduzidos a absolutos lógicos ou a realidades factuais. Para nos relacionarmos e desenvolvermos precisamos da linguagem, de modelos.
Também a criança para poder dar as primeiras passadas precisa da perspectiva dumas mãos dispostas a ampará-la… Ver na criança a confiança como algo alienante seria reduzi-la à sua incapacidade de se transcender a si mesma. Muitos impacientes pretendem o Homem à sua imagem e semelhança, à medida da sua medida, à medida da sua consciência, como se esta fosse um dado estático adquirido e não um processo e como se cada pessoa, cada sociedade não estivessem sujeitas a um processo de crescimento precisando de parâmetros e duma pedagogia acompanhante. Uma religião autêntica não afirma só o ser, não divide o ser do fazer.
Já no Sinai o Deus da Bíblia revela: “Eu sou o que sou”, “Eu sou o acontecer” (“ sou o tornar-se”). Isto é testemunhado mais tarde na espiritualidade da trindade onde Homem (natureza) e divindade transcendem a visão polar da realidade, revelando a Realidade como relação. A visibilidade e a invisibilidade irmanam-se. O Homem, a natureza (= Jesus) não terminam em si, mas fazem parte duma realidade mais abrangente o Cristo, numa relação já não binária (bipolar)mas trinaria. A descoberta do eu no tu realiza-se no nós da divindade. Só podemos ser reconhecidos no trajecto, sendo muito embora mais que ele! A vida é mais que um produto da natureza, ou que um dado acabado da razão, a seguir o caminho efémero do destino. Por trás de tudo há um chamamento, um Sol que atrai e aquece. E na raiz já se encontra o ser e a experiência do Sol.
É verdade que a religião, por vezes, se circunscreve a uma ascética, a uma moral que exagera a renúncia ao mundo. Afirma em demasia a filosofia grega esquecendo a mística joanina. Desvirtua-se ao manter na sombra a realidade trinitária, da incarnação-ressuscitação, onde em vez da lei da contradição grega se realiza a lei da complementaridade. O Pai realiza-se no Filho e este assume a matéria, como parte dele mesmo, desencrostando-a para a divindade fluir nela. Aqui o monoteísmo mitiga-se. Reúne-se o teísmo (transcendência) com o panenteismo = tudo em Deus: Deus dá-se ao mundo na criação mas mantem-se ao mesmo tempo fora do mundo. O cristão vive no e com o mundo em Deus, vive a realidade Emanuel. Ele crê que não pode adiar para depois da morte o processo da morte e ressurreição em via em nós e já antecipada pelo Jesus no Cristo. Sabe que o processo vital não se deixa reduzir ao ser fenomenal nem a caminho, permanecendo através do tempo (diacronia). A Vida é relação não só no aqui e agora do espaço e do tempo, não só na crosta do ser, mas especialmente no ser a acontecer. “Eu sou o tornar-se”. As pessoas da divindade manifestam-se pela relação e nós participamos nela.
Deus está acima das culturas e da opinião como o Sol acima da terra e das pessoas, encontra-se fora e dentro delas. A sua essência é amor fogo em tudo presente. Reduzir o corpo a veículo de luz seria desconhecer o seu ser que é luz. A luz não só está em nós como também faz parte de nós. Seria um retrocesso separar em nós o Jesus do Cristo... Trata-se de descobrir o nosso ser de luz. No sangue, no esperma, na seiva e na semente encontra-se o amor que expressa a existência do mesmo Sol. Essa luz precisa duma crusta, dum ser, dum indivíduo, duma instituição para poder brilhar.
Individuação sem recorrer à negação do outro
Definir é trair, por isso somos todos traidores inconscientes duma realidade que queremos nossa. No nosso desenvolvimento de criança para adulto atravessamos várias fases com as correspondentes crises. Assim, na adolescência temos a necessidade de negar os pais para nos sentirmos nós. Muitos de nós ficamos empancados na fase adolescente do combate contra o outro. A fixação na própria individualização leva-nos muitas vezes a negar os outros como se para nos branquearmos precisássemos da negrura dos outros. É fatal construir a própria individualização, a própria opinião na negação do outro. De facto aquele que já se encontrou dá uma chance ao outro, também, por estar consciente de fazer parte dele. Se emperramos nele é sinal que não ultrapassamos a fase da puberdade. Abdicamos de crescer.
Lá fora no mercado das opiniões fala-se muitas vezes, de cor, como se fosse possível espírito sem corpo, inteligência sem cérebro, cidadão sem estado, crente sem igreja, democracia sem partido, bem sem mal. Aleatoriamente afirma-se, muitas vezes, a própria coloração do espírito contra a instituição. Não há liberdade pura, nem indivíduo nu; todo ele é pessoa com os vestidos da cultura e a coloração das circunstâncias do biótopo de que faz parte. Um sistema precisa de suportes (regras mesmo transitórias) senão rui, desfaz-se no caos. A beleza da rosa só é possível devido à mãe roseira. Muitas vezes afirmamos a beleza do nosso brilho de rosa negando ao mesmo tempo o verde e os espinhos da roseira: uma contradição. Em nome do colorido da liberdade não se pode evitar o escuro nas cores.
Não há raciocínio isento, só procura. O pensamento procura a luz tal como o embrião procura o sol: um e outro a caminho da verdade. A realidade existe no pensamento. Para o animal a realidade não existe porque ele faz parte dela. Para o homem ela existe no distanciar-se dela. A religião quer religar a realidade criada à Realidade perene. A liberdade em si não existe, ela é vida em processo de libertação em execução, um estar a caminho no caminho que se não fica pelo caminho; é como o sol, o amor que se encontra a caminho no botão à procura do Sol. Esse mesmo sol que era embrião se tornou em botão. O mesmo calor que se manifesta nas cores da flor expressa-se na devoção do crente e no entusiasmo do investigador científico ou do filósofo. Tudo pétalas da mesma flor.
Sonho e realidade são partes duma Realidade maior. O reino de Deus não é exclusivo nem exclui. Ele comporta também o espaço e o tempo, é ser aqui e agora numa perspectiva abrangente, do Alfa para o Omega, a caminho com o universo. O Sol chama/atrai toda a natureza e, mantendo-a embora inquieta, não se fixa na distinção entre os seres que desenvolve no seu chamamento. Também nós irradiamos o nosso sol e a nossa escuridão que se projecta no outro, e se manifesta em aceitá-lo ou em rejeitá-lo. Quanto maior é a escuridão dentro de nós mais escuro vemos à nossa volta, fora de nós; piores nos parecem os outros, deixando de ser próximos para os vermos como adversários. Esquecemos que a própria raiva escura não passa duma queixa ou duma vingança por um raio de luz não recebido.
Muitos estão dispostos a reconhecer Jesus com o coração mas rejeitam com o intelecto uma mãe que o dê à luz. Negam assim a realidade de que sem mãe não seria possível o filho. Sem a recordação, sem a memória também não haveria futuro, por muito que a lembrança, à primeira vista, pareça perda de tempo numa época que quer tudo já. No reconhecimento da mãe chegamos a ser mãe duma realidade que não temos em mão. Não há que desesperar: por trás duma jovem prostituta esconde-se uma boa mãe.
Somos todo povo a caminho em tensão entre o passado e o futuro na vivência do kairos. Memória, imaginação, corpo e espírito condicionam-se não se excluem. O ser também não se reduz à consciência dele. A religião quer abrir o caminho para novas dimensões, outras esferas. Também ela se encontra a caminho; teremos que a purificar purificando-nos. Sempre que atiramos pedras aos outros paramos no caminho da vida, petrificamos o nosso ser.
Fala-se da fuga ao erro como se sem ele houvesse liberdade. Fala-se de realização pessoal como se ela fosse possível sem realização social. O erro é uma parte integrante de nós mesmos.
A sociedade corre o risco de se tornar infantil e irresponsável refugiando-se do stresse em “verdades ad hoc” próprias, em autonomias distantes, dum querer ser só pai sem mãe nem filho, numa dinâmica meteórica sem pertença nem sistema. Vivemos numa sociedade muito acelerada multiplicando, por isso, os resíduos que alguns chamam de impurezas, os naturais vícios da aceleração. As verdades fixas são produtos da mente, a Verdade é a realidade toda dinâmica a acontecer em nós, é processo e não conceito.
O preconceito dominante não deixa ver para além das embalagens das opiniões, fica-se pelo aspecto folclórico dos média, da ciência e da religião. O conteúdo seria incómodo para os donos da economia e dos pelouros públicos e para os formadores de opinião. Pensar é uma arte e reflectir faz doer.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
antoniocunhajusto@googlemail.com
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