Um acordo de empobrecimento da língua e de interesses geoestratégicos
António Justo
O assunto não é fácil,
atendendo às diferentes grafias (europeia, brasileira e africana) e aos
interesses políticos, económicos e culturais a elas subjacentes. O Acordo
ortográfico vem beneficiar a grafia brasileira em relação à grafia
luso-africana da língua portuguesa. Na sua forma possibilita assim uma maior
concorrência, salvaguardando sobretudo interesses geopolíticos e económicos do
Brasil.
O maior problema na
génese e no processo do acordo, encontra-se, a meu ver, num espírito
simplicista e vulgar, em via desde há décadas, na política cultural ocidental.
O maior problema
manifesta-se na acentuação e na supressão das chamadas consoantes “mudas”,
acabando-se assim com uma diferenciação etimológica insubstituível para a boa
compreensão das palavras.
Para se perceber um pouco
o fundamento dos que questionam o acordo e para se ter uma ideia da riqueza da
exactidão das palavras, apresento a etimologia das diferentes palavras
portuguesas: facto, fato, fado e feito. As palavras portuguesas facto e
feito vêm da palavra latina factu (do verbo facere=fazer); a palavra portuguesa
fado vem da palavra latina latim fatu. A palavra portuguesa fato (roupa
exterior do homem) virá do germânico fat. A palavra facto (realidade, verdade)
é usada em todos os países lusófonos excepto no brasil que usa a palavra fato
para designar facto e fato. Deu-se assim um empobrecimento da língua muito
embora em benefício do povo com menos formação. (Apresento no final do artigo o
exemplo de palavras provenientes do mesmo étimo latino para melhor se
compreender a presença dum c ou dum p mudo na palavra, que levam à pronunciação
aberta da vogal precedente). (Infelizmente em muitos dicionários virtuais já se
abdica da diferenciação. Forças de interesse e ideologias procuram apagar os
vestígios que os não servem. Isto acontece também no que respeita à
disponibilidade de termos e de sinónimos no léxico).
Angola e Moçambique ainda
não ratificaram o Acordo Ortográfico e naturalmente têm razões muito válidas
para o não fazerem tal como os brasileiros e outros terão as suas para o
fazerem. O “Jornal de Angola” ao lamentar o empobrecimento etimológico dum
acordo ortográfico que se orienta pelo português falado ou pronunciado, mostra
o busílis dum acordo que se orienta por um simplicismo redutor, traiçoeiro e
mercantilista. Aqui os Angolanos manifestam-se contra a corrente entrópica
ao exigir que “os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria
para os que sabem menos” para não baixarem o seu nível.
O problema acentuou-se
pelo facto de muitas objecções não terem sido resolvidos já na génese que
prepararia o acordo ortográfico. Comete um grande erro quem parte para um
acordo com base apenas no português falado. De lamentar seria naturalmente se
não houvesse um acordo em defesa da língua. Por muitos erros que se cometam é
melhor um acordo que nenhum; a não ser que se defenda a hegemonia do inglês.
O acordo ortográfico
beneficia os que falam pior a língua. Por outro lado a língua não se mantem dependente
de quem a melhor pode falar: padres, juristas, linguistas e médicos pelo facto
de saberem a língua mãe, o latim.
O acordo é necessário
para possibilitar a afirmação do idioma português no contexto internacional sem
se atraiçoar a alma dos diferentes povos a veicular num português de afirmação
global.
Os peritos que elaboram
os acordos ortográficos deveriam dominar bem o latim e o grego; especialmente o
latim.
O português é uma das
línguas chamadas românicas, com a sua origem no latim, sendo uma evolução
deste. O latim na sua expressão clássica manifesta um alto nível intelectual e
na sua expressão popular (língua falada pelo povo: sermo vulgaris, cotidianus,
plebeius, rusticus), com a sua riqueza fonética e morfológica, cria termos
novos para expressar vocábulos por ele desconhecidos do latim erudito.
Deste modo enriquece a língua, tal como hoje acontece com o português vulgar
(provincianismos, e outras formas de formação, entre elas, os neologismos…).
A língua latina suplantou
as línguas dos povos vencidos relegando, muitas vezes, as destes para
dialectos. Na península ibérica, só o basco lhe resistiu. A língua latina
abandonada a si mesma no povo, sem disciplina gramatical, na sua evolução, deu
lugar a diferentes falares ou falas que depois deram origem a línguas. Um
desses falares foi o galaico-português (também língua dos poetas) que, devido a
circunstâncias políticas, deu origem aos idiomas, galego e português. A
evolução do português já se pode documentar em monumentos e documentos
notariais a partir do séc. VII num latim bárbaro (língua falada pelo povo). A
partir do séc. XII os poetas apoderaram-se desse falar (galaico-português) que
no séc. XVI se estabilizou no português e no galego. A partir de então temos o
português moderno como podemos ver em Camões.
O latim afirmou-se por
todo o lado. Na nossa língua, encontram-se também com certa frequência, termos
de povos invasores (cerca de 600 palavras usuais germânicas e cerca de
600 palavras usuais árabes).
O vocabulário da língua
portuguesa formou-se principalmente através do latim vulgar que se vai
modificando através da fonética e da derivação de termos populares; uma outra
forma de formação da língua foi a via erudita que de proveniência latina e
grega se manteve mais próxima do padrão original latim e grego. O português tem
uma fase arcaica que vai do séc. XII ao seculo XVI e uma fase moderna começada
no séc. XVI (Camões).
Para melhor se poder
compreender as divergências no que respeita ao acordo ortográfico e apelar ao
respeito pela etimologia da língua, passo a dar exemplos da formação de termos
em que o mesmo étimo latino origina duas palavras diversas. O Acordo
Ortográfico nas suas coordenadas gerais deixa-se orientar mais pela via popular
ou vulgar. De notar que, hoje como ontem, as pessoas mais simples têm tendência
para não mastigar as palavras, ao contrário do que acontece no falar das
pessoas mais eruditas. A maior traição ao português e à alma do falante
dá-se porém na redução das pessoas verbais (eu tu ele (ela,você), nós vós, eles
(vocês). A língua em vez de evoluir e de se diferenciar embrutece seguindo o
princípio da inércia, ao eliminar o vós e ao evitar até o tu na linguagem
falada (como já adverti noutros textos). Assistimos a um empobrecimento geral
em questões. A ignorância não nota o que perde, ganha sempre!
A palavra latina factum
deu origem à palavra portuguesa facto por via erudita e à palavra feito
por via popular.
Simplificando: do latim focum
originou-se foco por via erudita e fogo por via popular
do latim legalem
originou-se legal por via erudita e à palavra leal por via
popular
do latim matrem
originou-se madre por via erudita e à palavra mãe por via popular
do latim Hispaniam
originou-se Hispania por via erudita e à palavra Espanha
por via popular.
do latim jactum originou-se
jacto por via erudita e à palavra jeito por via popular
do latim alienare
originou-se alienar por via erudita e à palavra alhear por via
popular
do latim plenam
originou-se plena por via erudita e às palavras cheia, prenha por
via popular
do latim oculum originou-se
óculo por via erudita e à palavra olho por via popular
do latim grandem
originou-se grande por via erudita e à palavra grão por via
popular
do latim angelum
originou-se Ângelo por via erudita e à palavra anjo por via
popular
do latim aream
originou-se área por via erudita e à palavra eira por via popular
do latim arenam originou-se
arena por via erudita e à palavra areia por via popular
do latim atrium
originou-se átrio por via erudita e à palavra adro por via
popular
do latim catedram
originou-se cátedra por via erudita e à palavra cadeira por via
popular
do latim conceptionem
originou-se concepção por via erudita e à palavra conceição
por via popular
do latim delicatum
originou-se delicado por via erudita e à palavra delgado por via
popular
do latim digitum originou-se
dígito por via erudita e à palavra dedo por via popular
do latim dolores
originou-se Dolores por via erudita e à palavra dores por via
popular
do latim directum
originou-se directo por via erudita e à palavra direito por via
popular.
Desta observação podemos
concluir que o povo simples simplifica (via popular) e os eruditos preferem a
clareza.
Com acordo ou sem ele,
cada pessoa deve ter a liberdade de escrever na grafia que aprendeu.
António da Cunha Duarte
Justo
(Com diploma para latim e
grego)
2 comentários:
Excelente argumentação. Parabéns. Ai se todos entendessem a questão da geoestrategia!
Margarida
in Diálogos Lusófonos
Um texto execelente que me merece Um simples comentário:
É sem dúvida um enorme
“empobrecimento da língua ”
Pena é que os políticos sejam o que são: uns populistas!
Desafio-o a visitar isto :http://ferreirablog.blogs.sapo.pt/43964.html
Cumprimentos de
Joaquim Ferreira
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