Tudo funciona em Termos de Fim
António Justo
Nietzsche dizia „quem tem um porquê para viver, suporta quase cada como”. O
problema está para quem não tem porquê nem como. Sim, até porque a vida é
mestra e a História obriga.
Na luta da vida, uns ganham, outros perdem e outros nascem perdidos. De
premeio fica a perspectiva individual, numa atmosfera social mais ou menos
intoxicada, diria eu.
Nos primórdios da humanidade, os nossos antepassados caçadores-colectores
esfalfavam-se em manada atrás da caça e da fruta. Levavam uma vida nómada e na
luta pela subsistência viam-se obrigados a viver na manada.
Na sequência dos hábitos ancestrais de caçadores-colectores, pratica-se
também hoje a caça e a colecta nos centros comerciais (“Shoppings”).
Escarmentados das fadigas invernais sentimos cada vez mais o prazer no ter do
que no ser. Surge o prestígio e este baseia-se já não na necessidade directa
mas na ideia (necessidade construída). A satisfação e o prestígio de ter passam
a impor-se ao do ser. A massa já não segue em direcção à caça, mas o sentido da
ideia dela.
As pessoas perdem a individualidade pensando e vivendo cada vez mais em
termos de manada. Do tédio da monotonia redil surge a necessidade de se
diferenciar numa corrida ao prestígio baseado na ideia do sucesso económico. A
animalidade individual, agora encarcerada numa cultura domesticadora procura os
seus tubos de escape numa ideia de distinção e de liberdade apregoada pelo
mercado. Os pobres de cima e os pobres de baixo, tudo em fuga, vivem da
futilidade dum ter mais que o outro e duma distinção que se revela no poder de
compra. Cada um quer levar o mundo às costas, querem tudo na sua mochila. Na
luta contra o caos afirmam-se as forças da animalidade violenta de uns contra
os outros. De momento, grande parte das elites financeiras manifesta-se como
extremista e sem um conceito ordenado de sociedade. A brutalidade de
oligarquias torna-se exemplar para as bases que a sustêm levando-as
primeiramente à desorientação e depois à anarquia.
Uma sociedade que não canalize a brutalidade dos seus membros está
irremediavelmente perdida. Para o poder necessitará de ideais e metas
metafísicas. As estruturas precisarão de homens bons e a contrabalançar os
seguidores da oportunidade. Doutro modo, sob o impulso de canalizar a
animalidade, continuarão a esconder-se, por trás dos bastidores, os interesses
individualistas, nacionalistas e ideológicos. Estes só querem indivíduos e não
pessoas, querem apenas clientes e crentes. Neste sistema, quem não pertencente
ao rebanho, não orienta a inteligência em benefício próprio. Uma sociedade sem
consciência pessoal e comunitária transcendente e que engendra para cada qual
um deus indiferente que tudo permite deixa a bestialidade humana governar.
A natureza, para não estagnar, não quer harmonia. Ela tem, além dum sentido
imediato, um sentido telelógico, virado para uma meta, um objectivo sempre mais
distante do que a mira da nossa caçadeira alcança. Quem não descobrir essa meta
será condenado, como Sísifo a empurrar repetidamente uma pedra (a sua vida) até
ao lugar mais alto da montanha para a ver rolar de novo para o fundo dela.
Depois de cada caçada, de cada compra, de cada vitória fica a depressão do
desconsolo duma caçadeira descarregada, de vida vazia. Resta a sensação de um
caçador cansado, a subir a encosta, à semelhança de Sísifo no mito.
Sísifo quer-nos alertar para uma vida digna de viver e para a necessidade
de intervir no destino. Primeiro procura-se o que dá alegria: um trabalho, uma
casa, uma criança; depois vem a insatisfação, da falta duma tarefa, da falta de
realização.
No caso de desemprego inutilizam-se as próprias capacidades e
conhecimentos. Pior ainda; a sociedade só exige e não louva, o que diminui a
satisfação. O horizonte reduz-se, cada vez mais, ao panorama dos próprios
problemas. Por fim o cenário pode reduzir-se a si mesmo. Sem a perspectiva do
outro não haverá realização.
Uma existência sem metas é vida
desperdiçada e perdida
Uma vida sem metas é como um carro com motor em ponto morto, só gasta e
desgasta ou anda à roda como os carrinhos eléctricos das feiras.
Desde a natureza à lógica e ao sentimento, tudo funciona em termos de fim.
O ciclo da trajectória duma semente não é terminar nela; contra isto fala a
evolução e a ânsia de sentido no mais profundo de cada coração. O sentido
encontra-se não só em nós, no todo mas também fora dele. Tudo se encontra a
caminho, a natureza inteira, cada povo e cada pessoa. O seu ser não se reduz ao
caminho como apregoam os barateiros do mercado.
Sentido é algo subjectivo mas um consolo apenas subjectivista
(individualista) encerraria o ser num labirinto. O sentido experimenta-se na
relação entre o eu e o nós, numa relação de diálogo binário e trinário dum
receber e dar para mais criar. A natureza orienta-nos para o futuro, muito
embora o futuro não seja o seu fim.
É verdade que o sol nasce todos os dias. Ele parece resumir o sentido que a
semente sente numa continuidade repetitiva a caminho dum chamamento imanente e
transcendente. Aquele chamamento vem dum fora dentro a que o próprio Sol
obedece no reconhecimento dum sentido maior.
A vida individual, familiar, social e nacional ocidental encontra-se
ameaçada pelo facto de não reconhecer algo que a transcenda, não conhecer uma
meta mais abrangente que não seja o ciclo das estações do ano. Tudo circula
então em torno do próprio umbigo como se cada um fosse o umbigo do mundo. Uma
multidão sem necessidade de dar à luz. Um mundo assim concebido já não precisa
de heróis nem de santos, acomoda-se ao destino duma rota de exploradores e
explorados.
Prometeu, protótipo do homem grego, foi herói ao conseguir roubar o fogo
dos deuses para o dar ao humano. Este, ao desistir do fogo dos deuses será
reduzido à condição de prisioneiro e acorrentado à própria arrogância e
entregue, pelos deuses, à voragem das águias que se alimentarão do seu fígado.
Ao acomodar-se à fuga do medo não chega a experimentar a satisfação de que a
rebeldia por fim lhe trará consolação.
Equivoca-se a política ao reduzir a vida pública a uma mera luta de
interesses entre grupos. Erra a psicologia que se fixa no ego, encurtando o
horizonte da pessoa a ela mesma e a vida a uma mera estratégia de sobrevivência
individual, dando receitas que não passam de anestesiantes para um ego que
sofre de miopia. Por isso, a sociedade, cada vez produz mais doentes e a
frustração individual está cada vez mais patente.
Geralmente procura-se a solução para os problemas onde ela não pode estar.
Coloca-se a bola da vida nas mãos dos donos de matraquilhos ignorando que eles,
consciente ou inconsciente, pretendem levar a bola ao seu buraco. Uns e outros
parecem adiar a vida em trips de egos. Por falta de panorama limitam-se a
ajudar Sísifo a subir a montanha para de novo cair a seus pés. Uma solução
que se contenta com a satisfação do eu, só em si, não satisfaz porque empobrece
a pessoa, reduzindo-a à condição de Sísifo. A concentração no ego possibilita a
masturbação mas não a criatividade, realiza-se à margem da evolução.
No mercado da praça pública encontramos muitos profetas do ego. Até parecem
que têm a vida para dar ao oferecerem mais sexo, mais droga, mais liberdade,
como se fossem os donos disto. Eles fixam o bem-estar a um hedonismo que reduz
a felicidade ao acto de striptease, ao acto do momento, como se o dia não
tivesse um nascer e um pôr-do-sol, como se o dia completo não contivesse também
a noite. Para que a realidade da noite não seja consciencializada têm como
solução a bebedeira. Muita da psicoterapia, dos curandeiros, dos espíritas e
muito outra boa gente só ajudam as pessoas a adiar a vida, sempre à cata dum
raio de sol fútil. O pior é que ainda pagam para isso!… Uma vida com sentido é
entrega, é oferecer consciente que no dar se entra em comunicação com o outro e
nele com o próprio profundo. Doutro modo, o sentido duma vida sem sentido será
alimentar os parasitas da vida. Uns como outros correm o perigo de se encontram
virados apenas para si reduzindo o seu sentido ao alimentar dos vermes do cemitério.
Naturalmente que a paciência do verde da roseira se premeia nas rosas da
roseira também na vida humana não haverá alegria sem sofrer.
A felicidade dá-se no nós, na relação; o eu encontra, ao mesmo tempo, o seu
limite e a sua complementação no outro. A sociedade ocidental estressou a
pessoa reduzindo-a a indivíduo à disposição do seu mercado: Reduz a praça
social a grupos de vendedores concorrentes entre si sem um sentido individual
nem colectivo. Para isso quer uma sociedade aberta sem biótopos, quer apenas
indivíduos indefesos estando, por isso, interessada em destruir a pessoa (a
pessoa, ao contrário do indivíduo, encontra-se embutida numa paisagem, numa
região, num país, numa cultura, numa família; a ideologia, pelo contrário só
conhece uma cor, as cores do arco-íris de que a pessoa seria portadora
constituiria um impedimento a qualquer ideologia seja ela económica ou do
pensamento). Por isso se vê cada vez mais a afirmação da ideologia do indivíduo
contra a pessoa. O turbo-capitalismo, o socialismo materialista e os déspotas
querem indivíduos despojados de ideias próprias, despojados de família e de
nação. Uma sociedade como a nossa, já a caminho do pôr-do-sol, infecta
outras sociedades emergentes e ensombra a vida com valores já não de esperança
mas de desilusão. Privilegia a força da entropia só tendo em conta o ego, sem a
consciência de que este faz parte dum biótopo cultural empenhado na construção
dum ecossistema espiritual universal.
O horizonte do nosso ego encontra-se numa relação complementar à intimidade
do nós. Somos o cruzamento duma panorâmica com vários horizontes, todos eles
enquadrados na nossa pessoa e a serem considerados no trilho da sociedade. Como
o Sol tem uma missão em relação à Terra assim o humano tem uma missão de seguir
e criar sentido. Quem cria e dá sentido sente sentido na vida, realizando-se e
expandindo-se na alegria dos raios sociais que irradia. Então as sombras da
vida já não adoentam, passam a ser canais por onde passa a luz, por onde passa
a vida. Daí surge a satisfação de tornar a humanidade e o mundo num lugar
digno, onde a vida é equacionada e mantida sob o ponto de vista da pessoa, do
universo e do divino.
A futilidade dum viver numa democracia de cidadãos vencedores e perdedores,
de realização individual, sem uma órbitra que transcenda o eu, só poderá
conduzir à frustração do cidadão que constata nas órbitras das instituições do
Estado e da humanidade a repetição da própria órbitra egocêntrica, apenas um
pouco mais alargada.
Falta a consciência duma órbitra universal cujo trajecto se origina no nós
e tende para o nós numa dinâmica complementar. Uma teoria e uma praxis na
perspectiva do nós (comunidade e não mera sociedade) interromperia a
continuidade histórica de exploração (a relação de caçador e presa) para, na
História da humanidade, se introduzir a sustentabilidade do seu
desenvolvimento. Isto para não reduzirmos o trajecto histórico a um movimento
rotativo de explorados e exploradores.
Doutro modo a nossa vida dará sustentabilidade à reiteração da exploração e
da lamentação, continuando a História ordenada em dois acampamentos: dum lado
os mais solidários, do outro os mais egoístas, os privilegiados.
Marx pensava poder mudar a humanidade e a natureza humana, se se acabasse
com a propriedade privada. O seu erro foi querer reduzir tudo ao ciclo da
matéria e querer sacrificar as diferentes esperanças da humanidade à sua
esperança, não contando que a realidade consta de erros complementares que
possibilitam o alívio do mal. Há muitos caminhos na tentativa de superar o mal
e de melhorar a sociedade. Será tarefa de todos fazer desembocar o seu caminho
na comunidade e no respeito da diferença. Uma só solução é engano. Até hoje, as
revoluções criam novas classes dominantes que se legitimam com novas ideias
impostas ao povo e aos vencidos. A ilusão voa mas o sofrimento provocado pelo
ser humano é continuado sob o sol de novas explicações e dominações.
A tarefa apontará no sentido de se agir a partir do ponto de vista do nós.
Para isso ajuda um princípio duma ética universal digna: não faças ao outro o
que não queres que te façam a ti. A ética superior das bem-aventuranças poderá
ficar para uma segunda fase da evolução da humanidade. Por enquanto continuamos
a ser crianças contentando-nos com o jogo das escondidas.
Cada sistema de valores corresponde a um ecossistema cultural aferido à
geografia, às necessidades e desejos de cada biótopo. Destruí-los em nome doutras
grandezas seria crime. Há que disponibilizar o sol para todos. A óptica divina
apela à consciência duma perspectiva universal num mundo a ter de se recriar:
um mundo de luz e de treva de todos para todos.
António da Cunha Duarte Justo
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