Ao Arroteamento
da Paisagem natural segue-se o da Paisagem cultural
António Justo
A selva da consciência humana vai
avançando e recuando à medida dos fogos que se ateiam aqui e acolá. Os séculos
XIX e XX foram os séculos que mais se aproveitaram da pirotecnia ideológica
(fascismo, socialismo e capitalismo) e tudo isto debaixo do céu iluminista duma
razão pura e de uma ciência convencida. O início do séc. XXI sofre as
consequências até ao desatino porque a camada dos que têm acesso ao saber é incomparavelmente
maior; o problema vem porém dum saber adquirido à primeira vista. Um saber que
não cria saber fundado mas destinado apenas a fazer opinião passível de ser
cultivada nos vasos da varanda democrática. No absolutismo cultivava-se o dogma
absoluto, em democracia cultiva-se a opinião relativista para se ter verdades
para todos os partidos. Não ponho as mãos no fogo da ideologia porque me
chega o adubo das suas cinzas!...
Valores
abstractos não comprometem os Governantes
Torna-se interessante observar a cumplicidade e coerência
entre economia, sistema de governo e de pensamento no suceder-se das várias
épocas históricas. Se na Idade média com a sua suserania económica agrária
(reguengos, coutos e coutadas) imperava o rei/suserano como representante de
Deus na terra, hoje em democracia e em nome do povo, cada vez impera mais um
estado corrupto sem referências éticas e menos ainda religiosas. O secularismo
estatal quer falar apenas de valores abstratos, sem pai nem mãe, e assim confirmar
o que o bispo Agostinho de Hipona constatava, no seu tempo: um Estado sem um
fundamento moral claro não é mais que “uma grande quadrilha assaltante de
ladrões”. Por isso o Estado, embora de direito, não quer saber do bem e do
mal. Deste modo os poderosos grupos, ideológicos, políticos, económico e dos
Média, tornam-se nos formadores duma opinião pública à medida dos seus
interesses particulares. Quer-se uma sociedade também sem religião nem modelos;
o maior modelo humano da História, Jesus de Nazaré, tornar-se-ia numa
provocação.
Na Europa, no tempo das invasões bárbaras a vida era
dominada pelo medo real da morte, das pestes e dos assaltos bárbaros. A vida
era violenta e o ambiente rude, o que se repercute também na mentalidade desse
tempo. A violência, o medo e a necessidade de defesa levou os habitantes a
construir castelos nos cimos dos montes e os fiéis a construir igrejas com
janelas estreitas para impedirem os assaltos. Neste ambiente fomenta-se uma
consciência do direito, impregnada na necessidade de justiça, que se formula
numa espiritualidade de direito e se expressa então no Jesus severo e
justiceiro adaptado à época.
O fogo do amor abranda todos os fogos sejam eles
materiais ou espirituais, porque queima os medos pela raiz.
A necessidade de desenvolvimento e a fome levou ao arroteamento de grandes florestas na Europa. Por todo o lado, a natureza
recuou, à medida que a população aumentava. Dá-se uma progressão na cultura e
um recuo na natura. No seculo XV a população de Portugal era entre um e dois
milhões de habitantes, a França tinha entre 10 e 14 milhões e a Espanha andava
pelos cinco milhões.
Ao fogo do dogma religioso sucede-se o fogo do dogma
racionalista/secular com o dogma da opinião embutida no relativismo. No
processo da evolução os fogos do inferno deram lugar aos fogos das ideologias.
Ao arroteamento das paisagens geográficas da Europa segue-se o arroteamento da
sua paisagem cultural, com o desbaste do que ela tem mais sagrado. Na luta pelo
próprio biótopo vital ou ideológico cada um procura escavar a própria
trincheira para daí fazer fogo com uma argumentação lógica mas não racional. A
lógica ideológica pega nuns tantos factos históricos tirados da cor local
histórica e do contexto, organizando um fio condutor lógico ad hoc e
convincente para quem não conhece o resto dos factos.
O Medo como
Instrumento de Governo e de Domínio
A religião procurava relegar a
vingança dos fogos do dia-a-dia para o fogo do inferno, adiando o medo para o
fim-do mundo. O secularismo hodierno procura relegar a vingança das injustiças
do dia-a-dia para um futuro de progresso, adiando o medo de eleição em eleição
ou para um futuro melhor. Pirómanos de um lado e de outro: cada qual amarrando
o futuro à sua ideologia.
Incendiários por todo o lado,
teístas colocando o fogo nos campos dos ateístas e incendiários progressistas
colocando o fogo no campo dos conservadores e da religião: todo o mundo a dar
continuidade à cultura da guerra e ninguém interessado em integrar.
Na luta contra o medo tudo luta
com o medo de morrer sozinho, tudo procura tornar-se proprietário da razão;
esta e á a mecha de fogo mortal mais eficaz mas que, num outro ideário, se
poderia transformar na mecha da paz.
Numa sociedade cada vez mais
distante da vida moral e da lei da causa e do efeito sofre-se de um
reducionismo monocausal, procurando explicar as próprias dores da mente com
qualquer coisa que lhe engane a fome.
No carrossel das opiniões e das
lógicas tudo anda atordoado. A expressão cristã não pode porém reduzir-se a uma
herança assim como a sua crítica não pode ser reduzida a uma época ou sistema
político. A interculturalidade não seria beneficiada se fundamentada nas culpas
sejam elas a nível de medos ou de coerções, sejam elas mesmo, de caracter
intelectual subtil.
Tanto a delinquência como a
benignidade dum povo são retratadas nos seus costumes, na sua ética e nas suas
leis.
Hoje é fácil falar-se com o rei
na barriga; para isso basta falar de antanho, falar dos outros, a partir do
trono duma própria opinião tendente a justificar a própria
insatisfação/frustração.
O filósofo Epicteto dizia “Não há
falta de provérbios, os livros estão cheios deles, o que falta são pessoas que
os apliquem”! Eu acrescentaria: Não chega um provérbio ou uma citação para
conhecer uma pessoa, é preciso ler o livro inteiro e mesmo assim continuarei a
não poder perceber os mistérios que a pessoa alberga e que o livro não consegue
revelar!
A ideologia do pensar
politicamente correcto que nos domina tornou-nos indiferentes.
Entre o texto e o contexto
prospera a opinião de um texto descontextuado. O sentido do texto só está no
contexto! Por isso há que perguntar o que está por trás de uma opinião e que
interesses serve, antes de nos deixarmos levar por lógicas que se revelam
contra a razão! Hoje na barafunda das lógicas argumentativas tudo serve para
atacar as raízes da nossa civilização.
António da Cunha Duarte Justo
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