quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A liberdade passa pela revisão da gramática – Nossa matriz da




Por António Justo
É essencial o empenho pelo estudo dos problemas humanos sob a perspectiva duma ética da insubmissão, porque a prática do hábito e da submissão levou a História a repetir-se, na continuidade de um poder medíocre e violento, que governa o mundo. 

Hoje já se reconhece a submissão, a rotina e o medo como factores que impedem o desenvolvimento humano e sociológico, porque conduzem à subjugação, à técnica e aos automatismos do imediato consumista e a uma moral ad hoc. Albert Einstein advertia: “Os grandes espíritos sempre sofreram oposição violenta das mentes medíocres. Estas últimas não conseguem entender quando um homem não se submete, sem pensar, aos preconceitos hereditários e usa a inteligência com coragem.” 

Não se trata de educar para uma revolta violenta contra os sistemas vigorantes (isso foi o que se fez durante toda a História em lutas, guerras e guerrilhas reactivas); a consistência ou inconsistência dos Estados actuais é o resultado dessa prática do grupo mais forte que impôs o regime, em que cada país se encontra no momento. Enfim, a História tem sido uma cadeia ininterrupta de assaltos e contra-assaltos. Como este é um dado de sustentabilidade negativa, no prolongamento de um passado centrado na violência e no poder, sem sentido pelo viver, será necessária a propagação de uma revolta integral da consciência (alma e inteligência acordadas e reunidas na intuição) que possibilite uma maneira de estar pacífica centrada na pessoa e não nos grupos de força, de maneira a acordarmos para o sentir integral da vida.

O conhecimento oficialmente propagado é confuso e baseia-se na divisão e confusão que conduzem à concorrência, ao conflito e à violência; isto porque assim se estabiliza os grupos de atitude violenta.

A acção pragmática e a razão, no seguimento da ambição, conduzem à eficácia mas não produzem felicidade; em vez de integrarem os polos extremam-nos no sentido de dividir para imperar (veja-se a definição partidária na sua dinâmica contra o integral); comporta uma dinâmica do abstrato e da generalização, distante da vida baseada na moral da lei, mas não no indivíduo concreto; o sistema da autoafirmação na definição contra o outro já assume, em si, o princípio da corrupção e da violência.

Como vimos no quarto estádio da ética, o estádio do amor que integra as partes numa dinâmica de maximização do indivíduo e da comunidade (à imagem da fórmula trinitária) a perspectiva deve incluir todas as perspectivas centradas na pessoa. (O aspecto utópico talvez se situe apenas no momento de projectar a acção e responsabilização individual para o grupo).

A mudança qualitativa só poderá dar-se mediante a mudança da gramática! Aprender a aprender para libertar/responsabilizar o Sujeito
A actividade escolar orienta-nos para o utilitário e eficaz impondo a luta competitiva numa estratégia do ‘alarga os ombros e deita abaixo’, se queres subir. Trata-se de uma educação irreflectida, feita de automatismos que conduzem a um viver no sótão do pensamento muito longe da vida concreta e em que se procura compreender tudo menos a nós mesmos, menos o nosso sentido e o sentido do nosso viver. Não respeita as características do indivíduo. Começa por forçar o intelecto e negligenciar a emoção e a acção, não se preocupando com o desenvolvimento da personalidade.

A escola e a educação partem de diretrizes e planos de enquadramento destinados a encaixar o cidadão numa dada intenção política, que ensina, à sua maneira, a perceber o que é, mas não a perceber o como é nem o como podia ser. Instrumentaliza-se o indivíduo, a vida e até os ideais dela. Na escola, deixa de haver indivíduos concretos para serem desvirtuados no mundo do rebanho centrado num pensar abstracto desresponsabilizador. Na sociedade, tal como na escola, só há lugar para a manada de complementos tornados predicativos de sujeitos indeterminados. Há que personalizar e reabilitar o sujeito indeterminado. A frase com o seu sujeito, predicado e complementos torna-se no símbolo de uma sociedade (massa) e de uma vida empedernida em funções sem respeito por cada termo em si; aplica-se uma gramática/didáctica que não compreende o termo/palavra independentemente da sua função e, deste modo, não lhe possibilita liberdade nem responsabilidade própria. Uma gramática das funções contrapõe-se à realidade da mudança contínua porque fixa os termos/pessoas no tempo cronológico e num meio já determinado. Para mudarmos a sociedade e a vida teremos que começar por consciencializar a gramática, nosso rescrito de vida, para assim, consciencializando-nos dos seus parâmetros, sermos capazes de criar novos, o que pressupõe começar por revolucionar a gramática (reflectindo o seu caracter estigmatimo) ou pelo menos a sua didáctica! A mudança qualitativa só poderá dar-se mediante a mudança da gramática!

Aristóteles e a Platão apresentam-nos achegas de reflexão sobre os valores perenes que nos resguardam de um viver de slogans alienantes formadoras de atitudes e virtudes oportunas para o momento socioeconómico em que se vive. O valor perene é integrante e como tal não define (é inclusivo não colocando o fim, o limite), destrói barreiras porque parte de uma visão integral da vida que deixa de ser esquartejada no tempo e consequentemente desconhece o medo enfreador. Onde há medo há sofrimento, há um ferido e uma batalha perdida. Quem propaga o medo é inimigo do homem e da liberdade. Por isso a missão é libertar todo o homem, seja ele muçulmano ou cristão, seja ele socialista ou capitalista, porque só então cairão as correntes e as muralhas dos prisioneiros que se encontram dentro e fora dos muros. O autoconhecimento conduz à experiência do suor de sangue no Horto das Oliveiras e à expressão individual de cada um na qualidade de ressuscitado. 

As palavras são como o vento que passa e o exemplo é como a torrente que arrasta. O problema da mudança permanece bicudo pelo facto de um sistema só se mudar qualitativamente quando os seus membros se mudarem, isto é, quando grande parte dos indivíduos se mudarem, o que significa um processo de mudança imensamente lento, porque centrado em cada pessoa.

Obedecer e desobedecer para crescer!

A lei, a ideologia, o pensamento não muda basicamente, o que faz mudar é a atitude, o comportamento. Enquanto construirmos a nossa identidade identificando-nos com um sistema, país, religião, filosofia ou cultura, estamos a fugir de nós e a procurar a segurança fora de nós. Esta é a tragédia. Esperamos de fora no ter o que não somos conscientemente (no ser interior). Isto não quer dizer que não devamos pertencer a um partido, a uma religião, ou a um grupo qualquer, como meio e campo de acção, mas não como algo de identificação ou onde se procura a honra ou o poder. A natureza não conhece nenhum elemento que em nome do grupo se mate ou mate alguém. Só o Homem chegou a tal corrupção desnaturada prescrevendo a morte de pessoas em nome do grupo ou instituição; tal corrupção é tão descarada a ponto de a inscrever como norma em livros sagrados! E o que é mais grave a palavra mágica “religião” serve para conter as inteligências políticas e os intelectuais que se desobrigam na confusão das interpretações ao gosto da bondade ou maldade do cliente, em vez de se centrarem na qualidade da filosofia da religião.

O país, a nação, a política, a ciência e a religião não existem para serem servidos, devem ser meios de servir e fazer o bem. O ser humano é superior às instituições, está antes delas; estas são para o servirem e não o contrário. É contra a natureza o fanatismo bem como considerar uma instituição material ou espiritual como o bem. Estas pecam por delimitarem, definirem (ao determinarem o limite, o fim) de uma realidade que o não tem. O poder reside na divisão! Toda a ideologia como toda a instituição comete o pecado de se arrogar e usurpar a bondade que se encontra na pessoa. Só a pessoa é o lugar do bem e do mal. As instituições e até o sistema mental transferem a vida individual para as ideias e para as relações humanas de maneira a serem servidas por estas; conseguem-no ao determinarem a sua identidade na fronteira que separa o que deveria estar unido e rouba ao indivíduo a sua auréola pessoal transladando-a para a instituição e fomentando a dependência do indivíduo em vez da sua independência (Confrontar o dolo e o beija-mão de personalidades mesmo non gratas à população!). O Jardim infantil das sociedades em que nos encontramos faz lembrar a dança em torno do bezerro da Babilónia! Age-se sob o pressuposto que o que as pessoas precisam é de uma música qualquer para poderem dançar, independente do valor ou ética da “música”. Fala-se de emancipação mas na realidade a mesma sociedade que a defende, a rebaixa, entregando a dignidade humana às feras da praça pública. Isto não elimina o reconhecimento dos dons e do serviço em comunidade, com a comunidade e para a comunidade. Na comunidade há uma relação de sujeitos e não de objectos (o lado oposto da moral de Nicolau Maquiavel) o que permite uma outra interpretação dos dons e serviços porque a comunidade amplia o membro na complementaridade, não o rouba. Precisa-se de uma pedagogia da certeza do incerto.

A Certeza do incerto

Temos de reconhecer também os limites do nosso sistema de pensamento e tornarmo-nos conscientes do seu condicionamento ao preconceito; de facto não há conceito sem preconceito. As forças de poder material ou ideológico usam do preconceito sem passarem pela reflexão; usam até da lógica para embrulharem a razão; servem-se na escola do preconceito, ensinando-nos a viver dele sem nos consciencializarem de que o preconceito é apenas um instrumento necessário para chegarmos à apreensão da realidade intelectual, sendo ao mesmo tempo uma oportunidade e um perigo falsificador de realidade. O problema da realidade começa com a ideia dela. 

Se atribuo a uma percepção ou ideia a mesma realidade existencial (o mesmo conceito de existência) que dou à realidade das coisas, identifico imaginação ou ficção com a existência do objecto, dando-lhe assim uma outra forma de existência. Daqui o necessário respeito por cada instrumento de acesso à Realidade seja ele os sentidos, o sentimento, o intelecto ou a intuição. Aqui se situa o busílis da questão entre real e irreal, religião (fé) e ciência (opinião). Por isso prefiro situar-me na realidade da metáfora ao descrever ou interpretar as manifestações de um real mistério que é o mistério do real presumido na metáfora ou nas diferentes parábolas físicas, linguísticas ou culturais. Razão é a capacidade de julgar entre duas ideias, no caminho da crença ou da opinião; o problema começa com a valorização do juízo feito.
 
O primeiro passo a encetar será a consciencialização e auto- consciencialização da estrutura falsa e falsificadora vigente em nós mesmos e nas diferentes estruturas sociais. Não podemos destruí-las porque se o fizéssemos destruiríamos o homem e a sua a cultura. Uma nova educação terá de tender a distinguir entre os preconceitos necessários e os preconceitos nocivos e a encarar a resolução de problemas sob uma perspectiva individual responsável que parta da perspectiva do nós para o eu gratificado. 

Não se encontra a certeza no ser pelo que, para o bom viver, há que se dedicar aos modos de ser. Na falta da certeza há que descobrir e experimentar como é o falso e como é o verdadeiro. Trata-se de começar a gatinhar.

Urge uma revolução cultural centrada na formação individual para se poder libertar a pessoa de velhas estruturas para tornar possível a transformação do homem e, através deste, da sociedade; uma revolução que parta do interior integral e se oriente para o interior de cada um (autoconhecimento, consciência da ipseidade) através da aquisição de um novo sistema de pensar e dum novo conhecimento. O entendimento e o pensamento são como a língua; a linha da fronteira de uma língua limita o horizonte do falante; limita o horizonte intelectual e limita a circulação fora dela. Trata-se portanto de criar uma linguagem universal que toque o coração de cada indivíduo e a inteligência das instituições.

O ser humano é um milagre em contínua criação que não deve ser domesticado nem encarneirado por instituições em quem a manada projecta a aura e o horizonte do próprio ser, com desejos provindos de recalcamentos num eu não consciente. Também a borboleta para poder voar teve que passar pela mudança progressiva. A meta da pessoa não é o paraíso nem o nirvana, mas sim a sua floração no ressuscitado.
A degradação do Homem e da sociedade parece irreparavelmente inexorável porque as instituições que a constituem (fruto da precaridade individual), são incapazes e, consequentemente, produtoras de crises. Neste sentido torna-se inoportuna uma avaliação dos valores que nos conduzem à precaridade da consciência (hipocrisia, inveja, sede de poder, nacionalismo, racismo, etc.). Temos construído a casa sobre a areia, partindo do princípio que se alcança paz com mãos de guerra. Enquanto a esperança se basear no medo não haverá solução pacífica. Por isso Cristo resume a vida integral: “eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Para lá chegar é preciso aprender a pensar fora dos modelos que nos prendem.

À maneira de conclusão

Se queres ver a Lua não esperes pela noite, o seu melhor rosto é ao pôr-do-sol. Porque não vivemos o presente na realização da felicidade, adiamo-lo e com ele a nós para um amanhã em que projectamos esperanças (tornamo-nos progressistas ou conservadores sem ter consciência do agora que culpa o passado ou espera no futuro, encobrindo, deste modo, a própria violência interior, que se revela na carência do presente). Reféns da causalidade, adiamos a resolução da paz para outros, para os vindouros, tornando-a um energúmeno do futuro que nos leva a fugir de nós e a distrair do presente. O passado (é a memória feita tempo), presente (o acontecer no eixo do tempo/fora do tempo) e futuro (é projecção feita tempo); passado e futuro são aspectos de algo que deveria ser só presente (Kairós), o fora do tempo. A vida inteira é viver e morrer, esforço e paz, contínua mutação num processo de integração dos próprios polos. 

A via tem dois sentidos e a vida também. Seguindo no sentido contrário da via dificultamo-nos a existência, dando-lhe pernas de aflição e ambição/conflito, porque atados à trela do tempo. O hábito e a acomodação é tempo morto na rotina que nos empedernece.
 
No escurecer do pensamento levanta-se o amor que não é desejo mas sensação inocente do infinito; então chega a intimidade da noite escura onde só as estrelas falam do milagre que o universo faz brilhar nos nossos olhos. Só na noite surgem as estrelas, só no silêncio da mente se ganham asas para voar até ao firmamento onde o muro das ideias, culturas, anseios e preocupações já não fazem sombra.
Somos levados pelas ondas das influências políticas, religiosas, individuais e sociais de que nos temos de libertar. Eu noto em mim uma grande prisão, que é a consciência da defesa de valores cristãos que reconheço como inalienáveis para o futuro mas que me levam a ter medo do Islão. Um medo que me leva a não viver no presente com o medo do que acontecerá no futuro. 

Num mundo em que se aspira a autoridade e posição social já não se é livre, o mesmo se diria pela ânsia de ser virtuoso ou bom; contudo, na falta de liberdade é melhor estar-se preso pela ética, desde que se tenha consciência disso. Se tenho a força de ser eu já não tenho medo de ser bom nem mau; na virtude e no pecado assumo ser eu conscientemente. Então desta perspectiva compreenderei a própria compreensão e a dos outros, ciente de que nesse entremeio se realiza a transformação que possibilita o milagre. Se me compreender compreendo o mundo e ao compreender-me viverei em paz com ele. Uma cultura ou uma pessoa fechada na própria órbitra como a Terra em volta do Sol circunscreve-se a si subestimando a realidade do universo. Se queremos descobrir o universo teremos de não dar relevo à própria giratória. Esta é a diferença entre um satélite e uma estrela.
©António da Cunha Duarte Justo
Jornalista e Ex-professor de filosofia aplicada

1 comentário:

Anónimo disse...

Ótimo texto!
"Urge uma revolução cultural centrada na formação individual para se poder libertar a pessoa de velhas estruturas para tornar possível a transformação do homem e, através deste, da sociedade; uma revolução que parta do interior integral e se oriente para o interior de cada um (autoconhecimento, consciência da ipseidade) através da aquisição de um novo sistema de pensar e dum novo conhecimento."
Estou de pleno acordo com esta frase. Os sistemas educacionais público (e mesmo o privado), laicos ou religiosos, deveriam ensinar o sujeito a pensar por sí, a refletir , e não , um ensino meramente funcional, voltado a mera reprodução de algo que possa parecer util a um sistema qualquer. Um sistema que ensinasse principalmente o sujeito a ser o que é, o que traz em sí de bom e belo, de forma "espontânea", ou seja, ser o que só ele (o sujeito) pode vir a ser, e forma natural, é a condição desejavel, talvez utópica. Sendo o que de fato é, o mundo seria melhor, as sociedades, muito mais humanas.
Em linhas gerais convergimos em visão, menos na parte do medo ao Islã. Medo por sí só é ruim, quando não utilizado para estimular a precaução, quando não visto como um mecanismo de alerta. Se usado como sensor, é positivo. É o esforço consciente que conduz a isso.
Acrescento apenas o seguinte: Sejamos "naturais". Porque, natural é a vida. E com naturalidade, um dia caminharemos de forma consciente, alegres e plenos para sermos o que cada um é.
Abraços aos participantes, em especial ao sr. Antonio Justo,
Vilson
in Diálogos Lusófonos, 13.10.2014