O Estado Purgatório
Frisador de uma Igualdade que promete o Paraíso
Por António Justo
Passamos de uma economia, em que trabalho e produto se regulavam através da
troca com dinheiro (capital), para a nova economia, a economia financeira do
endividamento. O sociólogo e filósofo Maurizio Lazzarato, autor de "La fabrique de l'homme endetté", analisa com perícia a crise do
endividamento actual. A essência do capitalismo liberal é viver da dívida
individual e estatal e para optimizar o seu lucro serve-se dos cortes na
Segurança Social terceirizando os custos sociais apenas no pequeno empresário,
no trabalhador e no contribuinte.
Para Lazzarato o “homo debitor”passa
a ser a nova criação do homo economicus. "Passa a não haver direito a uma
habitação, mas a um crédito para habitação (hipoteca), já não há direito à
educação, mas - especialmente no modelo anglo-saxão - pede-se dinheiro
emprestado para financiar os estudos." Assim o estudante, no final do
curso, com o futuro hipotecado passa a não ter problemas de divagações
metafísicas ou ideias que o poderiam torna inseguro num caminho já
predeterminado.
De
facto, esta é a ideia da nova economia da Califórnia propagada por representantes
do "Silicon Valley". País moderno ou pessoa cliente procura viver o
presente, num presente alegre mas fiado, à custa do futuro.
A ideologia do “Vale do Silício” serve-se do conceito de progresso na sequência
da “racionalidade secular cristã” e da fé no além. Pretende criar uma maneira
de ser e de estar baseada no capital com a consequente relação tipo
credor-devedor… Substitui a culpa pela dívida, o paraíso pelo proveito e no
caso de surgirem complicações cai-se no inferno da falência. O Estado passa a
ser o Purgatório, aquele lugar de purgação que pretende acabar com as
diferenças, colocando todos (trabalhadores, desempregados, produtores e
consumidores) na plataforma de devedores ou dependentes. Os Governos perdem o
brilho da soberania e a democracia é ensombrada pelas asas negras de diferentes
demónios interessados apenas na radiografia da alma do credor através do ecrã
do cartão de crédito.
O Adão moderno, anda sempre a caminho, com a dívida à frente; esta é
companheira e justifica algum benefício já gozado no crédito do passado e nas
vantagens de um viver presente que um novo crédito proporciona.
Todos se inculpam no capital onde buscam o crédito. Os riscos do novo
“crente” são de responsabilidade limitada ao indivíduo cliente. O antigo pecado
original que deu origem à economia social passa assim a uma economia das
dívidas. A perversidade da nova crença
económica está no facto de se transformar dinheiro em dívidas e dívidas em
posse. O credor anónimo tem um poder
mágico sobre o devedor. A dívida tem um efeito pedagógico e domesticador.
Passamos a uma situação de leasing onde tudo é arrendado.
A economia do endividamento já não honra o trabalho nem considera o
trabalhador; deixa-se a relação produtor-produto, para se passar à relação
credor-devedor. Ao mesmo tempo tenho a impressão de nos encontrarmos numa época
muito bela e rica mas que terá de estar atenta ao risco de reduzir a pessoa a
indivíduo cliente e a sociedade a um grande mercado de meros indivíduos de
personalidade tábula rasa.
O Estado Grego é um exemplo da nova matriz em via no mundo ocidental. Todos
os Estados Europeus eternizam a dívida, de facto impagável, mas criam uma forma
de viver aparentemente mais leve e livre, sem perguntar - à custa do quê e de
quem? A racionalidade de cima (conhecimento tecnocientífico) ordena a
irracionalidade de baixo (o proletariado). Alia-se o capitalismo cultural ao marxismo cultural. Viver passa a
significar mais ter que ser.
O livro “A fábrica do homem endividado” de Maurizio Lazzarato questiona
inteligentemente o sistema económico-financeiro actual mas não deixa propostas
para nos desfazermos das dívidas. Para Lazzarato a melhor maneira de o devedor
se livrar do sistema seria criar uma nova inocência segundo a qual os Estados não
pagariam a dívida nem tomariam em conta a moral.
O capitalismo liberal e o
marxismo cultural servem-se do Estado com Purgatório frisador da igualdade que
promete o paraíso das boas intenções mas esconde o inferno delas cheio.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
e pedagogo
In
Pegadas do Tempo www.antonio-justo.eu
2 comentários:
Gostei dum “presente alegre mas fiado”. Todos os sistemas de Poder gostam da confiança cega. Também a religião cai nessa tentação pois embora a luz venha da Verbo que sai da boca de Deus, se confia mais na moeda cunhada com a cara de César. O problema está em encontrar uma palavra confiável. O povo quer um rei que o governe, mas a palavra confiável será sempre mais propositiva (educativa) que impositiva e a imposição maior é a que cada indivíduo impõe a si próprio pelo compromisso.
Cumprimentos
RCGomes
RCGomes, obrigado pela referência e reflexão.
Exactamente!
Também o dramaturgo alemão Bertold Brecht já tinha observado: “primeiro vem o ‘comer’ e depois vem a moral!” ("'Erst kommt das Fressen, dann kommt die Moral!" (Fressen=comer, em alemão significa o acto de comer praticado por animais).
Efectivamente, fiável, creditável, devedor, confiável pressupõem a crença nalgo de crédito, o tal “ rei que o governe”! Cada compromisso traz as consequentes soluções com ele. O problema estará no que se abdica para se poder comprometer, reconhecendo muito embora que não é possível paz nem vida social sem compromisso.
A civilização ocidental crê no compromisso; mas o problema surge quando grupos não aceitam o compromisso porque pensam que quem cede perde!
Cordialmente
António Justo
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