Da Intolerância de uma República
ciumenta
Por António Justo
O nosso Presidente visitou o Papa
Francisco e no acto da recepção beijou o anel do sucessor de Pedro. Isto que muitos
outros estadistas não portugueses também fazem tornou-se em cavalo de batalha e
motivo de protesto e indignação da AAP (Associação Ateísta Portuguesa). Reagem
de maneira azeda contra o que tenha a ver com a crença dos outros (em especial
a católica). Alegam que o beijo do anel
"é sinal de submissão"; a sua insatisfação é tanta que lembra uma
reação recalcada a ponto de ver no gesto um acto de subjugação à “teocracia
europeia”, como relata o DN (1). Enfim, uma tomada de posição jacobina com que
muitos ateus sensatos não concordam.
Penso que o que está por trás do
protesto será um complexo de inferioridade ou a necessidade de autoafirmação do
próprio ego à custa do maldizer de uma sensibilidade altamente pessoal (PAS). A
questão passaria desapercebida se não fossem os cães de guarda de uma
república, sujeita à imagem e semelhança da sua opinião.
O problema não está no Presidente
ir à mesquita ou em beijar protocolarmente a mão do Papa ou de uma mulher (Também
o facto de o Pro DR. Rebelo de Sousa ir à mesquita na qualidade de PR não revela
um acto de identificação ou subjugação ao islão). O problema está em fazer-se
de um acto protocolar um motivo de protesto para os que não vêm com bons olhos,
um católico assumido à frente dos destinos da nação e façam tudo por tudo para
o desmontar! A coscuvilhice vive bem do falar mal de pessoas da direita e da
esquerda em vez de se ocupar com o que estas fazem ou deixam de fazer em bem do
país e do povo.
Críticos alegam que
querem um presidente sem rosto em questões de representação da República. Será
que o Estado terá de professar a sua crença laica tendo, para isso, de negar
todas as outras crenças, não podendo suportar o convívio de umas com as outras? Muitos ainda não notaram que a "religiosidade" (crenças,
ritos e rituais laico-religiosos) são comuns e subjacentes aos crentes laicos e
aos crentes religiosos! Querer ver-se o Homem nu e submeter-se tudo só ao
metro da razão (sem corpo) significaria desconhecer a realidade e negar o
circunstancial em nome de um absoluto abstracto que não pode existir
circunstancialmente. O problema está na percepção e na linguagem que lhe dá
forma!
O problema virá da interpretação
ao querer-se confundir gestos protocolares com a honra ou desonra da nação. A
consequência lógica seria exigirmos dos representantes da nação uma atitude
virgem sem crenças nem ideologias, o que é impossível. A República tem de
aprender a viver na tolerância de todos os crentes acreditem eles na existência
ou não existência de Deus sejam eles agnósticos, monárquicos, republicanos,
comunistas ou capitalistas. Torna-se estranho que uma minoria que se reporta
tanto aos direitos da democracia não aguente com a realidade de se encontrar
numa cultura de reminiscências católicas maioritárias e queiram para si - em
nome de uma república laica intolerante - encarcerar toda a gente no seu cerco
ideológico de uma visão republicana redutora.
Em tal situação o único meio de
evitarmos guerras e guerrilhas será investirmos mais na tolerância. As
diferentes crenças e ideologias terão de compreender-se como complementares e
como tal organizar a vida de maneira harmónica, como os diferentes animais no “paraíso
terreal”. A intolerância de um lado alimenta a intolerância do outro.
O azedume chega a não compreender
gestos de cortesia, como se a neutralidade religiosa do PR fosse questionada
com isso.
De facto, quando mulheres
representantes de Estado vão à Arábia Saudita e colocam um lenço na cabeça isso
não constitui um acto de submissão de um Estado em relação ao outro (apenas uma
questão de delicadeza protocolar). O Papa quando foi à América Latina e colocou
as penas indianas na cabeça não significou um acto de submissão mas apenas
respeito por uma cultura; o mesmo se diz quando um Papa ao poisar o território
beijava o solo. Tenho vários amigos ateus e sempre constatei neles muita tolerância;
no caso da AAP chega a ter-se a impressão que querem ter o rei na barriga
necessitando para isso de um cavalo de batalha no seu território contra o
catolicismo, como se tem observado em outras reacções. Se este campo de batalha
de muitos servisse de tubo de escape para as próprias desilusões e agressões, o
facto até seria desculpável se na própria vida do dia-a-dia isto os ajudasse a
ser muito bons maridos, bons amantes, bons pais, bons companheiros e amigos! Os
condicionalismos humanos são muito complicados!
Os estadistas, nos seus contactos
com outros povos e culturas, assumem atitudes de respeito porque sabem que cada
cultura constitui apenas uma complementação da outra. As leis da cortesia são
muitas vezes sábias porque sabem distinguir entre o que é individual e o que é
oficial, entre o subjectivo e o objectivo. A fé na república, que diferentes
grupos reclamam para si, é também ela insuficiente, dado a república não ser um
neutro nem a sua crença nela constituir um absoluto; ela é constituída pelo
emaranhado de pessoas de diferentes crenças sejam elas católicas, ateias,
morais ou políticas, sejam elas de tendência mais ou menos republicanas ou mais
ou menos monárquicas. Todas são necessárias! Tudo o que levasse à imposição de
uma ideia meramente secularista ou religiosa seria tendencioso e perigoso. Uma
filosofia dialética exclusivista conduz à guerra e à intolerância.
O problema vem do facto de, do alto do nosso trono individual, nos armarmos
em juízes dos outros, sofrendo da ilusão de que a própria opinião é sentença
aplicável aos outros. Em nome dos ideais e das boas opiniões se justificam as
guerras e o desprezo pelos outros! A tua e a minha opinião são apenas pontos de
vista de uma janela mais ou menos larga mas sempre incapaz de abranger o todo do
panorama.
Há gente que até dá largas aos seus rumores viscerais pelo facto de um
político ou outro se apresentar em representações de Estado sem gravata, hábito
que o protocolo contemplava. Quem quiser implicar encontra sempre razões para
isso.
António da Cunha Duarte Justo
http://antonio-justo.eu/?p=3536
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