quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A CONFISSÃO COMO INSTRUMENTO DE INDIVIDUALIZAÇÃO NA CULTURA EUROPEIA

 

A Transformação do Mundo começa na Revolução silenciosa da Consciência

 

Neste artigo, procurarei analisar como a Igreja, ao confrontar-se com as sociedades germânicas baseadas em lealdades coletivas, instrumentalizou a confissão individual como meio de responsabilização pessoal, contribuindo decisivamente para a formação de uma consciência autónoma na Europa e para a autonomia das consciências individuais, criando assim a base para todas as aspirações emancipatórias...

O processo de individualização da consciência humana, isto é, a emergência do eu autónomo em relação ao nós coletivo (à comunidade), constitui uma das transformações mais profundas e decisivas na história da mentalidade europeia e na formatação da sua jurisprudência, antropologia e sociologia. Esse desenvolvimento foi obra sobretudo da teologia e da filosofia seguida da política, sendo a Igreja Católica o principal agente na promoção da interioridade e da responsabilidade moral individual, que pouco a pouco conduz à individualidade de consciência.

Um dos mecanismos mais revolucionários e actuantes nesse processo foi a evolução do sacramento da Penitência, que passou de um acto litúrgico comunitário feito no início da missa, para uma confissão auricular privada...

A lealdade ao chefe e aos costumes ancestrais era o fundamento ético, não deixando espaço para uma noção de responsabilidade pessoal nem de pecado como ofenso pessoal a uma ordem que superasse de maneira transcendente a ordem dos costumes ou da chefia. A honra e a vergonha eram reguladas externamente, pela comunidade, e não por um exame de consciência interno...

A Igreja, portanto, enfrentou o desafio de incutir uma moral baseada na responsabilidade individual em culturas que não concebiam o indivíduo fora do grupo...

O Penitencial de São Columbano (séc. VI) estabeleceu uma abordagem personalizada do pecado, no qual o penitente, em diálogo íntimo com o sacerdote, se confrontava com as suas faltas de maneira individualizada perante Deus...

A alma tornava-se no local de encontro com o divino, onde a consciência individual se formava em paralelo com a consciência social...

O historiador Michel Foucault constatou em “A História da Sexualidade”, que a confissão cristã foi uma das primeiras tecnologias do eu a exigir que o indivíduo verbalizasse os seus pensamentos mais íntimos, criando uma subjetividade interiorizada (1).

O surgir da Ipseidade (mesmidade do eu): O Eu como Essência diante do Divino...

Essa dinâmica teve três consequências fundamentais decisivas: alcança a soberania da consciência individual. O indivíduo passou a ser julgado não apenas pelas suas ações externas, mas também pelas suas intenções internas. Dá-se também a relativização das instituições humanas pois se a alma respondia diretamente a Deus, então nenhuma autoridade terrena, nem mesmo o grupo tribal, podia reivindicar soberania absoluta sobre ela. Na sequência acentua-se a liberdade pessoal porque o indivíduo, ao reconhecer-se como sujeito moral autónomo, ganhou as bases para um processo emancipatório que se expressou de maneira relevante no protestantismo e culminaria, séculos depois, no Iluminismo e na noção de direitos humanos...

A prática da confissão individual foi, assim, um dos grandes fatores de individualização na Europa medieval, tornando-se como o ventre progenitor do eu que deixa de ser mera sombra da comunidade...

A confissão, nesse sentido, não foi apenas um sacramento religioso, mas um ato revolucionário que ajudou a forjar o eu ocidental (a consciência individual e cultural-social) ...

Formar consciências livres e soberanas era a sua meta. Por isso, mais do que confiar apenas na razão que disseca e argumenta, acolheu a intuição, esse olhar interior que não se perde em utopias de salvação universal, mas se ancora na certeza de que Deus habita no mais íntimo de cada ser humano, como uma gene divina e a salvação individual e universal começa por aí. Só Ele conhece o nosso ser até ao fundo, e o verdadeiro saber é a aventura de descobrir-se a si próprio. A transformação social de qualidade, não brota de decretos ou sistemas, mas da lenta e silenciosa evolução da consciência individual....

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Texto completo e notas em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10230

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