quarta-feira, 27 de agosto de 2025

AS FRONTEIRAS QUE NOS DÃO FORMA: ENTRE O SER E O ESTAR EM SOCIEDADE


O Paradoxo das Limitações que libertam

 

.... Muitas pessoas sentem-se perdidas entre o que são verdadeiramente e o que a sociedade espera delas, oscilando entre a conformidade absoluta e a revolta sem rumo. Esta tensão existencial não é acidental, é o reflexo de uma questão fundamental: como poderão as limitações que nos cercam, paradoxalmente, tornar-se a chave para a expressão autêntica da nossa personalidade?

As fronteiras/limites que nos enquadram não são apenas obstáculos a superar, mas sim as próprias condições que tornam possível a nossa existência única e a nossa capacidade de nos relacionarmos com o mundo de forma consciente e criativa...

A nossa identidade, aquilo a que podemos chamar "ipseidade “forma-se na intersecção entre o núcleo mais íntimo do nosso ser e as circunstâncias que nos envolvem desde a concepção...

O espaço-tempo constitui a primeira e mais fundamental dessas fronteiras... Não somos nem pura essência nem mera circunstância, somos a dança criativa entre ambas e a que a alma dá consistência...

Após o "berro" do nascimento - essa primeira afirmação sonora da nossa existência - começamos a ser moldados pela educação, pela cultura, pelas estruturas sociais que nos acolhem ou nos rejeitam...

Reconhecer estas fronteiras, sejam elas físicas, culturais, psicológicas e sociais, não significa submeter-nos cegamente a elas, mas compreender o mapa do território onde podemos mover-nos com maior ou menor adequação...

Não basta ser inteligente no sentido puramente cognitivo; é preciso desenvolver uma forma de "esperteza humana" que nos permita navegar conscientemente entre as normas estabelecidas e as nossas aspirações pessoais. Esta capacidade implica reconhecer que as fronteiras são simultaneamente limitações e possibilidades, tal como a margem de um rio, que ao mesmo tempo contém as águas e lhes dá direção. De facto, não há liberdade sem resistência, nem personalidade sem delimitação.

A tensão entre o ser profundo (o "mar infinito" da nossa essência) e a personalidade que as circunstâncias nos levam a desenvolver (a "onda personalizada") não é um problema a resolver, mas uma dinâmica criativa a abraçar. É desta tensão que nasce a nossa capacidade de expressão autêntica, como o botão da rosa que desabrocha precisamente devido às condições específicas que o rodeiam...

O espírito crítico, mesmo quando desconfortável, constitui parte essencial daquilo a que Henri Bergson chamava "élan vital", a força criativa que impulsiona tanto o desenvolvimento individual como o progresso social sustentável...

A individuação autêntica não acontece no isolamento, mas na relação. É essencial partir do "eu" através do "nós", reconhecendo que a comunidade não é apenas o contexto onde aparecemos, mas a própria condição que torna possível o nosso aparecer e o nosso caminhar consciente.

Esta perspectiva contrasta com duas tendências problemáticas da modernidade: por um lado, o individualismo exacerbado que ignora as condições comunitárias da existência; por outro, a identificação total com as circunstâncias envolventes, que reduz a pessoa a mero produto do meio.

O grande equívoco contemporâneo consiste em identificar completamente o eu - a ipseidade - com as circunstâncias que o rodeiam...

As fronteiras que nos delimitam não são prisões, mas sim as condições necessárias para que possamos existir como seres únicos e relacionais. Como um instrumento musical precisa de cordas tensionadas entre pontos fixos para produzir música, também nós precisamos das limitações que nos constituem para podermos expressar a sinfonia única da nossa existência...

Para aqueles que se sentem perdidos entre as expectativas sociais e os anseios pessoais, a resposta não está na fuga nem na submissão total, mas na compreensão de que somos precisamente o resultado criativo da tensão entre o infinito do nosso ser e o finito das nossas circunstâncias...

As fronteiras que nos delimitam são, afinal, as próprias condições que tornam possível a expressão da personalidade do nosso ser. Não apesar delas, mas através delas, descobrimos quem somos e como podemos estar no mundo de forma plena e responsável.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Versão completa em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10298

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