AINDA A RESPEITO DE SARAMAGO E DOS SARAMAGOS
António Justo
Com a fuga de D. João VI para o Brasil acentua-se a desnacionalização das nossas classes dirigentes. Os invasores napoleónicos, violadores do povo e da nação, até são saudados por uma delegação da maçonaria portuguesa. Com as invasões napoleónicas e as lutas civis, estabiliza-se o desassossego em Portugal. Se antes se vivia na “apagada e vil tristeza”, (1) passa-se a viver na instabilidade dum estado ocupado por um partidarismo de carácter mercenário e envergonhado do povo e da nação.
Ofuscados, só vêem o progresso e as luzes no estrangeiro que copiam e importam sem consideração pelo génio português. O povo continua fiel à pátria e no respeito pelos que se aproveitam dela.
Um certo espírito traiçoeiro das nossas elites é já crónico! Com a revolução democrática de 1383 contra a usurpação estrangeira e seus mercenários portugueses, o povo português mostrou-se democrata e patriota, virtudes que faltavam já então a uma boa parte da aristocracia. A de hoje, não baseada já nas alianças de sangue, é pior porque, mais generalizada e alargada nas organizações ideológicas com as correspondentes redes das famílias partidárias, tem uma motivação já não cultural mas apenas económica. Um País de vocação universal tornou-se cada vez mais num Estado opinioso, de categorias. É-se uma nação sem povo e uma nação sem Estado: um Estado ocupado, uma nação a reboque!
Às dinastias das famílias reais seguem-se a dinastias partidárias
A União Europeia possibilita o monolitismo partidário à semelhança das famílias nobres durante as monarquias. Estas desempenharam grande papel no apuramento e alargamento da cultura europeia. Enquanto antes dominava um certo elitismo cultural fomentado pelo clero e pela nobreza hoje vulgariza-se o espírito proletário transportado pelos novos-ricos que substituíram a alta burguesia.
Os soberanos legitimavam o seu poder através do sangue; hoje os governantes legitimam o seu poder na ideologia confirmada não por famílias de sangue mas pelas famílias ideológicas. Se antes era o sangue e da terra, hoje é a ideologia e o Estado. Se antes o povo era explorado pelas famílias reais, hoje é-o pelas famílias partidárias. No palco da nação e no tráfico das influências, dançam sempre os mesmos “maiores”, os dançarinos do poder, independentemente dela ser monarquia ou república. Uma pequena percentagem de 2% da nação é que decide o que é justo e o que se deve crer e fazer.
Portugal ainda não se tinha restabelecido do jugo espanhol e do susto do tratado de Berlim, para passar a ser confrontado com a cumplicidade de portugueses com o jugo francês e as arbitrariedades inglesas, a que se acomodou, sublimando-os com a abolição da monarquia e a importação da República. Às dinastias das famílias reais seguem-se a dinastias das famílias partidárias.
Também o golpe de estado de 1974, que floriu na democracia de Abril, trouxe um grande corte à alma do país. Os novos dançarinos do poder entregaram, irresponsavelmente, as zonas de influência portuguesa ultramarinas aos soviéticos. Desta vez a ideologia marxista de alguns portugueses é prazenteira e generosa, (como sempre) para com os irmãos de atitude política: tudo à custa do país e de seus interesses e também em desproveito da situação nas “regiões ultramarinas”, antigas colónias. A vontade de liberdade nacional que esteve na origem de Portugal e a resistência contra o predomínio espanhol deu lugar ao oportunismo de alguns internacionalistas que desconhecem ou desprezam a terra. Ao espírito navegador, e consequente prestígio nacional, sucede o espírito lacaio de se quererem mostrar bons dentro das suas famílias europeias implementando leis e costumes a nível nacional sem olhar a custos nacionais. Assim há um divórcio entre a índole portuguesa e a vida que lhe é imposta. Gil Vicente já outrora conhecia os vícios das nossas elites admoestando-as: “Não queirais ser genoveses, senão muito portugueses”.
A alma portuguesa, antes vocacionada a realizar a ideia da globalização inerente ao catolicismo, vê-se fustigada pelos ventos ciclónicos provenientes da França e da Rússia, não encontrando mais apoio em si própria. Deixou de ser a incubadora e a expressão da ideia europeia, que realizou nos Descobrimentos, para passar a andar à deriva das suas tempestades e ideologias aproveitadas por alguns portugueses. Se o primeiro papel correspondia ao espírito português, o segundo já não. (2)
Se antes se era obrigado a prestar vassalagem depois passou a admirar-se a vilanagem. Esta experiência encontra-se bem documentada no saber popular: “Se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara na mão”. Um povo sonhador virado para a terra não confia nos sonhos da vila nem nos correspondentes representantes. Por isso murmura baixinho: “Eles comem tudo e não deixam nada”. Estes bandeirantes internos persistem em construir a cidade contra o campo. Da província só lhes interessam as auto-estradas para dela desfrutarem a paisagem e depois regressarem à civilização, com um vago sentimento português resumido a um misto de cheiro a caldo verde, bacalhau, rojões e salpicões. Portugal, atrás das modas, continua a viver do passeio entre “a cidade e as serras”, parodiando o progresso.
O Desconsolo do Desassossego num Povo sossegado
A implantação da República foi sentida em Portugal mais como um divórcio de si mesmo, mais como uma imposição de alguns estrangeirados do que algo nascido do próprio húmus. Se de Castela “nem bons ventos nem bons casamentos”, agora, de fora, só ventos em favor dos cata-ventos.
Para o português de sucesso “não há pai” nem sequer mãe. Esperto, permanece sempre criança na consciência de que “quem não berra não mama”; por isso se encosta já não às saias da mãe nem do padre, mas a qualquer saia que lhes possibilite agarrar-se para olhar e subir! Por isso procura o seio da prostituta, a chucha do Estado, da ideologia e da Europa. Consolo encontra-o na companhia dos leitões irmãos e reconhecimento basta-lhe o dos compadres ‘da sua terrinha’. Todos vivem, longe da pátria, mas vivem bem no odor da saudade, dum patriotismo puro de antenas viradas para o distante. (3)
José Saramago é bem o símbolo deste Portugal das elites estrangeiradas. Saramago tal como “Caim” são aquela parte de Portugal que continua a apostar na afirmação do progresso pela contradição, na luta inglória do progresso contra a tradição. O génio português é porém Adamastor e Velho do Restelo na tarefa de ultrapassar o Cabo Tormentório. Na resposta do Adamastor à pergunta do Gama “quem és tu?” reencontrar-nos-emos todos como portugueses genuínos e o medo das Tormentas e dos tormentosos se dissolverá para dar lugar à vista de Tétis presente na alma do povo.
É de superar aquela atitude típica portuguesa documentada na reacção de Saramago, aquando da publicação do Livro polémico do Evangelho de Jesus Cristo, retirando-se para Espanha. Quando não se está bem emigra-se para o interior ou para o exterior, facilitando assim o prolongar do viver num estado de graça e de irresponsabilidade aos mandarins. Safa-se o indivíduo na afirmação contra o país e contra o cidadão!
Cada um arranja-se como pode! Cada um vive para cada qual no “paciência”, no “que fazer!”, no “tenho é de cuidar da minha vidinha!”, no “não levantar ondas”, no “eles lá sabem!” e “a vida é assim… safe-se quem puder!” Um “povo de brandos costumes” prolonga e tolera assim o intolerável! A tolerância sem carácter, sem qualidades, torna-se indiferença. O medo torna-nos todos iguais, sem qualidades próprias; torna-nos apenas bons para servir outros!
Assim a nação continua a viver dividida nas coutadas dos mandarins e seus afins e nos baldios sombrios do povo. Um povo à balda em nome da nação!
A jactância, a inveja e a pequena vingançazita são vícios crónicos que encurtam o horizonte cultural português. Saramago veio a Portugal anunciar o livro “Caim” com frases polémicas, provocando grande parte da sociedade portuguesa que no desconhecimento do livro só podia reagir às suas provocações. A parte mais séria, a apresentação do livro, reservou-a Saramago para os espanhóis, em Madrid.
Aqui o Nobel confidencia:” Eu não escrevo para agradar ou desagradar. Eu escrevo para lançar o desassossego”. A impressão que se tem é que o José, em relação a Portugal, pretendia não o desassossego mas a provocação. Nele fala o indivíduo, o José e não o cidadão!
Fernando Pessoa no seu “Livro do desassossego”, uma espécie de diário da ficção, é um português que assume Portugal e não apenas uma sua parte porque muito embora querendo espalhar o desassossego o fez não dividindo nem apostando no ressentimento de tradição republicana jacobina (4). Fernando pessoa revela conhecer os recônditos da alma portuguesa e respeitá-la ao dizer: “O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo”. “O bom português é várias pessoas… Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim”… O problema das nossas classes dirigentes está em só serem apenas estrangeiras desprezando a parte portuguesa, que por tradição de classe esqueceram. Se até meados do século dezanove, na qualidade de “emigrantes” ainda eram mediadores da cultura europeia, no século XX até isso perderam, contentando-se apenas com as remessas económicas e com a glória de representar “lá fora”.
Caim de Saramago não se submete, ele põe Deus em questão, tal como já tinha feito Miguel Torga, no seu livro Bichos na pessoa de Vicente (o corvo), que desassossegado com o sossego que reinava na turba da Arca de Noé, resolve abandoná-la em sinal de protesto perante um criador injusto que castiga os bichos por causa das maldades humanas. Vicente desafia a omnipotência divina e verifica que Deus cede à sua vontade de ser livre, aceita a sua revolta. Aqui Torga revela o humanismo cristão do génio português, mediador dum Deus amor, por cima de tudo e de todos mas com tudo e com todos; dá a impressão de perceber a morte de Deus em Jesus que ressurge como Homem em Cristo enquanto que Saramago se ocupa com um deus pagão ou à la Nietzsche.
Tal como Caim que vagueia pelo país, Saramago aproveita para viajar na Bíblia. Ele tem razão quando provoca o povo a não aceitar sem mais a história secular e religiosa. Esta não pode ser aceite como se fosse pão fabricado directamente nos fornos de Deus. Os nossos deuzitos, cá de casa fazem o que querem porque desconhecem os Noés e os Vicentes. A Bíblia é um espaço espiritual com mansões para todos. Interessante seria que Portugal se tornasse num espaço geográfico e espiritual com lugar para todos e que todos descobrissem a sua natureza fundamental e se encontrassem na complementaridade. A verdade do outro pode ser motivo de desassossego mas não da sua negação. Necessita-se reconhecer o adversário, o contrário para se poder entrar num processo de integração. Torna-se urgente uma cultura em que a própria argumentação contra se possa expressar também numa argumentação a favor pelo mesmo: uma cultura do “não só… mas também”! Não só mandarins mas também povo!
Portugal e os portugueses adiam o futuro de governo em governo, de situação em situação, na fuga à mudança necessária de cada um. Séneca dizia que não ousamos, não por ser difícil, mas, por não ousarmos é difícil! Não chega sermos uma sociedade à Robinson Crusoe. A república trouxe o fim das ilusões. Vivemos em contínua luta cultural reduzida ao âmbito da ideologia, numa sociedade dividida que ainda não se encontrou. A nação dança ao ritmo de músicas ideológicas dos que vivem encostados ao Estado. Não chega ser república, é preciso tornarmo-nos estado e nação também. O problema de Portugal é o dos seus mandarins! Camões cantava o povo, “o peito ilustre lusitano” enquanto que a nossa classe dirigente canta “as modas e os ventos ideológicos num estilo capataz individualista cada vez mais distante da alma poética e sensível do povo. Este continua a dizer pela boca de Gil Vicente no Auto da Lusitânia: “Eu hei nome ninguém e busco a consciência…” e no auto das barcas admoestava de novo as elites: “Não se embarca tirania, neste batel divinal”. Gil Vicente era um “Homem Bom” do povo, um patriota.
Resumindo e a propósito da discussão antecipada ao livro “Caim”, a sociedade portuguesa é incapaz de entrar numa discussão séria sobre o seu ser, sobre o seu marxismo e capitalismo, sobre o seu ser laico e religioso. Prefere uma guerrilha preconceituosa de trincheiras, em posições de citações em que se servem os usufrutuários do sistema. Preconceitos vivem de preconceitos. Destes se tem alimentado os heróis da política e seus excluídos. E os intelectuais independentes limitam-se a assistir ao circo de fora. Vai sendo tempo de os tradicionais inimigos do povo e os exploradores da nação se reunirem numa mesa redonda. Se os campos rivais se tomarem a sério, ao duelo seguir-se-á o diálogo para depois formarem um dueto! Não se trata não só de se saber quem se é mas também de quem se vai ser. O exemplo dum país pequeno mas com presença mundial é a Suiça com a sua democracia directa. O regime português precisaria duma correcção, duma democracia que corresponda mais ao espírito português, mais ligada à terra e ao povo, com pessoas de carácter menos partidário e mais “Homem bom”, em atitude de fidelidade à nossa tradição democrática já presente nas suas origens. Se queremos voltar a ser um povo heróico teremos de redescobrir os ideais do passado grande e seguir o exemplo do povo judeu!
O Povo português, sem fidelidade a si mesmo, sem um ideário cultural nacional próprio, vai vivendo entre os complexos de inferioridade e de superioridade, entre a inocência e a cumplicidade num estado de consciência mortificada.
Continua embrulhado no discurso fácil e na propaganda, levado pelos dançarinos do poder ao ritmo duma dança leviana, sem consciência das diferenças expostas, sem vontade própria de existir. O Povo continua a viver o destino dos outros, na mágoa de não ser nem estar para apenas parecer: Português para Inglês ver! A mágoa faz parte daquela característica bem portuguesa que é a saudade! A mágoa de nos seus representantes não ser o que é, e que provou ser nos princípios da nacionalidade.
© António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
antoniocunhajusto@googlemail.com
http://antonio-justo.blogspot.com/
(1) Passo a citar, embora com reservas, o que dizia Charles Dumouriez no seu livro “O Reino de Portugal em 1766” no primeiro capítulo da obra: “ Os costumes das províncias do Norte de Portugal assemelham-se positivamente aos dos escoceses. São belos homens, francos, sinceros, corajosos, cheios de preconceitos, de ódio nacional e de amor patriótico. Eles exercem a hospitalidade: Nas províncias de Entre-Minho-e-Douro e Trás-os-Montes, não existem albergues. No meio do país, ao contrário, e particularmente em Lisboa, os habitantes são ladrões, avarentos, traiçoeiros, brutais, orgulhosos, mal-humorados e também maus de corpo como de espírito; encontra-se contudo algumas excepções, e sobretudo entre a nobreza, que é mais culta do que a nobreza espanhola, mais afável e comunicativa, o que devem ao grande convívio com estrangeiros.” …”Em política não se trabalha nunca o suficiente com o conhecimento do carácter dos povos, olha-se apenas os reis e os seus interesses e, frequentemente, perdem-se as negociações mais essenciais por não ter sabido reaproximar as oposições que se encontra entre estes grandes interesses e o carácter das nações coma as quais se trata”…
(2) Um povo púdico sente-se então defraudado por algo estranho, que também traz no coração, e por ideologias estrangeiras que é sempre obrigado a seguir sem ter interiorizado. O mesmo povo com os mesmos sintomas: dum lado, os empertigados do poder, e do outro, os saudosos das grandezas. Dum lado os sempre novos-ricos, do outro a sempre arraia-miúda. Àqueles falta-lhes o cultivo e a transmissão dum substrato comum, o cultivo de Camões, Gil Vicente, António Vieira, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Fernando Pessoa e outros. A arraia-miúda é o traço contínuo, a verdadeira característica portuguesa, que apesar dos seus “estrangeirados” continua a ser povo fiel à sua índole cristã, nórdica, asiática, universal. Este povo de fisionomia paciente, atenciosa, boa e dócil apesar do contínuo mau exemplo das elites dirigentes mantém o seu carácter. Este encontra-se obsidiado pelo espírito internacionalista leviano dos seus dirigentes e por uma escola mais tendente a formar proletários do que cidadãos. A classe dirigente, alheia ao génio inter-cultural e universal português, arma-se, perante o povo, em educadora de tolerância, internacionalismo e democracia. Cultiva uma democracia de trazer por casa no respeito do seu gueto; como empossados não suportam a democratização cultural. Nos reservados sociais do Estado e da Administração querem-se apelidados de senhores doutores, senhores engenheiros, senhores professores e lá fora, na democracia de campo para a plebe reservam o tratamento proletário de senhor António, Sr. José, Sr. Manuel. O trabalhador que dobre a língua, quer-se subserviente e no respeito de sentido único, de baixo para cima. De cima para baixo, resta o despudor transformado em sorriso benigno à cata dum sorriso de desobriga. O povo, bem-educado, olha em contra plangé com um sorriso amarelo do fadário domingueiro.
(3) Portugal não tem casa sem emigrante. Quem procura trabalho vai para o estrangeiro e os saramagos vivem do estrangeiro ou do estranho povo…
(4) Ou não será ainda a voz da má consciência dos anafados que arrecadaram para eles os bens da igreja e os passais, que antes serviam indirectamente o povo? A nação continua a viver de tabus e de espertezas cretinas.
Ao observar a cena cultural alemã, na qual os filhos dos pastores e as igrejas ocuparam grande relevância cultural observa-se uma certa luta cultural entre a tradição católica e a tradição protestante mas não o ressentimento. Em Portugal onde filhos de padres e frequentadores de seminários alcançaram posições relevantes na política e na cultura é mais notório o ressentimento e a inveja. Não se trata aqui de defender a tradição mas de nos questionarmos a razão porque em Portugal, para além dum certo patriotismo superficial não há a consciência viva duma cultura nacional, uma cultura do cidadão. O encosto ao republicanismo primário francês e correspondente imitação cultural têm acontecido em desaproveito da tradição anglo-saxónica e deste modo se tem reduzindo a universalidade do pensar português.
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1 comentário:
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