A Oração também
cura
António Justo
Sob as palavras da oração reside
a força de uma dimensão específica da pessoa e da comunidade que também se
expressa na cultura e nos templos de todas as cidades.
Independentemente das formas dos
muros, sob as sombras das igrejas, repousam forças, saberes e vivências
reunidos em gestos e ritos que abrem horizontes para novas vivências e novas
dimensões da realidade. Como em tudo, precisa-se de uma porta de entrada, um
motivo, um centro, onde congregar as energias na procura de novas perspectivas.
O mesmo se dá
nas fórmulas das orações; o espírito para se congregar precisa de palavras,
gestos e textos, como porta de entrada, para a dimensão mística das vivências.
Precisa-se do interruptor da sintonia para estabelecer a ressonância com a onda
divina. Na oração juntam-se sentimentos e experiências numa
força abrangente que muda e expande o espaço interior e abraça todas as coisas.
Atravessadas as palavras e
chegados à oração do coração, todas as coisas se tornam líquidas e nós com elas
também. Pela oração das palavras se chega à oração do sentir, à vivência na
ressonância do ser. As ideias reduzem-se ao filamento da vela a irradiar a luz
na repercussão do sentimento.
A oração abre-nos para campos
energéticos do espírito (hologramas do Espírito Santo). Uma vez, despida a
roupa e mergulhados nesse mar profundo, somos transportados ao mais íntimo do
ser (à ipseidade na relação divina). Este mar, que à superfície é só onda, esconde
nele uma infinidade de vida desconhecida. Levados através do sentimento
abarcamos o mundo de fora e de dentro para com ele e nele vibrar e arder.
O mar tão profundo e que tanta
vida esconde apodreceria se não fosse o movimento; o mesmo se diga da nossa
vida que, sem a vivência do profundo, seria estéril. Para mudarmos, temos de
entrar no nosso interior, na gruta do encontro com a vida e daí surgirá a
energia do mar profundo que se observa nas ondas (obras). Na vida como no mar
encontramos duas constantes: a quietude do profundo e a mudança da superfície.
Do fundo surge a força do encontro que possibilita a mudança; quem não muda é
como a pedra onde passa a vaga que desaparece no mar.
Na onda da oração emocional tudo
é líquido, tudo flui, na vivência de um interior de realidade solidária. Também
as palavras sólidas se podem tornar líquidas, gasosas e ultrapassar o valor da
forma e entrar na consciência da graça. No invólucro das palavras encontra-se a
minha rigidez a limitar o interior onde corre a graça. As palavras, na
introdução à oração do coração, são apenas o átrio de entrada para a oração do
coração; aí sacudimos os sapatos das ideias, dos juízos e dos sentimentos
negativos; no armário depomos o manto da moral: o bem e o mal, os medos e as
agressões, as insónias e as tristezas do dia. Ainda antes de entrar aspergimos
o armário e a sala com o hissope da bênção que tudo purifica. No aspergir da
bênção flui o perdão das próprias dores e das pessoas a quem ferimos.
Uma vez purificado inspiro e
expiro o bem e noto que uma porta se abre onde a luz brilha e me abraça. Aí, na
oração do coração, o sentimento vai com a graça e penetra em tudo e põe tudo a
brilhar.
Ao entrarmos em nós, no nosso mar
interior, através da oração encontramos a vida que nos une com todo o ser. Ao
descer ao mar, à energia do sentir mergulhamos na energia da onda santa que
tudo toca, mexe e cura. A insegurança do meu ser ganha então consistência, de
modo a me poder mover sobre as águas como Jesus no mar da Galileia. Uma vez
deixadas as bengalas do medo, as canas do credo, entramos na experiência da fé,
aquela vivência da “sincronidade” para lá do espaço e do tempo onde o inspirar
e o expirar transpassa a pele do corpo para se tornar numa vivência universal,
um estado em que a frase de Jesus "Pedi, e ser-vos-á dado; procurai, e
encontrareis; batei, e hão-de abrir-vos" (Mat. 7, 7) se torna realidade.
Aí não há espera, não há tempo. Realiza-se o encontro da união espiritual e
passa a acontecer a vivência da morada, o que Jesus transmitia: "Se alguém
me ama, obedecerá à minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos
morada nele.”
Os monges do deserto, fugidos à
seca da vida no silêncio, olhavam para as nuvens celestes na esperança que a
chuva da graça descesse neles e nos povos. Em oração erguiam os braços,
inalavam o universo e a morada do divino tornava-se na própria morada. Se me
recolho, posso dar oportunidade à vida profunda, à experiência da graça que nos
torna fortes.
Ao tornar-me a
morada divina desço ao fundo do mar do amor e nele me torno, água na nuvem,
água na chuva, água no gelo. A graça flui em toda a “água”
independentemente do seu estado sólido, líquido ou gasoso. A vida não se limita
ao estado; o sólido encerra em si o fofo do líquido. A mesma água que bate contra
os icebergs é movida pela mesma força que os sustem. Na oração desfazem-se os
nós, as laçadas de afetos e formas e eu no movimento torno-me graça que chove,
onda que bate. No sentimento passa a luz e a sombra numa espuma de formas a
desfazerem-se no plano do horizonte. Passa a paz, passa a guerra, e a graça
chove fora e dentro, chovem em mim e eu chovo na natureza. Nas ondas do
sentimento da gratidão surge a bênção e a cura. A gratidão é uma vivência de
sol líquido que invade o corpo soando e brilhando nele o universo até à pele
numa energia que cura. A substância da vida, a graça divina flui em tudo e dá
lugar à transformação que inclui um efeito espírito santo que tudo une e nivela
porque tanto flui na pedra como na água. As hormonas do Paráclito impregnam
todas as hormonas do meu ser numa transformação de todo o corpo, todos os
corpos e do universo. Então a paz é sentida e não procurada. Já a Bíblia dizia
se numa cidade houver alguns justos a sua aura salvará a cidade da desgraça.
Vale a pena meditar e rezar;
através da oração se encontra a resistência de um trampolim que nos ajuda a dar
o salto no profundo de um mar de águas santas. Lá bem no seio do ser, da
sensação profunda, sob o manto do orar, surge aquela energia forte que tudo
move e transforma.
António da Cunha Duarte Justo
3 comentários:
É interessante verificar que, mesmo para fazer sobressair a necessidade de se ultrapassar a palavra, temos de usar palavras...
Belíssimo texto do sr. Antonio Justo.
Sem dúvida alguma, rezar é um precioso recurso. Tão precioso que é usado por todas as religiões. Há muitos tipos de rezas, para todo tipo de necessidades humanas. Se remontar-mos a sua origem, verificaremos que as primeiras rezas surgiram como procedimentos feitos pelos antigos intermediários humanos de misterios naturais que, tinham a auxiliar-lhes na elaboração de seus ritos, pessoas que cuidavam da organização das que convergiam para serem ajudadas. Esse procedimento organizativo poupava o tempo destes intermediários que assim, melhor podiam dedicar-se a intermediação entre o homens e "divindades naturais" (seres naturais, nas religiões mentalistas , que são as que hoje prevalessem, são conhecidos como anjos, arcanjos, querubins, devas, etc, conforme a cultura religiosa).
A figura do intermediário desapareceu com o tempo, sobrando a figura dos auxiliares, que são os que vieram a dar origem a classe sacerdotal, hoje presente em qualquer religião. Parte do conhecimento usado nesta intermediação foi simplificado, condensado em expressões repetitivas, adaptado com o tempo as diversas culturas e se transformou no corpo de muitas orações. Perdeu-se a descrição detalhada dos mistérios ativados, uma vez que a própria ativação "humana" foi suprimida. Mas manteve-se presente o acionamento de mistérios naturais e divinos nas orações, de forma indireta. É certo que nenhuma pessoa aciona diretamente mistérios divinos ou naturais apenas rezando (perdeu-se as chaves conscientes deste tipo de ativação), mas os mistérios por esse artifício (rezas e orações) quando feitas com fé, os ativam indiretamente (dentro obviamente do merecimento da pessoa e do estado mental - grau de positivação mental do sujeito - pois caso esteja mentalmente negativado, não haverá reza que resolva sua demanda).
Este mecanismo de ativação indireta é praticamente desconhecido. Quando rezamos com fé, para valer, caso mereçamos, nossos pensamentos repercurtem no que chamarei "tela divina", e esta, por um processo de reflexão, ativa alguma das classes de seres mistérios (os tais anjos, arcanjos, querubins, devas , santos, etc, mencionados nas diversas culturas religiosas, e amplamente conhecidas pelas populações mundo afora, pois isso é conhecimento popular). Aquela classe de ser mistério mais "AFIM" com a necessidade do sujeito, é quem responderá, dando-lhe a ajuda solicitada (cada classe dessas tem sua forma de atuar, movimenta mistérios a sí vinculados, cuidam de campos específicos na criação).
A ativação direta, ou seja, de mistérios naturais e divinos sustentadores dos sentidos da vida, de forma consciente, é praticamente (conhecimento bastante fechado como forma prevalecente de manutenção do equilibrio da criação) desconhecida da atual humanidade. Mas já foi conhecimento amplamente sabido no passado "remotissimo" (muito anterior a qualquer registro histórico que temos de alguma religião). Nesta forma de ativação, o mistério é acionado diretamente pelo sujeito, sem a intercessão de "ninguem mais" (nada de anjos, arcanjos, etc.).
Sei que muito do que escrevi talvez fique confuso para os colegas participantes deste nosso forum, pois escrevo sobre mecanismos que são complexos. Mas a criação divina é complexa mesmo, e nossa jornada consciente apenas está começando.
Abraços aos participantes e uma excelente páscoa a todos,
Vilson
in Diálogos Lusófonos, 18.04.2014
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