A Vida é Sol e
Sombra - um dar à Luz expresso no Eco do Grito do Nascimento
António Justo
Somos eternos peregrinos sempre a caminho e a seguir o
eco do grito primordial - aquela dor que nos separou do paraíso perdido, da harmonia
vaginal, e que é a ressonância da consciência de se ser algo diferente daquele
albergue a que se convencionou chamar terra. Desde que Adão comeu a maçã da
sabedoria, desde que Jesus abandonou a gruta de Belém, desde o nosso grito ao
sair do ventre da mae, andamos (como indivíduos e como sociedade) na procura de
organizar a vida de modo a sentir-nos em casa, aquele recanto onde nos sentimos
acolhidos e seguros embora conscientes de que a casa não é nossa. Da casa, do
lar faz parte o aconchego familiar, a língua, a religião (cultura), o trabalho,
o biótopo social, rituais, tu e eu, eu e o outro.
Devido a tudo isto, acompanha-nos um sentimento de
soledade, vestígio de um sofrimento devido a circunstâncias adversas e a um
amigo, a uma amiga que nos falta.
A pressão de trabalho e de pessoas exaustivas esvazia o
nosso interior e em casos extremos chega a levar ao Burn-out. Por isso se torna
importante a conversa pessoal com um amigo, a troca de carinho, tomar iniciativas, ouvir
música, fazer até exercícios de inspiração imaginativa do Sol (Deus), da
bondade reconfortante e exercícios de expirar e sacudir a noite e os
pensamentos pessimistas. A arte consiste em sacudi-los nalguma fogueira onde
produzam labaredas que aqueçam e iluminem a existência, longe do fumo que intoxica.
Somos feitos de fumo e de luz, de frio e calor. Como na electricidade o
negativo pode ajudar a levar o positivo a dar luz. Para isso se realizar
torna-se necessário um impulso inicial, a iniciativa de alguém, num mundo de
graça à espera da Graça de alguém que acenda a minha graça para eu poder
acender a graça de alguém.
Já ao nascermos gritamos lançando para fora a dor do trauma
da unidade rompida, no desconforto da saída do aconchego do ventre maternal. Nesta
desolação torna-se difícil encontrar o sentido, torna-se difícil ouvir a voz de
quem chama por mim, de quem sabe o meu nome.
No cá fora do ventre, permanece a nostalgia da procura de
uma placenta maternal que transmita calor e o encontro de uns braços que dêem segurança.
Muitas vezes o fado da vida leva-nos à procura de uma
relação, de um elo que possibilite reatar o sentimento amoroso do acolhimento
original; frequentemente a resposta esvai-se num ecoar afastado que repete a
sensação do primeiro grito num longe distante de outeiros petrificados que se
sucedem uns aos outros.
Então, os braços e as pernas movimentam-se desordenada e
instintivamente na procura de alguém, para alcançar o que tinha no ventre
materno. Do amor e dedicação experimentada aprenderá a integrar em si a ordem
ou a desordem transmitida. Cada um de nós traz consigo as circunstâncias (o “pecado”
original do pó do caminho por onde passa.
Saímos do albergue/gruta na procura de outras grutas e ao
sentirmos aí carinho criamos uma segurança interior, se a não recebemos na
infância talvez passemos a ser peregrinos ou forasteiros contentes ou descontentes
na procura vincada de acolhimento.
O buraco não enchido pelo carinho familiar cria a ânsia
de ser amado e procura no outro além da relação o carinho que não recebeu.
(Muitas vezes, o próprio danificado-depressivo, cria um ambiente enevoado à sua
volta num determinismo que repete o ambiente da infância – uma sensação de relação
baseada na negativa; estas pessoas foram castigadas na infância e continuam a
castigar-se criando, por vezes, situações que repetem a disposição e
desacolhimento da infância.
O Samaritano
desce do Selim do seu Pensamento
Hoje a sociedade é muito stressante para os pais criando
neles má-consciência pelo facto de não terem tempo suficiente para receber e
dar carinho, especialmente aos filhos.… Muitos, desiludidos de objectivos não
conseguidos, passam a vida a bater à porta, de parceiro em parceiro, de
albergue em albergue, à procura do que não receberam e que por vezes não podem
dar.
De facto somos como uma proveta de vasos comunicantes em
que o equilíbrio se adquire na troca de dar e receber numa mistura de fluidos
mais ou menos cristalinos. De facto eu sou eu e o que o parceiro me possibilite
que seja e o parceiro é ele e o que eu lhe possibilito que seja. Cada um espera
do outro, aquilo que não tem e, porque também o outro anda à procura do que lhe
falta, então chega a criar-se caminhos paralelos, onde cada qual se encastela
no selim do seu pensamento. O refúgio do sentimento no pensamento projectado pode
favorecer uma vida dupla que prolonga a dor que o sentimento e a falta de acção
não satisfizeram. Na falta de relação próxima, da troca de carinhos, talvez por
um condicionamento psicológico (narcisismo), não se criam momentos nem rituais
comuns possibilitadores de laços; acontecem então monólogos em torno do ego que
em vez de reconhecer a riqueza mútua da complementação, passa a recorrer à
auto-afirmação pela celebração da própria dança em torno de actividades e iniciativas
que o distraem da própria vida. A vida em comum para ser bem-sucedida faria
lembrar o agricultor que tem muitas espécies de frutas e procura, da mistura de
algumas delas, fazer o melhor sumo. Se sou maçã e se convivo com uma laranja
não haverá como deliciar-se com o sumo de laranja ou, no caso de se querer
fazer o melhor, observar a melhor percentagem de maçã e de laranja para obter
um sumo mistura que agrade aos dois. O demasiado açúcar pode tornar-se
enjoativo e o demasiado aziúme pode estragar a digestão.
Uma atitude equilibrada exige de nós humildade e
altruísmo, compaixão e sintonia. Todos somos feitos de barro mas, uns e outros,
podemos tornar-nos jarros onde o outro possa beber. Importante é a boa vontade
e a bonomia para com o mundo exterior a nós. O Bom Samaritano (em Lucas
10:30-37) consegue encontrar o judeu a um nível que supera a inimizade secular entre
os judeus e os samaritanos.
O samaritano desceu do seu jumento, acolheu e tratou o
judeu que jazia ferido no chão, tratou-lhe as feridas com óleo e com vinho,
símbolo da consolação, colocou-o no seu jumento (de igual para igual), e
levou-o para um albergue.
O albergue é o símbolo do mundo interior do judeu, da sua
ipseidade de que ele é hospedeiro no acolhimento da consolação dada/recebida. O
samaritano ajudou sem tornar o outro dependente; retirou-se no momento oportuno
em que o hospedado se torna senhor da própria “casa”. O salvado traz em si a salvação
que deverá procurar, dentro não fora.
Em cada um de nós há uma gruta onde se encontra o pai e a
mãe (Deus) à espera. Muitas vezes passamos a vida a viver em casa dos outros, à
procura de nós, passando sede e frio quando no nosso interior se encontra a
gruta de Belém onde os anjos estão prontos para nos receberem e aclamarem
também. Aí encontramos a confiança básica original semelhante à que tínhamos no
ventre materno. Então a confiança nos leva a entrar na ressonância divina, e a
fé dá repouso porque nos oferece a confiança no bom fim de tudo o que fazemos
ou acontece. A vida tem sentido e direcção porque nos encontramos três em
comunidade e a caminho: eu e tu a seguir a Verdade.…
Uma nova situação lembra o eco do grito primordial,
aquele grito que nos lançou na aventura da liberdade, condicionada também pela
experiência original. No grito anunciava-se o medo de um fim que afinal se
tornou no início de um caminho para uma ordem maior, saímos de uma gruta
pequena para entrarmos no regaço eterno do universo. Do presumível fim veio a
vida; a infinidade que atemorizava tornou-se princípio de nova vida. No fim de
cada trajecto, de cada decisão há sempre uns braços abertos a receber-nos mesmo
quando os não vemos por puro medo ou pelo barulho do grito. A razão é fria e
distante como o universo mas Deus deu-nos o coração que tudo une e abrange com
seu calor e acolhimento que a tudo confere o brilho do carinho. Não há luz que
mostre o amor mas não há amor que apague a luz! Só o coração consegue derreter
o gelo e produzir o fluido que une e torna visíveis as galáxias.
Encontramos espiritualidades, a caminho, que nos podem
ajudar a chegar a casa e a sentirmo-nos bem nela. A segurança interior não
comporta o medo que se quer agarrar a coisas fixas/seguras porque só se torna
seguro quem aprende a andar por cima das águas. Nas janelas do teu interior até
os véus dos teus dogmas e das certezas se esvaem. Surgimos do grito do medo mas
no nosso interior e no mundo que ordenamos verificamos que há sempre uma oferta
benévola, uma luz que espera por nós, que se encontra em nós. Uma vez no centro
da nossa ipseidade, na nossa casa interior, descobrimos que o seu tecto é o
universo e que no seu centro se encontra a divindade que nos move nele.
Sinceridade e honestidade são meios que nos ajudam a chegar lá sem invalidar a tensão
existente entre indivíduo e comunidade, entre a parte e o todo.
António da Cunha Duarte
Justo
Pedagogo e Teólogo
www.antonio-justo.eu
PS. Texto a ser
publicado em próximo livro
1 comentário:
Antonio Justo escreve bem o que pensa melhor!
É sempre prazeroso lê-lo.
M. Eduarda
in Diálogos Lusófonos, 21.05.2015
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