segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Fé civil e Fé religiosa

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa de Mãos dadas

Vivemos tempos paradoxais. Nunca se falou tanto de liberdade, mas nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, fabricar consensos, direcionar emoções. A pandemia de COVID-19 revelou até que ponto os Estados estão dispostos a penetrar no santuário da consciência, exigindo não apenas obediência exterior, mas adesão emocional a narrativas oficiais.

É neste contexto que se impõe uma pergunta urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta?

A Sedução silenciosa do Poder democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do "bem comum", dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

O Santuário Interior

"A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem", ensina o Concílio Vaticano II. Há em cada pessoa um espaço inviolável onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar. É aqui que a fé pessoal se distingue da fé civil: esta pertence à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo; aquela enraíza-se numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir coesão e solidariedade, mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia: A Visão que Resiste

Nesta época do Advento, Santa Luzia (1) surge como símbolo luminoso: a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio ensina-nos que a verdadeira cegueira não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria consinta em extingui-la.

Esta luz interior é a que permite pessoas críticas como Luther King a resistir contra a injustiça social nos EUA, a Gandhi resistir a um império, a Mandela sobreviver décadas de prisão e a Bonhoeffer escrever da sua cela nazi que “não são as experiências que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências.”

O Perigo das Indignações Fabricadas

As redes sociais criaram "comunidades de indignação instantânea" onde a comoção pública substitui o discernimento pessoal. Quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento facilmente manipulável por interesses obscuros.

A filosofia política sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes; a multidão é um agregado emocional, facilmente manipulável. É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz.

Polos complementares e não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência (esse erro ainda hoje doutrina foi espalhado pelo marxismo materialista como verdade científica fundada na velha física e na estratégia do divide para imperar). A verdade é mais fecunda: ambas são complementares. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo ou na visão do mensurável.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, cuidado concreto.

A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação e  todas elas são preciosas. Mas há uma liberdade mais fundamental: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro)

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, é a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez escrever e ler sirvam precisamente para isto: não para convencer, mas para despertar. Não para dar respostas fechadas, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

António da Cunha Duarte Justo

Ver artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10496

 

(1) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491


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