O cientista faz, o artista realiza e o crente celebra
O Homem na sua essência é Cientista, Artista e Crente
António Justo
O português, Antero de Quental, ao questionar-se sobre a verdade diz: “ A Religião chama-lhe Deus; a Ciência chama-lhe ideia…só a Arte fala do Homem e do mundo… A metafísica e o espiritualismo só poderão ser destruídos quando, ao mesmo tempo, forem abolidas a razão e a consciência humana“ (1). A Modernidade ensinou-nos que mais que as instituições e as ideologiasw é importante a confluência de experiência e interpretação.
Encontramo-nos na infância da evolução a caminho do Homem adulto; o nosso conhecimento é demasiado limitado para poder compreender a realidade dum universo ilimitado. No debate público domina o diálogo do preconceito, o saber da aparência. Esta situação só pode ser reconhecida por pessoas instintivamente empenhadas na descoberta da verdade / realidade. Albert Einstein desabafava;”Que mundo é este em que vivemos… onde é mais fácil quebrar o núcleo de um átomo do que um preconceito.”
O Homem é o sonho do mundo entre outros sonhos do universo, a caminho duma Realidade infinita. Através da Ciência, da Arte e da Religião, procura encontrar-se naquilo que o supera numa tentativa de não ver a sua vida reduzida à de Sísifo. Este foi condenado a viver no Inferno por causa das suas manhas, constituindo a sua pena eterna no trabalho sucessivo de arrastar a mesma pedra ao cimo do monte rolando ela para o sopé, sempre que ele atingia com ela o cume.
Uma nova consciência, dos tempos novos, a irromper pressupõe a superação dos Sísifos da Ciência, da Arte e da Religião para, em conjunto permanecermos no cimo da montanha a presencializar o vale do passado e do futuro. Daí, nas cores do arco-íris unidos iremos todos beber no rio o fluir da vida. Daí compreenderemos o ser do Verão e do Inverno no escuro das nuvens, na força da tempestade, no brilho do Sol que até a noite pontua. Daí nos reconheceremos vegetação feita de selva e deserto, aridez e cascatas, luzes garridas e noites coroadas de estrelas. Daí avistamos e aceitamos os extremos em nós, num jogo de miragens e oásis que nos estimula o apetite da vida. Daí do cimo do monte, juntos seremos uma bandeira que o povo vê e numa dança de procurar e encontrar deixa a saudade humana ao monte subir e aí gozar o longe e o perto, o passado e o futuro na proximidade do agora a desfrutar a amplidão do horizonte. Aí, povo e sentidos todos reunidos na realização do sentido a caminho da meta do bem e do Homem.
As três capacidades humanas fundamentais são pensamento, vontade e sentimento. A ciência acentua o pensar, a arte o querer e a religião o sentir. As três competências fazem parte da mesma alma, como referiam já Paulo, Dionísio Areopagita, Clemente de Alexandria e Agostinho, e correspondem a três caminhos, na descoberta das fontes do ser e da verdade.
O espírito humano manifesta-se através da arte, da ciência e da religião em contínua inter-acção. As três disciplinas correspondem a três vias livres na descoberta da verdade livre. Todas elas se encontram na mesma pessoa, na mesma cultura, na mesma disciplina afirmando-se por vezes uma em detrimento das outras. Por outro lado, mal-entendidos e contradições fomentam, também eles, energias para novas ideias e iniciativas na construção do Homem que não pode estar sem barreiras nem contradições. As barreiras da linguagem e das opiniões levam-nos, de geração em geração, a arrastar a mesma pedra numa luta de afirmação e contra-afirmação de esquerda direita, de teísta e ateu, sem a preocupação livre de verificar o que está por detrás do esforço sisífico que nos impele.
O cientista Einstein dizia “apenas calco as linhas que flúem de Deus”. Se partirmos de Deus como a definição indefinida, da arte e da ciência como definições indefinidas mas sempre a ser definidas, talvez se torne mais fácil uma redefinição sempre em acto de definição de cada indivíduo e de cada cultura e com isto uma cultura de vida integral.
Através da Arte, da Religião e da Ciência pretende-se tactear a realidade, tornar o infinito visível, a verdade palpável. Entre caos e ordem temos a vontade de formar, criar nova ordem. O ser consciente não suporta já deixar-se reduzir a porteiro da própria cultura ou a guarda-livros duma vida enlivrada, alheio ao seu processo e a parâmetros de que faz parte integral. Já não é gratificante ser apenas cão de guarda duma ideologia, duma opinião ou instituição. A verdade da arte, da religião e da ciência impedem que a vida se reduza a memória ou a desejo. A vida e a realidade deixam de estar aprisionadas em museus, igrejas, faculdades, fábricas ou ateliers reduzindo o ser humano a ser cativo: prisioneiro do passado e do futuro, acorrentado à tradição e ao progresso. Não chega ter museus, urge viver com as musas.
Já Heraclito (500 a. C.) reconhecia: “tudo flúi (panta rhei) e nada permanece…é na mudança que as coisas acham repouso”. Por detrás da mudança está o Logos, o Verbo, a informação, a palavra, a acção, o repouso na mudança. A mudança através da aproximação pressupõe a contínua atitude de se gerar no dar à luz, como revela o mistério da gruta de Nazaré. Quental refere esta realidade afirmando que o ”fenómeno antecedente não cria o consequente, é só condição para que ele se produza…A causa do fenómeno está na mesma natureza do ser onde ele se dá…A natureza é o teatro da História, não o seu agente. As leis da História têm a sua última raiz nas leis da consciência” (2), no espírito.
O processo da aventura humana, no sentido da liberdade é um apelo contínuo à consciência. Cada um terá para isso de integrar e realizar em si mesmo as várias musas que batem à porta do seu consciente. Isto se não quisermos limitar-nos a ser cientistas, artistas e teólogos que, na fuga à banalidade factual do quotidiano, amarrados ao tempo e ao espaço, procuram apenas ultrapassar a fronteira da morte alheia sem reconhecerem o horizonte para além da natureza.
O carácter do próprio pensamento e das ciências, arte e religião, encerrados nos próprios caixilhos e fixos nos adequados contornos, não permitem ver mais do que o que encerram, duma Realidade mais abrangente. São apenas recortes do mistério. Assim se mantêm qualidades encarceradas dentro das próprias disciplinas, longe da sua essência. A maioria das pessoas rota em torno da própria órbita no desconhecimento das outras. Assim se adia a vida e a História vivendo-se em segunda mão. A verdade dá lugar à própria opinião. A religião, encerrada em si mesma é folclore, a arte encerrada nela mesma é exibicionismo narcisista, a ciência encerrada nela mesma é ideologia. A realidade não se pode confinar num espartilho, o essencial exige um continente para dele transbordar. Cada época, cada pessoa, cada disciplina desfolha um novo capítulo da vida e da História.
Cada vez se torna mais difícil manter a vista geral das três componentes bem como uma visão do que é específico da arte, da ciência e da religião. Antigamente era mais fácil agir e sentir sob o mesmo tecto da arte, ciência e religião; o seu teto comum e a sua meta são o Bem, o Belo e a Verdade. As suas colunas são a religião, a arte e a ciência.
A arte expressa a contínua mudança do tempo em processo dialogal. Através dela e da religião o ser humano procura estabelecer relações entre o mundo e o que o supera. A arte faz parte da religião. Deus é a realidade toda e nós somos parte dela! Para Platão a poesia deve apresentar Deus como ele é “porque todos os grandes poetas não produzem as suas poesias devido à mera destreza, mas porque estão entusiasmados e obcecados por Deus”. O mistério fala através do brilho da obra de arte. A forma esconde um conteúdo transcendente, não apenas documental. Trata-se, nesta perspectiva, duma vivência do verdadeiro, do bem e do belo no mesmo acto. A arte acorda os sentidos para forças criativas de toda a espiritualidade. Com as criações da arte podemos descobrir o criador em nós.
A ARTE
Com a diferenciação racional as disciplinas foram-se emancipando e diversificando. Hoje encontramo-nos, por vezes, na esquizofrenia da afirmação pela contradição. A arte instrumentalizada, deixa de ter valor, perde o significado em si, para o receber do serviço prestado ou pretendido. Na modernidade a arte deixa de ser verdade.
Picasso (1923) dizia: “o artista tem que saber de que maneira pode convencer outros da veracidade das suas mentiras.” Tratava-se da verdade reduzida ao seu aspecto sensorial. A necessidade de emancipação dos poderes estabelecidos correspondia a uma necessidade de desenvolvimento adequada à consciência do tempo. Também a mentira pode acordar para a verdade.
Sócrates defendia o agir correcto através do conhecimento correcto. Para Kant (1724-1804) as únicas fontes do conhecimento são os sentidos e a razão. Os sentidos (espaço e tempo) são o pressuposto da imaginação sensorial, da aparência (mundo das formas). Aqui a arte quereria apenas a verdade dos sentidos. Mas a percepção impelida pela alma dá-lhe mais profundidade activando a razão criativa.
A experiência de jovens que diminuem a capacidade auditiva devido a músicas demasiado altas, adverte-nos para o perigo de se querer deslumbrar com a forma, com o exterior das coisas, à custa do seu interior. A demasiada ressonância exterior pode impedir a ressonância interior, o acordar da alma, ficando-se apenas pelo nível sentimental, pelo formal. Consumidores da arte são, por vezes, obrigados a aceitar a perversidade como normalidade. Neste caso pode tratar-se duma arte reduzida a espelho de fantasias mórbidas; certamente que também a patologia das emoções não deixa de ter um certo estímulo.
Uma vivência exagerada ao nível dos sentidos (da forma das coisas) pode conduzir à percepção da essência da realidade. A arte dirige-se a vivências que humanizam o Homem. Toda a obra de arte tem um carácter religioso que advém do seu reflexo no interior de cada observador.
A experiência dos sentidos é o ponto de partida para a fantasia criativa. Através do prazer dos sentidos o artista chega à transcendência dos mesmos, para entrar no seu Espírito, e poder levar uma vida não só com gozo mas com felicidade! Na ressonância transformamo-nos na obra de arte. No que diz respeito a um concerto de piano, poder-se-ia afirmar que o corpo se torna no piano a tocar; a sua vibração acorda o espírito para uma esfera já não limitada à forma. Também no deixar-se embrenhar na escrita dum texto pode acontecer como que o orgasmo do contexto. Então, “a mentira” da forma faz reviver a verdade e despertar para novas realidades. A arte envolve-nos na esfera da imaginação e da recordação fazendo vibrar em nós a outra dimensão, o espírito.
Na arte o ser transforma-se de modo a poder realizar as suas intuições. Ela preocupa-se com a realidade. O agente, através da vontade (arte) cria-se e realiza-se a si mesmo como obra de arte como parte da realidade que reconhece e nela flúi. O artista cria algo, realiza as suas intuições reorganizando de novo o mundo das suas percepções. No acto de realizar, o artista experimenta-se como ser livre, como espírito liberto. Entra no mundo do além, no mundo das ideias e torna-as presentes no aquém.
O artista derrama na obra energia concentrada. Na qualidade de ser livre, liberta a realidade e constrói um novo mundo ao serviço dum mundo novo. Pela arte o Homem transcende a sua realidade de produto (criatura) para se tornar produtor. De criatura passa a criador. Assim ilumina a natureza projectando-a para lá dos sentidos com o holofote do espírito. O mundo das ideias é encaminhado no sentido humano, no reconhecimento de que o Homem é a consciência da natureza. Nele ela reconhece-se. Como obreiro da realidade tem uma meta a consciencializar. Não é indiferente fazer ou não fazer ou desaparecer na massa. O problema é deixar de fazer, deixar de caminhar no sentido do bem, da verdade e do belo!
O artista ao fazer o ponto da situação da arte do passado e do presente e das suas sub-culturas terá de ter sempre presente o facto evolucionário (ou melhor, situado) da História. (Não seria adequado falar-se da evolução do pensamento mas sim da vulgarização do pensamento, não do saber mas de saberes). De facto, a verdade é interpretável à luz dos fundamentos éticos e dos novos conhecimentos.
A razão crítica acompanha o artista na sua representação artística. Para se não ser subjugado ao domínio da razão surge o sentimento, a religião como culto integrador. O pensar grego procura responder às questões através da reflexão e da plausibilidade e o pensar moderno através de tentativa e contínua observação.
Ciência
Com a idade moderna de Copérnico e Galileu inicia-se a era científica. Nicolau Copérnico mudou a imagem do mundo ao colocar a terra a andar à volta do Sol, passando este a ser um ponto entre outros do universo. Isaac Newton (1643-1727) descobre a lei da gravitação tornando-se o pai da física mecanicista.
A leitura do universo começa assim a contrapor-se à leitura bíblica. Deixa de haver a verdade para haver doutrinas, opiniões. A ciência divorcia o Homem da natureza que quer máquina e enceta a via dialéctica reservando para si a Terra e para a religião o Céu. A realidade passa a ser apreendida no objectivo e factual perdendo o seu carácter processual e subjectivo.
O cientista reconhece algo na terra e preocupa-se com o geral, com o possível; para ele a ciência é a possibilidade. O pensamento é um caminho para a liberdade. Ele investiga o mundo dos objectos, a crusta da realidade. Do mirante do pensamento consegue observar o acontecer do mundo. O pensamento começa por reduzir tudo a objecto para assim o poder observar como realidade individualizada. O pensar grego reduzia a realidade às ideias, o judaico cristão ao agir.
Kant acreditava na capacidade da verdade se afirmar e resumiu o agir responsável ao imperativo categórico: “Age de maneira que a Máxima da tua vontade possa valer em cada momento como princípio duma legislação geral”. Para ele, moral terrena e religião correspondem-se, cobrem-se porque a lei moral no agir é orientada pela razão e corresponde aos mandamentos. A crença em Deus não se pode reduzir a uma declaração de confissão; o seu reconhecimento dá-se através do cumprimento da sua obrigação. “Tem coragem de agir segundo a tua razão”, exorta Kant. Esta exigência tornou-se a essência do iluminismo e fomenta o espírito crítico em todas as disciplinas, incluindo a teológica. O seu compatrício Bento XVI corrobora: “Não agir razoavelmente é contrário à natureza de Deus”. Adverte ao mesmo tempo para o relativismo esvaziante.
O pensamento tropeça nele mesmo ao reduzir o mundo a discurso e ao obstinar-se na objectividade. Neste percurso a ciência desvincula-se do Homem e da natureza.
A física quântica demonstrou que a realidade não se deixa definir apenas pela objectividade, dado, esta ser essencialmente subjectiva. A ciência precisa sempre dum acto posterior em que o sujeito pensante pode ver para lá do objecto individual restituindo-lhe o seu carácter de sujeito, o que implica a superação do dualismo. No fundo também o objectivismo científico não passa duma soma de subjectividades cristalizadas. Rudolf Steiner, em “Ciência da Liberdade”, designa o caminho da Ciência para a verdade como “monismo” onde o aquém e o além se transformam nas duas partes da mesma realidade ao alcance de quem procura. A tecnologia é a arte da ciência. O conhecimento provém da união da ideia com a percepção.
As teorias são, também elas, modelos (hipóteses e métodos) de explicação duma realidade inexplicável. A verdade científica permanece verdadeira até à nova descoberta. Novas teorias científicas, parecem contrariar aspectos da teoria de Copérnico colocando de novo a Terra com o seu Sistema Solar num lugar central do universo (cfr. Teoria em torno do cosmólogo Clifton). Também a contínua expansão do universo desde o Bing Bang, há cerca de 13,7 mil milhões de anos, provocada pela “energia escura” ou força anti-gravidade (70% do conteúdo da energia do universo) é questionada. Ninguém consegue determinar a natureza da energia escura sendo a sua existência controversa, no próprio mundo científico. Também aqui as certezas caem como as folhas do plátano no Outono. Hoje como ontem torna-se óbvia a atitude sábia e humilde de Sócrates de que “sei que nada sei”. No nevoeiro cerrado da floresta virgem da realidade vai-se fazendo caminho, passo a passo, na procura da realidade / verdade. Para isso não parecem ser suficientes as catanas dos sentidos e do pensamento. O pensamento causal da ciência e a visão mecanicista e determinista de Newton revelam-se como inválidos para grande parte da realidade física, como confirmou a mecânica quântica. Uma ciência divorciada, sem meta continuará a vaguear no labirinto que envolve o Homem desviando-o dele mesmo. Não chega a lógica nem as categorias causais para descrever a realidade. “A lógica leva-nos de A para B. A imaginação leva-nos a todo o lado”(Albert Einstein).
O caminho do conhecimento do Homem ultrapassa a sua abordagem científica. A ciência procura conhecer a unidade da realidade. Através da intuição podemos consciencializar-nos da sua componente material e espiritual. „A ciência levanta os olhos para a ideia através da sensualidade (sentidos), a arte avista a ideia na sensualidade (sentidos) ” (3). A cultura dá um passo em frente procurando superar a sensualidade através do espírito. Na religião prevalece o acto integrador da fé. O crente faz parte integrante do acto (litúrgico) não se distanciando dele como observador, ao contrário do que acontece na ciência mecanicista e determinista.
Religião
Antero de Quental, homem íntegro, que não parou numa posição ou opinião, confessa o perigo em que incorreu, afirmando: “Eu acreditei em muitos dogmas da moderna superstição do Progresso” (4).
O caminho da religião (re-ligare, religo e re-legere, recolho) é um processo de re-união ao protótipo divino (síntese Jesus Cristo), presente no mais íntimo de cada um (a natureza de Cristo em nós). Esta é a religião interior do Homem adulto, do super-homem de Nietzsche. Aí, no âmago do ser, se realiza o Homem a acontecer. Jesus é o primeiro super-homem, o primeiro Homem realizado. A máxima “Ama e faz o que quiseres” de Agostinho, é o resumo da vida cristã, a vida do Homem superior.
O Homem realiza-se a caminho da liberdade, integrando o pensamento e a acção no sentir. No momento religioso o mundo dos sentidos encontra-se em harmonia com o mundo espiritual numa relação de encontro de Homem e Mundo, de Homem e mundo em/com Deus. A criatura participa do criador (o cristianismo não é um monoteísmo puro, nele integra a natureza criada); aí a pessoa alcança a consciência mais alta da verdade. Realiza-se misticamente a união do eu com o mundo, tudo isto em processo. Neste estado de consciência dá-se a percepção da alma das coisas. Em termos cristãos trata-se da experiência da transubstanciação. O processo de desenvolvimento do eu e da consciência poderia ser comparado à incarnação e ressurreição. Primeiro dá-se a descida, a incarnação do Espírito (Cristo) em Jesus para depois se dar a subida de Jesus (matéria) em Cristo, o eu espiritual. O que em termos cristãos poderia ser referido como a experiência da realidade da Trindade. Não se está no mundo, é-se mundo com o mundo a gerar o mundo, a Realidade. O ser humano deixa de ser parteira para se tornar em grávida. A gravidez da vida resulta da gestação do espírito na matéria que se encontra sempre em processo de dar à luz. A religião é a alma da cultura e ao mesmo tempo o sémen da arte e da ciência. O ser religioso experimenta-se como ser limitado e incompleto, a acontecer na relação com o outro. Religião é ao mesmo tempo lugar da experiência, da ideia, do rito e da ortopraxia.
Ora et labora como diz a regra beneditina. Aqui não há contraposição mas sobreposição e osmose das diferentes componentes ou perspectivas do ser humano. A arte que antigamente tinha a sua casa na igreja viu-se obrigada a sai para a rua devido à estreiteza das suas janelas. É necessário que ela reentre não como escrava mas como senhora!
O Cristianismo olha para o mundo com o olhar interior da oração e da acção partindo dum ser humano ao mesmo tempo criatura e criador. A religião e as outras disciplinas têm-se fixado demasiado nas insuficiências humanas e nos limites descurando o carácter complementar de todos os sectores da vida e da realidade. Deixam-se assim deslumbrar no dualismo duma dialéctica que vive da contradição e da auto-afirmação à custa do outro. A dialéctica é superada pela poética e pela religião (se bem entendidas!). Religião é processo, caminho de / para Deus. A tua conduta é que determina a verdade da tua religião, a tua veracidade.
Ciência, arte e religião são diferentes formas de procura e de realização da mesma realidade que é o Homem, o mundo e o que o transcende; têm de comum o mundo espiritual e uma meta conjunta que é o Bem, a Verdade e o Belo. A mística é a fonte de encontro onde todos vão beber numa missão de descoberta e revelação. Trata-se de redescobrir e reinterpretar o mundo até agora revelado e de gerar novos mundos.
Para isso é necessário entrar na relação dinâmica entre as três no sentido de criar uma nova forma de estar para se dar à luz uma nova realidade. A ciência e a arte pressupõem a religião, como podemos interpretar no aforismo de Goethe:”quem possui ciência e arte, tem também religião; quem não tem as duas, tem religião”! A religião é o substrato.
A música clássica é um exemplo acabado da sintonia da ordem divina do mundo, por isso se tornou insuperável. Teilhard de Chardin fala-nos da “convergência” do ser. A experiência religiosa testemunha uma evolução da experiência espiritual que se processa na abertura do espírito. Constata-se ao longo da história humana um evoluir de consciências. Ao estádio arcaico, pré-paradisíaco seguiu-se o estádio mágico e mítico para passar ao estádio mental-racional em que nos encontramos. No horizonte já se adivinha o próximo estádio, o estádio integral. Neste estádio passa-se da afirmação pela contradição, duma “mentalidade do ou…ou” para a “mentalidade do não só…nas também”. A visão a-perspectiva integra as visões perspectivistas numa panorâmica global integral. Neste estádio da consciência integral já não se reconhecerão as respostas do estádio mental-racional como respostas definitivas. “O mundo deu o salto das formas da consciência mágica e mítica por volta do ano 500 a.C., o que entre nós aconteceu de forma mais vincada do que na Ásia; agora a humanidade prepara-se de novo para um salto; este leva-nos da consciência mental arracional para a consciência integral arracional”(6).
N estádio pré-parasidíaco bíblico a alma ainda se encontra embrulhada na natureza, em estado de sonolência. A alma dorme sem descobrir o outro, sem a consciência da diferença de homem e mulher, num estádio androgínico. Na fase de passagem mágica-mítica descobre-se como sexuado, nota a diferença (altura em que Eva, mais desenvolvida abre os olhos de Adão para a realização, a autoformação). A alma adormecida procura fora o que nela dorme. A consciência mítica leva o Homem a separar-se da união mágica. Começa a olhar para dentro de si mesmo, reflectindo então nos mitos as paisagens da alma. É o princípio da reflexão, da percepção polar.
Milhares de anos mais tarde, o Mestre de Nazaré, vivendo embora em ambiente de consciência mítica, supera o pensar mítico e vence a esfera mental-racional presente nos fariseus numa interpretação bíblica demasiado enredada em abstracções. A transparência do mundo torna-se visível nele; nele irrompe o aquém e o além, o “não só…mas também”, a divindade e a matéria reconciliada no Homem. No acontecer de J. Cristo realiza-se a estrutura da Consciência integral. Os discípulos vivem a transfiguração do mundo através da força espiritual. Hoje, apesar de muitos se encontrarem ainda sob as auroras mágica, mítica, mental racional, mais que nunca, através dos avanços da ciência e da reflexão, se encontram mais pessoas preparadas para compreender a estrutura integral da consciência a-perspectiva a querer irromper.
Esta é a fase em que a Ciência, a Religião e a Arte se irmanam. Nesta nova fase do desenvolvimento a religião ou se torna mística ou perde grande parte do seu sentido, como afirmava Karl Rhaner.
Para Teilhard de Chardin evolução é o subir da consciência do mais profundo da matéria no sentido convergente do Ponto Ómega (5). A meta da História cósmica e humana é o Ponto Ómega. O desenvolvimento da consciência na matéria encontra-se documentado em J. Cristo no qual a matéria floresce no espírito, tal como a vela ardente que em si reúne matéria e “espírito”.
A teologia da Trindade e a Física quântica reconhecem a Realidade, por diferentes vias, como relação de complementaridade e interacção. No princípio era o Verbo, a informação!...
Também a biologia reconhece na natureza o princípio da colaboração em contraposição duma biologia em serviço da ideologia, unilateralmente centrada no princípio da selecção natural.
É óbvio o surgir duma nova era em que a dialéctica se revela apenas como uma técnica de abordagem e não como a realidade adulterada numa perspectiva meramente linear ou cíclica (ocidental/oriental). A dialéctica é superada pela poética, pela religião e pela física quântica. No encontro da Ciência da arte e da Religião processa-se ao mesmo tempo o encontro do Ocidente com o Oriente; os dois pólos da realidade reconciliam-se numa perspectiva integral.
A Realidade é a-perspectiva sujeita a abordagens de perspectiva que, como tais, só se tornam verdadeiras numa relação de complementaridade. A apreensão da verdade é possível, muito embora na consciência da roupagem da própria perspectiva.
Não se trata de não progredir ou de não regredir mas de evitar o pragmatismo oportunista e de entrar num processo de mutação na colaboração de ciência, arte e religião, em respeito mútuo.
Auto-afirmação através da afirmação e confirmação do outro.
A Realidade é como uma casa feita só de portas e janelas. Na existência sabida e sentida, por mais portas que se abram, mais portas ficam por abrir. A religião, a Ciência e a Arte não poderão continuar a reduzir a sua missão a porteiros da realidade, reconhecendo-se parte dela.
No fazer, realizar e crer estamos todos a dar resposta à questão: quem sou eu? Eu sou no tu do nós!
Ulisses é o protótipo do Homem ocidental, que é de natureza transpessoal. Ele no seu plano, ao contrário da ciência e da tecnologia, tinha uma meta existencial na vida que era atingir a “sua terra”, o Bem, a Verdade e o Belo. Porque tinha sempre uma meta maior a atingir, não se perdeu nem reteve numa circunstância da vida ou num lugar. Ítaca e Penélope davam-lhe força para continuar o seu caminho. O caminho enriquece-o e a meta torna-o sábio. Ao chegar à terra tinha conseguido reunir nele todo o saber da vida. Tinha chegado ao profundo dele mesmo!
© António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com
Pegadas do Tempo
http://antonio-justo.blogspot.com/
(1) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 146, Editorial Verbo
(2) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 191 Editorial Verbo
(3) Rudolf Steiner in Grundlinien einer erkenntnistheorie der Goethschen Weltanschaung, mit besondrer Rücksicht auf Schiler.GA Bibl.-Nr.2 Dornach, 7.Aufl.1979
(4) Antero de Quental, Pensamento Português, p. 102, Editorial Verbo
(5) Pierre Teilhard de Chardin, O Fenómeno Humano, Livraria Tavares Martins, Porto 1965
(6) Jean Gebser, Hasienfiebel, p.157, Bern 1962
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2 comentários:
Excelente, meu caro Prof. António Justo, embora demasiado extenso.
Fazendo jus à humildade socrática, cada vez mais concluo que só sei que nada sei, mas, desta vez fiquei ciente de que tenho ainda um longo caminho a percorrer, desde logo para me conhecer a mim próprio.
Obrigado e um fraternal abraço,
Jorge da Paz.
Dr. Jorgede Paz
Quem sabe que não sabe, já adquiriu a plataforma, a base do viver e a consciência da complementaridade das coisas e da própri vida.
É formidável esta aventura em que nos encontramos juntos, num acordar sempre novo para um novo amanhecer e nele sempre de novo acontecer à sombra do não saber e no soletrar do conhecer.
Obrigado
Um abraço justo
António Justo
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