Interrupção da Dança do Dia-a-dia
Sexta-feira Santa
António Justo
Na minha terra adoptiva, Kassel, no Estado do Hesse, Alemanha, há uma lei
que regula os dias santos e feriados. Ela proíbe eventos de dança desde as 4
horas de Quinta-feira Santa até às 24 horas de Sábado Santo. No Domingo e
Segunda-feira de Páscoa é proibido festejar entre as 4 e as 12 horas tal como
nos outros feriados nacionais.
O partido dos Piratas e a Juventude dos Verdes recorreram ao Tribunal
Constitucional, no sentido de poderem organizar danças para Sexta-feira santa,
dado esse dia não lhes dizer nada. O Tribunal Constitucional, porém, não
aceitou tal plano pelo facto do assunto ser da competência de outro tribunal;
vários tribunais do Hesse proibiram as demonstrações contra a lei dos feriados,
planeadas pelos referidos grupos, para Sexta-feira Santa.
Na Sexta-feira Santa, o dia do silêncio, é comemorada a morte de Jesus. O
alemão para designar a Semana Santa utiliza a velha expressão ”Semana das
lamentações”.
Interrupções no ritmo trabalho-compra-diversão revelam-se como salutares
para o equilíbrio psíquico humano. Na Alemanha há uma forte aliança entre
Igreja, Sindicatos e Associações no sentido de se não ocupar os Domingos e
feriados com o trabalho. O Homem não é de pau, nem vive só de pão, nem foi
criado para estar continuamente disponível para um mercado de trabalho que quer
ocupar todos os espaços humanos.
Na União Europeia já há muita gente que reconhece a necessidade de tempos
de sossego e de calma, pelo que vários deputados europeus formaram uma
iniciativa em defesa do Domingo como dia livre de trabalho.
Uma sociedade sem espírito público, de tendências individualistas
eliminaria o estado social que se baseia em valores comuns. Naturalmente que
cada convicção deve ser respeitada mas não cair no extremo duma anonimidade
geral. A regularmo-nos apenas pelo individualismo teríamos de abolir todos os
dias santos e feriados, todos os nomes de ruas. O que para uns é afirmação para
outros pode constituir uma provocação.
Temos que viver uns com os outros, cada qual suportando o peso e a riqueza
do seu gene e apesar de tudo manter um sentimento grato pelas tradições que nos
deram o ser cultural. Trata-se de nos suportarmos uns aos outros num espírito
de benevolência sem nos querermos afirmar à custa dos outros. Doutro modo
teríamos que criar uma sociedade irreal abstracta reduzindo tudo a números.
O Cristianismo (gregos, romanos, judeus e outros) gerou-nos, como cultura,
constituindo os nossos fundamentos. Trazemos em nós os genes da cultura assim
como somos portadores dos genes de nossos pais, sem eles não seriámos nós, quer
queiramos ou não eles são e estão em nós tanto no cómodo como no incómodo, no
defeito como na virtude. Não reconhecer isto é fuga. Constituiria um testemunho
de pobreza se nos fixássemos num espírito de contradição obstinado contra a
nossa cultura. Importante seria reconhecer seus defeitos e virtudes em nós; só
então estaremos prontos para nos descobrirmos a nós.
A nossa sociedade tem-se preocupado muito com a afirmação a nível
individual. Não pode esquecer porém que indivíduo e comunidade são as duas
faces da mesma moeda, a pessoa. Tudo o que se faz ou deixa de fazer só se
legitima tendo por base a defesa e o serviço da pessoa humana. Por isso é
preciso tomar a sério muitas solicitações da Igreja. A Igreja preocupa-se
pela defesa da pessoa no seu todo enquanto o Estado e as Empresas se preocupam
mais em considerar a pessoa como indivíduo, como pagador de impostos, como
cliente.
A Semana Santa é o dia grande da cristandade em que a metamorfose da vida e
do mundo se resumem num só acontecer, num processo de morrer para renascer.
Para os protestantes, Sexta-feira Santa é por assim dizer o dia santo “mais
evangélico” pelo facto de “no sofrimento e morte de Jesus Cristo se
experimentar a proximidade de Deus neste mundo, até à morte”, como diz o bispo
Martin Hein.
Numa realidade de morrer e renascer, defensores e contrariadores, terão de
aprender a levar a cruz uns dos outros, dado cada um de nós ser, em parte, a
cruz do outro.
António da Cunha Duarte Justo
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