Uma Cultura a gerar Filhos de Ninguém
– O Ocidente
António Justo
Quando era pequenino quem trazia
as prendas de natal era o menino Jesus; de 24 para 25 de Dezembro, pela calada
da noite, ele colocava-as na lareira junto aos sapatos.
Com a comercialização da
sociedade foi-se impondo o Pai-Natal (Papai Noel), vindo do Polo Norte num
trenó; um homem rechonchudo, alegre e de barba branca vestido de vermelho e com
um gorro caído virado para a terra. Os americanos protestantes (USA e Canadá -
não inclinados para o culto dos santos) e propensos ao capitalismo, em vez de
importarem da Europa a tradição católica do menino Jesus e do sapatinho à
lareira ou do São Nicolau, criaram a figura do Pai-Natal, em 1860, à imagem da
tradição nórdica do S. Nicolau. A substituição do bispo, que oferecera a sua
grande herança aos pobres, pela figura do Pai-Natal, foi comercializada nos
meados do século XIX pela empresa Coca-Cola. Pai Natal é a substituição secular
do “Menino Jesus”
“Menino Jesus”, São Nicolau
(Santa Claus), Pai-Natal, são nomes que se dão à personagem que traz os
presentes na Véspera de Natal, (24 de dezembro), ou no dia de São Nicolau (6 de
Dezembro). No Natal faziam-se prendas para lembrar a oferta de Cristo à
humanidade; como fomos prendados continuamos a prendar os outros.
É interessante verificar, duma
perspectiva sociológica, como cada época e povo cria/transforma as suas
tradições à medida da sua alma e do seu ideário central. Este torna-se como que
a estrela de Belém atrás da qual todo o mundo corre. As exterioridades
folclóricas permanecem as mesmas; muda apenas o seu conteúdo cada vez mais
feito de superficialidades, a nível de massas.
Se observamos a natureza tudo se
desenvolve do interior para o exterior. O exterior chama a atenção para a vida
interior a ser transmitir. Nos tempos em que a preocupação do ser humano com
suas instituições se centrava mais nos bens interiores e na comunidade, as suas
instituições preocupavam-se com a integração do novo na sua alma.
A Igreja Católica, no seu
contacto com os povos bárbaros, respeitava o cerne das suas crenças procurando
integrá-las no seu firmamento metafísico. Assim, num processo de aculturação e
de inculturação dava profundidade e resposta aos mitos de povos e culturas,
integrando num conceito global diferentes arquétipos da sociedade e do Homem.
Nos mitos (arquétipos) encontra-se a simbologia plastificada da realidade
humana para além do momento histórico. Por isso a verdade mitológica é mais
real/verdadeira que a verdade histórica; esta é apenas o resultado do agir no
sentido da concretização dos mitos.
Uma cultura a gerar filhos de ninguém
Com a acentuação da modernidade e
do secularismo tem-se dado o processo inverso, iniciando-se assim a exoneração
da cultura ocidental. O comércio apodera-se dos mitos cristãos para os
desmiolar num processo de secularização desespiritualizadora para os
instrumentalizar em seu benefício. Neste processo, em vez de um procedimento de
enriquecimento e de interiorização no sentido da continuidade comunitária dá-se
o contrário, a mera exteriorização sem ligação ao interior, apenas centrada no
sentido da parcela e do momento. Só conta o embrulho que deslumbra o mundo. Tal
como o protestantismo expressou o início do fim da cultura medieval agrária
(fim do domínio dos países latinos) e o início do domínio nórdico baseado mais
no fomento do capitalismo (do direito do indivíduo contra a comunidade),
observa-se hoje o início da destruição da cultura ocidental através do
globalismo financeiro. É preocupante dar-se conta dos paralelos entre a relação
protestantismo-catolicismo como indicadoras do início de uma nova era no século
XVI e a relação cristianismo-secularismo da actualidade, como início do abdicar
da civilização ocidental e o início de uma sociedade anónima orientada pela
pseudo-ética de um utilitarismo universal. Encontramo-nos no início do fim.
Os símbolos religiosos são
substituídos por símbolos comerciais centrados no negócio e já não no ideário
cristão. Deixam de ser arquétipos (modelos da alma e da civilização) para se
tornarem símbolos do capital e do comércio ao serviço de necessidades
artificiais. A relação humanista dá lugar à relação comercial. Ao ignorar a sua
bondade inicial interior, o Homem torna-se a sua própria fera.
Na análise que aqui faço apenas
me limito a referir um pequeno aspecto cultural, um sintoma limitado mas
sintomático da autodestruição sistemática duma grande civilização que parece
odiar-se a si mesma.
Quem melhor quiser conhecer a
alma das civilizações e das culturas observa-lhes os seus mitos, a sua alma. A
autodestruição da civilização ocidental é imparável ao reduzi-la ao seu aspecto
de permuta económico-comercial e que se torna patente na substituição do
Nicolau pelo Pai-Natal. O São Nicolau tinha uma mitra com a ponta a indicar
para o céu e a ponta da barba a apontar para a terra; tinha o corpo em posição
direita a indicar respeito e relação com a transcendência e o bastão da
autoridade. Nicolau é o símbolo da autoridade não autoritária que proporciona
lugar para o crescimento dos outros de modo a tornarem-se adultos.
Sem o poder e a influência que
representa a propaganda Coca-Cola, o Pai Natal não teria transferido tão
depressa os países protestantes. Hoje ele tornou-se na expressão da sociedade
de consumo em que vivemos. O Pai-Natal, não vem do céu, vem dos países frios do
norte e é expressão dos valores da nossa sociedade. Em vez da tiara
simbolizadora da espiritualidade e do alto, o Pai Noel traz um gorro vermelho
virado para o chão. Tem as proporções corporais de uma criança de três anos e
um nariz grosseiro batatudo a puxar para baixo; é infantil, com um saco aos
ombros pronto a distribuir o seu conteúdo. Deixou de ser um arquétipo da alma
para se tornar a documentação duma sociedade de consumo em regressão.
A Vida do Presépio é Espírito ainda não materializado
Uma sociedade sem mitos empobrece
e é abafada; uma sociedade sem natal é escura e sem perspectiva transcendente;
natal é o tempo do dar à luz, é o tempo dos símbolos e dos contos de fadas e
das crianças. (“Se não mudardes e não vos tornardes como crianças, de modo
algum entrareis no reino dos céus” (Mat.18.3).)
Não se trata de recordar apenas
algo que aconteceu no passado. O mito é uma verdade e não uma fantasia (Na
linguagem coloquial a palavra mito é usada como algo fruto da fantasia). Mais
importante do que o acontecido no passado é a verdade do que está sempre a
acontecer, ontem, hoje e amanhã, em diferentes dimensões. Mito é teologicamente
algo/verdade sempre a acontecer em nós e na comunidade.
O Evangelho fala apenas do
nascimento de Jesus na “manjedoura de um curral” em Belém e de pastores e magos
(três reis) que o visitam. Na descrição da infância de Jesus mistura-se a
realidade da História com a realidade das metáforas.
A procura de um lugar para a
criança divina, longe da terra natal, é naturalmente uma metáfora. A alma não é
oriunda da terra, nós vimos de outro lugar e não somos deste mundo. O mundo não
é um albergue afável e quente. No nascimento virginal acontece algo
completamente novo e inexplicável (Também aparece no budismo e no taoismo).
Jesus é também o nosso arquétipo e como tal mostra que também nós temos uma mãe
terrestre e ao mesmo tempo temos origem celeste, somos seres espirituais. Esta
origem espiritual foi por nós esquecida. No nascimento virginal o pai é
espiritual e como tal desconhecido. Jesus conhecia o seu Pai. O pai de todos
nós é em certa medida o grande desconhecido. Somos todos filhos de Deus e a
nossa vida é uma busca do grande desconhecido! A pessoa de fé vive da
ressonância da presença divina em si e no mundo, ela tem a consciência de a ter
presente no seu interior.
Há a verdade histórica e a
verdade da alma e espiritual. A criança divina no presépio não se relaciona
apenas à realidade histórica do seu nascimento (Belém/Nazaré) mas é também
símbolo e garantia da criança interior em nós.
A criança não nasceu em casa, na
própria terra; foi nascer em terra distante. Para que nasça algo novo em nós
teremos de abandonar os velhos hábitos, teremos de abandonar a nossa casa, a
segurança do dia-a-dia que não é albergue nem lar definitivo. Na pobreza do
espírito, depois de despidos do nosso saber, das certezas e opiniões, depois de
nos tornarmos pequeninos e depois de ter morrido o poder e a violência de
Herodes em nós, então seremos o presépio onde a criança surgirá. A criança
divina não ameaça nem usa poder. Não podemos continuar a esconder Jesus como
fizeram os seus pais a caminho do Egipto (metáfora), numa fuga contínua ao
perigo. Possuímos o sangue real. Jesus provém dos tronos de David e de Deus.
Em cada um de nós dorme uma
criança, o eu original. A verdadeira realidade é invisível e só acessível pelo
coração. O caminho é estreito. Para se chegar ao fundo da gruta, ao reino da
criança divina em nós, vale a pena tentar ultrapassar a barreira do medo em
nós, deixar o estresse, para chegar onde tudo é bom, onde nos sentimos bem e
como feitos e envolvidos em muitas realidades. A nossa criança interior
encontra-se atafegada em nós por medos e certezas, por fugas e corridas, vive
amedrontada pelo barulho das nossas razões e opiniões. Jesus, o divino infante,
encontra-se na concha do nosso interior, ele é a natureza da nossa ipseidade à
espera de ser ouvida. Do fundo do reino da verdade, a divindade quer falar,
quer ser ouvida, já não através da cabeça mas no silêncio do coração. Em cada
um de nós encontra-se prisioneira a outra parte de nós, a nossa parte divina,
onde a criança definha à espera de ser ouvida.
António da Cunha Duarte Justo
www.antonio-justo.eu
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