Rússia entre Império e Nação
Para
a Compreensão do Conflito Este-Oeste e da Ucrânia
António Justo
A alma russa está ferida. Sente-se
traumatizada devido à decadência do império czarista, seguido da queda da União
Soviética e defrontando-se agora com o medo da concorrência e influência
europeia (sua prosperidade, direitos civis, decadência moral e o interesse da
política dos EUA em desestabilizá-la), bem como da latente instabilidade que fermenta nos seus
povos turcos, muçulmanos e outros.
Neste contexto, não é de estranhar um Putin viril, autoritário e decidido. Vladimir
Putin fala claro, revela encarnar os interesses e intenções da Rússia
negligenciando a realidade histórica da primeira e segunda guerra mundial no
século XX ao afirmar que “a queda da
União Soviética foi a maior catástrofe do século XX”. Deste modo
distancia-se da interpretação histórica de perspectiva europeia e revela-se
como verdadeiro czar.
A queda da
União Soviética em 1989/90 deixou um vácuo de soberania na sua qualidade de
potência mundial. Depois da
anexação da Crimeia, a reputação de Putin subiu na Rússia para 86%. Putin quer a criação de uma união
euroasiática sob orientação da Rússia, o que poderia tornar-se num poder
superior à UE. A anexação da Crimeia obedece à logica do poder que se serve de
estratégias a longo plano.
A Rússia não seguirá o
caminho democrático do Ocidente, por razões históricas e de interesses estratégicos.
Aprendeu bem a lição do que o Ocidente provocou com a defesa de uma certa
ideologia democrática propagada na “Primavera Árabe” e na política falhada do
Ocidente no Norte de África e em especial no Iraque, Líbia, Afeganistão e
Síria.
Factores de Identidade: Antes o Comunismo agora
o Conservadorismo
Putin é o gladiador da luta
entre culturas; ele quer ostentar a Rússia como baluarte da tradição. A Rússia, Estado multi-étnico,
encontra-se dividida entre os pró-ocidente e os pro-eslavos. Estes vêm no ocidente o perigo de
destruição da alma russa (Dostojewski e Tolstoi). Dostojewski, nos “Irmãos Karamazov”, profetiza a queda do
espírito europeu, resumindo o espírito russo no seu aforismo "Nós somos
revolucionários (...) através do conservadorismo".
A
civilização russa mantinha-se antes unida pelo comunismo, agora deve uni-la o
conservadorismo intelectual e moral. Enquanto na UE o Estado secular e as
ideologias atacam o cristianismo, na Rússia vê-se isso como um estado decadente
da UE e contracenando-se a esta o fortalecimento dos laços de união entre
Estado e Ortodoxia/religião, contra o pluralismo e o individualismo
democrático.
A
estratégia de Putin é unir o antigo mundo da União Soviética, através do
conservadorismo (anti-modernismo), contando para isso com o trunfo da ortodoxia
e do islão. Defende
o conservadorismo cultural russo para ganhar perfil, como defensor da tradição
conservadora, perante o mundo ocidental. Para ele a tradição conservadora “é o fundamento espiritual e moral da
civilização de cada nação“. A defesa da família e de valores tradicionais
são fundamentos inalienáveis.
Também o leste e sul da
Ucrânia são o símbolo da luta pelos valores conservadores (pro russos) enquanto
o resto da Ucrânia defende os valores liberais pro ocidente. Com esta
estratégia Putin pretende arranjar apoiantes nos países muçulmanos e na África.
A sua campanha conservadora consegue também apoiantes em toda a Ucrânia e deste
modo uma maior divisão da Ucrânia no sentido russo.
Num
mundo de luta entre conservadores e progressistas, Putin distancia-se do
liberalismo ocidental. A Rússia descobre a sua nova missão para a Europa.
O Ocidente (EUA) não respeita outras ordens de
Paz
Encontramo-nos numa guerra
económica e pós-colonial de interesses geopolíticos entre o Ocidente e o
oriente. Em nome das liberdades individuais destroem-se as sociais, em nome da democracia
atacam-se outros sistemas civilizacionais. Obama ao apelidar a Rússia de
“potência regional” humilha Putin e interpreta erroneamente o espírito de um
grande povo.
A estratégia nacionalista
de Putin não pode ser contraposta com uma política de exclusão. A Europa tem
que viver com Putin e trabalhar, a longo prazo, no sentido de uma maior união e
de política comum com a Rússia (no aspecto cultural, económico e
geoestratégico).
A
ordem de paz europeia não pode ser arquitectada sem uma ordem de paz russa,
pelo que o princípio defendido por Merkel da “livre autodeterminação dos
povos”, por muito humano que seja, contradiz a paz russa, a paz chinesa e a paz
árabe.
Por outro lado, a segurança não pode ser o único critério para um bloco se
manter e pisar a liberdade e os direitos humanos com os pés.
Por trás de cada ordem de
paz encontra-se uma estratégia e uma hegemonia. A União Soviética viveu durante
várias gerações no caos sob o braço forte do comunismo. Não será agora uma
união aduaneira nem o conservadorismo o suficiente para reverter a História. As
potências não demonstram boa vontade nem responsabilidade histórica global
quando instigam guerra-civis para conseguirem os seus objectivos. A Rússia é
importante, também culturalmente, para a União Europeia.
A China, devido
ao regime político e ao problema dos diferentes povos que alberga é, também
ela, contra a autodeterminação nacional. A China, como não está preparada para
exercer a chefia do mundo, junta-se à Rússia. A China e a Rússia são conjuntos
de povos com grandes regiões em situação social medieval, e onde não houve um
processo de lutas e de colonizações internas, como no caso da Europa e dos
Estados unidos. Por isso as suas estratégias de desenvolvimento são
necessariamente diferentes (durante um espaço de tempo histórico) para manterem
a paz dentro dos seus territórios. A UE e os EUA são extemporâneos e, por isso,
desestabilizadores daqueles povos,
exigindo deles que se tornem estados modernos à imagem das democracias
ocidentais. De facto fomentam a instabilidade e a hegemonia económica sobre
estes estados. O problema da política da UE e dos EUA está em fazerem as suas conversações
com as elites e não ligar à sociedade civil.
O povo fala de política e os políticos falam
de negócios
A economia russa não consegue concorrer com o
ocidente.
A Alemanha está muito
comprometida com a Rússia; 39% do gás natural que consome vem da Rússia e
muitas infraestruturas (pipelines, etc.) encontram-se, nas mãos de russos, na Alemanha.
A UE já tomou provisões
construindo um terminal (LNG) em Rotterdam para os navios que transportam gás líquido
da noruega, Catar e Nigéria. Segundo
a revista Spiegel 14/2014 já há 22 instalações que se fazem concorrência umas
às outras, podendo cobrir já hoje dois terços das necessidades de gás ( gás de xisto, gás do mar
cáspio como visão de futuro para fugir à Rússia). A Alemanha já produz biogás
que corresponde a 20% do gás importado da Rússia. Em 2013 a Alemanha teve, com
a Rússia, um volume de negócios de 66 mil milhões de euros estando dependentes
deste negócio 300.000 mil postos de trabalho na Alemanha. Por isso as sanções
são também contra a própria economia.
Segundo a repartição de estatísticas Rosstat, os
preços de produtos alimentares encareceram na Rússia 20%, em 2014. O Rubel
desvalorizou 70% num ano e a inflação atingiu os 11% em 2014.Oxalá Putin não
cometa o mesmo erro que a União Soviética cometeu com o comunismo. A história
pode adiar-se, mas não indefinidamente. Uma Rússia fraca torna-se mais perigosa
para a União Europeia e para a NATO do que um povo russo forte.
A guerra da Ucrânia já matou desde
Abril 5.400 pessoas. Uns lutam pela liberdade democrática, outros pela
estabilidade futura de blocos e por isso a guerra flui na rua… A Ucrânia,
símbolo da europa central que procura refúgio numa das uniões ocidentais,
encontra-se geograficamente na Europa mas socialmente dividida e entre as
intenções russas de construir um bloco de união aduaneira e a NATO/EU com
políticas não aferidas. A Polónia e outros países limítrofes da Rússia advogam
uma política da confrontação em relação à Rússia enquanto a Alemanha, França e
outros países da UE preferem cooperar em parte com a Rússia. Bruxelas quer
assinar um Acordo de Associação com a Moldávia também ela dividida entre
ocidente e oriente. Tudo isto leva a compreender que na Ucrânia estão em jogo
os mais variados interesses que a levam a não ser um país normal.
Numa UE dividida, a Alemanha procura
usar de todo o seu peso para mediar e impedir a escalação do conflito
Rússia-Ucrânia. A Chanceler é contrária à intenção de os EUA fornecerem armas à
Ucrânia, prefere uma solução diplomática. O plano de paz de Merkel e de
Hollande antecipa uma zona desmilitarizada de 50 a 70Km entre os partidos de
conflito e maior autonomia para a Zona Leste da Ucrânia. As negociações dão-se,
intencionalmente e de forma paralela à Conferência de Segurança de Munique para
sinalizar a importância de uma solução não conflitual. Merkel dirigiu-se a
Obama para conseguir mediar um plano sólido que uma Europa dividida não
conseguiriam dado alguns estados da UE estarem interessados em seguir mais a
política americana.
Já chega. Esperemos que o plano de
Merkel, aquele que mais contempla os interesses da EU, da Rússia e da Ucrânia,
seja um marco importante a caminho da união dos
povos e da realização dos direitos humanos numa perspectiva global
António
da Cunha Duarte Justo
Jornalista
www.antonio-justo.eu
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