A EUTANÁSIA E A MORTE ORGANIZADA
António Justo
Fala-se da "eutanásia ativa" e da „eutanásia passiva". A
"eutanásia ativa" implica a opção pela morte individualmente
deliberada por um enfermo incurável e assistida pelo médico que, a pedido do
paciente, lhe prepara um cocktail mortal ("suicídio assistido").
Na "eutanásia passiva" são interrompidas as acções que tenham por
fim prolongar a vida. O paciente pode determinar não querer a utilização de
instrumentos nem medidas de prolongação da vida Este prática já é muito comum
em pacientes de estado terminal. O alívio do sofrimento torna-se prevenção
contra suicídio e ajuda a evitar o desespero da vida e possibilita a
assistência espiritual. No processo da morte, moribundos chegam a ter momentos
de alegria e felicidade e momentos de desespero.
Os defensores do "suicídio assistido" costumam argumentar com o
direito do indivíduo à autodeterminação e alegam querer evitar situações “sem
qualidade de vida”.
Na Alemanha é proibido o suicídio assistido. A maioria dos filiados nos
partidos da União CDU/CSU é contra o suicídio assistido; defende a medicina
paliativa em que se receitem analgésicos (contra a dor) mesmo que
indirectamente encurtem a vida. O SPD, partido da coligação, expressou a
opinião de deixar espaço livre aos médicos em questões terminais (situações
limite). O partido os Verdes protagoniza a liberdade de decisão e em casos
especiais estende-a também a familiares e pessoas mais próximas. Muitos
parlamentares dos vários partidos são de opinião que é suficiente a melhoria
dos cuidados paliativos no hospício.
O Porquê do não à Eutanásia
A liberdade de autodeterminação no suicídio (porque só no fim da vida) não
parece ter lógica. A razão não pode justificar o direito de matar ou de morrer.
Além disso, o ser humano é ele e as suas circunstâncias e estas podem
conduzi-lo ao medo de ficar só, de se tornar num fardo para outros, de se
encontrar num momento depressivo e deste modo ser motivado a desejar a morte,
num determinado momento. É problemático argumentar, em nome da
autodeterminação, porque esta tem sempre a ver com as circunstâncias... Os
momentos de dificuldades não são os melhores conselheiros para se tomarem
decisões irrevogáveis.
A ajuda ao suicídio não pode ser uma missão do médico nem é uma questão a
ser organizada a nível de negócio. A ética médica tem em conta o juramento de
Hipócrates, que se compromete a defender e preservar a vida; eutanásia é
homicídio e como tal fora do âmbito da ordem dos médicos. A Ordem dos
Médicos alemã, numa tomada de posição a 12.12.2104 declarou repudiar
veementemente o suicídio assistido por médicos. A sua conduta é a orientação
pela “ regulamentação profissional dos médicos que diz que é dever dos médicos
preservar a vida”. Só a vida, a saúde tem de ser protegida e restaurada, o
sofrimento deve ser aliviado e praticada a assistência aos moribundos.
Há casos de consciência em que o médico se pode encontrar num dilema mas
que não pode ser solucionado com uma lei porque uma “excepção normalizada”
poderia tornar-se regra, como advoga o actual ministro da saúde na Alemanha.
A religião é contra o suicídio assistido porque considera a vida como um
dom sagrado. Para o cristianismo o ser humano não se deixa reduzir à biologia
nem a sua vida pode ser deliberada pelo Estado nem por qualquer instituição. De
facto a eutanásia é um acto contra a natureza e inclui também o perigo da
industrialização da morte e do distanciamento familiar. A mentalidade
economicista em via e a maneira como já se tratam os reformados não deixa
pressupor o melhor desenvolvimento no sentido humano.
Nenhuma diagnose é segura, há sempre pessoas que apesar de diagnosticadas
de doença mortal se restabeleceram. A eutanásia é decisiva e não deixa lugar
para rever a decisão tomada no caso de condições mudarem.
As pessoas são manipuláveis pelo ambiente e pelo espírito do tempo. Vivemos
numa sociedade utilitária que cada vez mais avalia tudo em relação aos custos.
No nacional-socialismo tornou-se comum a destruição de “vida inútil”. Pessoas
deficientes, operações a partir dos 70 passam a ser encaradas sob a perspectiva
utilitária. O nacional-socialismo de Hitler determinava o que era digno de vida
e o que não.
Morrer é um processo natural. Morrer dignamente não precisa de suicídio
assistido.
Já o Antigo Testamento considerava a vida como oferta de Deus (Gen 2,7) e
recomenda: “não deves matar (Ex 20,13). A maneira como se tratam doentes e
moribundos é um indicador do grau da civilização de um povo. "Nunca é
lícito matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse (…) nem
é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de
sobreviver" (Santo Agostinho in Epístola).
Não se tem o direito de decidir sobre vida ou morte. O tabu da morte serve
o respeito e a protecção da vida como um direito fundamental das pessoas. A
licença para matar viria da barbaridade que veria a morte como último remédio.
Há pessoas habituadas a mestrear toda a sua vida e querem determinar também
o seu momento de morrer. Muitos defendem que uma motivação religiosa não dever
ser alargada a toda a população. A decisão sobre a vida não é da competência de
nenhuma instância humana, pelo que não deveria ser legalmente privatizada nem
deixada a nenhuma instituição.
Quem assiste pacientes terminais de casos muito difíceis, sente-se, muitas
vezes, desafiado e indefinido. Por trás de cada posição encontra-se um juízo de
valor. Não há soluções definitivas, há que viver com a morte...
Um Testemunho pessoal
O teólogo Hans Küng, que sofre de Parkinson, defende o direito à eutanásia
no fim da sua vida. "Eu assumo a minha responsabilidade para o meu morrer
na devida altura, uma responsabilidade que ninguém me pode tirar... Deus
oferece-me a graça, assim espero eu, de reconhecer o verdadeiro momento; o mais
tardar seria para mim, certamente o início duma demência”. Küng considera a vida
como um dom de Deus mas ao mesmo tempo, segundo a vontade de Deus, a vida é uma
missão do Homem e, como tal, também na sua última etapa. “Ninguém deve ser
incitado a morrer mas também não deve ser obrigado a viver” ( Hanns küng em
“Menschenwürdig sterben von 2009”). É uma questão reservada á consciência da
pessoa. A crença na vida eterna para lá do espaço e do tempo não precisa de se
preocupar com o prolongamento da vida temporal.
O médico e o padre podem acompanhar o desejo de morrer. Não é sua missão
julgar nem condenar mas assistir. Temos que viver com a incerteza. Informação
venha ela de onde vier é também manipulação.
O Negócio com a Morte
Países baixos, Bélgica, Suíça tornaram-se em países do turismo da morte.
Forças económicas dos países vizinhos olham com inveja para estes países.
Há grupos que fazem negócio com a vida prolongando-a e outros encurtando-a.
É perverso, querer fazer-se um negócio sob o desígnio da humanidade e de
defender a dignidade humana. A propaganda vem mais de organizadores da
eutanásia que ganham dinheiro com ela. Se o seu motivo não é económico mas
humanista então porque o não fazem gratuitamente.
A meta não deveria ser uma morte humana mas uma vida humana. Numa época em
que a eutanásia é idealizada, a organização do suicídio assistido torna-se
trágico.
Conclusão
O teólogo Küng não defende o suicídio assistido mas reserva-se para si o
direito de assumir a responsabilidade da sua morte no momento oportuno. É
contra a recusa absoluta de toda a eutanásia e contra a arbitrariedade do
morrer; opta por um meio termo que segundo ele se funda na fé pessoal. Küng,
como cristão responsável, fala por si e não em nome da instituição.
A Igreja petrina, pelo seu caracter constitucional, não pode ser pela
eutanásia. A nível pastoral, sabe que a vida é oferta, uma dádiva a ser cuidada
e desenvolvida e não encurtada nem reduzida a uma simples ideia sobre ela, mas
conhece também o princípio da ética cristã: o último juiz em questões de
decisão na terra é a consciência individual da pessoa.
Os textos sagrados não se perdem na lógica; permitem a contradição. Se
fossem lógicos limitar-se-iam ao caminho da ciência. Assim podem-se dedicar às
verdades eternas através da fé. Esta é dom que permite navegar noutras esferas
que não as do dia-a-dia demasiadamente determinadas pelo utilitário.
Não é fácil nascer nem é fácil morrer; nos segredos da existência só Deus e
a própria consciência!
António da Cunha Duarte
Justo
Teólogo
5 comentários:
Prezado Sr. Antônio Justo.
Texto muito elucidativo e didático.
Como o amigo, concordo que a matéria é extremamente polêmica pelas situações que podem se apresentar e pela cultura dos povos que a podem avaliar.
Como cristã, pela formação religiosa e profissional, sou contra a eutanásia, pois aprendemos que a vida é um dom de Deus a nós ofertado, que deve ser preservado, e que só Ele nos pode tirar.
Mas todos sabemos que nem sempre estar vivo é ter vida, principalmente quando por seqüelas de doenças ou traumas nos tornamos um vegetal. Aí vem o questionamento; como suportar ver o sofrimento de um ente querido, pela ciência condenado, em cima de uma cama definhando dia a dia, cheio de escaras e feridas, na aflição de não poder respirar, se alimentar ou se virar? Como suportar ver o seu corpo a fios ligado, apodrecendo, sentindo dores e odores horrendos, sem poder ajudar? Como interpretar os grunhidos de desconforto e dor, sem saber se ainda existe alguma consciência naquela mente, quando a dignidade da forma humana se apaga? Como aceitar tanto sofrimento se até os nossos animais, quando estão muito doentes sem esperança de cura, não deixamos padecer mais?
Mas nós humanos, na nossa sociedade, não somos donos do nosso destino, não intervimos. Por formação religiosa, e por lei, então, pagamos na Terra as dívidas com Deus e com os Homens!
Eduarda
in Diálogos Lusófonos 12.03.2014
Obrigado, prezada Eduarda, pelo comentário feito e que descreve muito bem a situação de muitos casos de estado terminal.
Também eu, pessoalmente, na qualidade de cristão, não sou a favor da eutanásia activa, mas para casos como os que descreve haveria o recurso à eutanásia passiva, através da recusa de acções ou medicamentos que tenham por fim prolongar a vida; neste caso haveria só o recurso à medicação de analgésicos para impedir a dor. Para este efeito, as pessoas ainda saudáveis deveriam declarar aos familiares e que não querem medidas de prolongamento da vida, no caso de se encontrarem numa situação que não possam mais decidir por si próprios. Hoje a medicina paliativa já se encontra muito adiantada.
Atenciosamente
António Justo
Meu caro amigo Justo
O texto que divulgaste – porque dizes ser teólogo – despertou este meu comentário que como verás não vai em consonância com o teu ponto de vista mas é pretexto para eu ir conhecendo posições e experiências semelhantes àquelas por que passei (não conhecia a do H. Kung) e até porque não excluo vir a envolver-me na defesa, legalmente consagrada (mas opcional), do direito a morrer com dignidade. A dura experiência por que recentemente passei… na mesma medida em que me fez (e continua a fazer) sofrer ensinou-me muito: uma das coisas que aprendi foi que a medicina, em situações terminais bem conhecidas (no caso os pontos de vista médicos de S. Paulo, Boston (EUA), Lyon (França) e Lisboa eram coincidentes), não consegue tirar a dor sem tirar a consciência…e viver inconsciente não é viver.A situação está ainda muito fresca para mim e não me permite discorrer mais. Só para te agradecer e dizer-te que há quem defenda o “direito a morrer com dignidade/consciente” (não me dou vem com outras designações) que merece o mesmo respeito, consideração e reconhecimento que merece quem defende o contrário e muito menos convivo bem com quem tenta atacar como irresponsável quem não pensa como ele. Não se trata de negar Deus mas de o não chamar para explicar coisas que, numa dimensão, têm explicação científica e noutras não têm explicação.
Abraço
Joaquim
Caro amigo
Penso que a verdade só sorri aos que sofrem e o sofrimento não precisa de absolvição nem de condenação; a morte sente-se como um roubo à felicidade, um abalo do pensamento que abana o espírito. A morte, o sofrimento é um outro lado da realidade que, naturalmente, não pode justificar qualquer pensamento, mas o certo é que quem sofre sabe mais.
Caro amigo, a tua posição enriquece as perspectivas por que encarar o problema. O encontro com a morte é um encontro com a vida e como tal muito individual e misterioso. Se tenho em conta a minha experiência com moribundos e a opinião de muito do pessoal que trabalha directamente com pacientes terminais surge, por vezes, a dúvida em relação a posições fixas, legais ou intelectuais.
Racionalmente, a morte pode ser um caminho mas o “suicídio assistido” legalizado, rapidamente se torna numa mediada, num serviço público rotineiro e se olhado pela sociedade sob o ponto de vista económico, “um morto é mais barato que um vivo que nada produz e só gasta”.
A “eutanásia activa” ou suicídio assistido não deveria ser determinada por uma regulação do governo, porque diz respeito à atitude de cada um sobre a dignidade humana e a assistência à morte não pode ser reduzida a um mero serviço médico de urgência.
Por isso, no assunto, prefiro distinguir entre opinião individual a respeitar e opinião tornada pública a acautelar; em termos sociais prefiro uma zona cinzenta de indistinção do que a força de um pragmatismo claro que abdica, à partida, da visão espiritual, de princípios ou da posição individual. Com disse, a Igreja tem de ser por princípio (atendendo ao seu caracter constitucional) contra o suicídio assistido, o que não quer dizer que não haja excepções a nível da prática (pastoral) garantida pela consciência individual.
A questão de não se conseguir tirar a dor sem tirar a consciência é um argumento para meditar mas do qual, penso não ser consequência lógica seguir-se-lhe o postulado “viver inconsciente não é viver”. Também penso que a consciência é como a vela que com a falta da cera se apaga também, e por isso, os analgésicos terão a vantagem de tirar as dores do arder mas deixar espaço para uma outra luz a germinar no casulo; a existência vai-se para continuar no mistério do ser.
A vida sem a componente do mistério perde a luminosidade, a criatividade e o encanto. O homem está no centro, não a morte. Job está presente e na dor o chorar em comum também produz reflexos de luz. De resto no que toca à morte, tudo é cuidado, tudo é noite sem sol, sob a luz da lua coada pelo sentimento. O homem de fé é soberano e na experiência individual do encontro receberá a luz que o iluminará na decisão de seguir ou não a lei do tempo.
Penso que, por vezes, a sociedade se preocupa demasiado com aspectos técnicos relegando para segundo plano o que envolve a morte e a vida. Para preservarmos a humanidade e a liberdade dos moribundos, deve criar-se um abrigo, um espaço protegido onde no diálogo e com os cuidados paliativos abrangentes se vá de encontro ao moribundo.
(continua)
Segundo o “Centro de Cuidados de Qualidade” alemão, cada segunda pessoa deseja morrer em casa e uma em cada três pessoas no Hospício; na realidade morrem mais de 70% dos alemães no hospital. Este é um dado que nos deveria levar a olhar de maneira preventiva para a viagem mais longa. Neste sentido e atendendo às possibilidades das técnicas modernas, seria bom que cada pessoa pensasse também na morte e fizesse um testamento vital sobre a fase terminal em que determine se quer ou não medidas de prolongamento de vida. O mesmo se diga em relação à doação de órgãos.
A vida é indisponível e é missão do Homem proteger a vida que Deus afirma connosco. A morte digna será aquela que acontece no acolhimento, no consolo e no apoio. Penso, como dizia, que nos segredos da existência só Deus e a própria consciência! Importante é a reflexão e a consequente decisão autónoma da própria consciência. O cristianismo acentua a privacidade da decisão e do encontro, defende o mistério escondido porque só assim se mantem a autonomia do indivíduo.
António Justo
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