A “nossa Casa comum” sente-se ferida, adverte Francisco I
Por António
Justo
Na sua encíclica verde, o Papa denuncia a destruição do ambiente, a
embriaguez do consumismo, a degradação ambiental e cultural, e a submissão da
política à economia.
A encíclica
Laudato Si (Louvado seja) do Papa Francisco, dedicada à ecologia e ao ambiente,
põe em primeiro plano a protecção, conservação e recuperação do ambiente
natural e ecológico da “nossa irmã e mãe terra”, no seguimento de S. Francisco
de Assis, Padroeiro dos ecologistas. Por isso o Papa inicia a encíclica com as
palavras de S. Francisco “Louvado seja” no seu “Cântico das Criaturas” que
compôs em 1225 (Texto em: http://antonio-justo.eu/?p=3183).
O pontífice
constata que o planeta “está a ser destruído" e estabelece uma "relação
íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta". Dirige-se “a cada pessoa que habita o
planeta” e não só aos católicos e às pessoas de boa vontade; descreve a
natureza como “a nossa casa comum” apelando para a necessidade de “uma
conversão ecológica global”.
Alerta para o facto de a terra parecer transformar-se num “imenso aterro
sanitário” que reage com catástrofes de maremotos, furacões, desertificação de algumas regiões e
inundação de outras. Apelida o planeta de “terra irmã e mãe” e atesta: “Nunca
tratamos a nossa casa comum tão mal e ferido como nos últimos dois séculos… o
ritmo do consumo, do desperdício e a mudança do ambiente superou a capacidade do planeta de
tal modo que o actual estilo de vida só pode conduzir à catástrofe”.
O domínio absoluto da finança sobre a política
A política
não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao
paradigma eficientista da tecnocracia. “Qual é o lugar da política? É
verdade que, hoje, alguns sectores económicos exercem mais poder do que os
próprios Estados. Falta a consciência duma origem comum, duma recíproca
pertença e dum futuro partilhado por todos”.
“A subjugação da política à tecnologia e às finanças torna-se visível na
falta de sucesso da cimeira mundial…”. “A salvação dos bancos a todo o
custo, fazendo pagar o preço à população, sem a firme decisão de rever e
reformar o sistema inteiro, reafirma um domínio absoluto da finança que não tem
futuro e só poderá gerar novas crises depois duma longa, custosa e aparente
cura”.
Crescimento à custa dos pobres
O rápido crescimento dos países ricos acontece à custa dos pobres: “sabemos
que o comportamento injustificável daqueles que consomem e destroem, cada vez
mais, enquanto outros não conseguem sequer viver adequadamente a sua dignidade
humana”. Uma “verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para
ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”. «Tanto a experiência comum
da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos
mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais
pobres»
Propõe que se diminua o crescimento: “Por isso, chegou a hora de aceitar um certo decréscimo
do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa
crescer de forma saudável noutras partes”.
A liberdade de consumo ilude a falta de uma liberdade
mais profunda
Apela para a reflexão da própria liberdade que não se esgota na liberdade
de consumir como o sistema faz crer “quando na realidade apenas possui a
liberdade a minoria que detém o poder económico e financeiro”. “A velocidade da mudança … contrasta com
a lentidão natural da evolução biológica.”
Critica a privatização da água “recurso escasso” que não
se deve comercializar porque tal como “o clima é um bem comum, um bem de todos e para todos.”
Também questiona o direito de empresas ricas poderem comprar direitos de
poluir a atmosfera afirmando que “a estratégia de compra-venda de «créditos
de emissão» pode levar a uma nova forma de especulação”.
“Os mass-media e o mundo digital quando se tornam omnipresentes, não
favorecem o desenvolvimento duma capacidade de viver com sabedoria, pensar em
profundidade, amar com generosidade.”
Património
humano e cultural ameaçado
O globalismo económico liberal, em nome de
uma supraestrutura (um governo do mundo, interesses económicos supranacionais,
EU, USA, etc), impõe-se de cima para baixo, centralizando tudo: avassala o
regionalismo e desrespeitando as identidades culturais e democráticas dos
países, organicamente elaboradas ao longo de séculos. “A par do património
natural, encontra-se igualmente ameaçado um património histórico, artístico e
cultural”. Recorda também que existe uma “ecologia do Homem” como
dizia Bento XVI que «também o homem possui uma natureza, que deve respeitar
e não pode manipular como lhe apetece“.
O preço do crescimento é pago com a saúde
e com o roubo à dignidade dos povos: „O homem não se cria a si mesmo. Ele é
espírito e vontade, mas é também natureza”, devendo tornar o seu “estilo de
vida conciliável com a defesa integral do ambiente".
Ecologia e
Cristianismo
A crise ecológica apela à “conversão ecológica”. “A
espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma capacidade de
se alegrar com pouco”. Cita
João Paulo II que diz: «Deus deu a terra a todo o género humano, para que
ela sustente todos os seus membros, sem excluir nem privilegiar ninguém». E
continua: “Na tradição judaico-cristã dizer «criação» é mais do que dizer
natureza, porque tem a ver com um projecto do amor de Deus, onde cada criatura
tem um valor e um significado.” “Toda a natureza, além de manifestar Deus, é
lugar da sua presença”. «Sentir cada criatura que canta o hino da sua
existência é viver jubilosamente no amor de Deus e na esperança» …” “Quando o
coração está verdadeiramente aberto a uma comunhão universal, nada e ninguém
fica excluído desta fraternidade”…
Em Jesus Cristo encontra-se resumida toda
a realidade espiritual e material: ”o destino da criação inteira passa pelo
mistério de Cristo, que nela está presente desde a origem…
“O antropocentrismo moderno acabou,
paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser
humano «já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente.”
” …A finança sufoca a economia real”...
“O trabalho é
uma necessidade, faz
parte do sentido da vida nesta terra, é caminho de maturação, desenvolvimento
humano e realização pessoal… Neste sentido, ajudar os pobres com o dinheiro
deve ser sempre um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro
objectivo deveria ser sempre consentir-promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial”.
Inicialmente os
monges refugiavam-se do mundo para viverem em meditação e oração; São Bento de
Núrsia, imbuído do espírito cristão, promoveu a união da oração, estudo e
trabalho manual, dignificando-o na fórmula «Ora et labora ». Francisco I:
“Esta introdução do trabalho manual impregnada de sentido espiritual revelou-se
revolucionária”.
“A criação
encontra a sua maior elevação na Eucaristia. No Pão Eucarístico, «a criação
propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o
próprio Criador».
A relação entre
todas as criaturas verifica-se na Trindade, que é a matriz de toda a realidade.
Penso que os teólogos do futuro, os místicos e os cientistas da física quântica
encontrarão na fórmula da Trindade a fórmula do mundo e a verdadeira fórmula de
toda a realidade.
O papa adianta:
“Para os cristãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária, leva a
pensar que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente
trinitária”…: “O Pai é a fonte última de tudo, fundamento amoroso e
comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que O reflecte e por Quem tudo foi
criado, uniu-Se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito,
vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo,
animando e suscitando novos caminhos. O mundo foi criado pelas três Pessoas
como um único princípio divino, mas cada uma delas realiza esta obra comum
segundo a própria identidade pessoal. Por isso, «quando, admirados,
contemplamos o universo na sua grandeza e beleza, devemos louvar a inteira
Trindade».
A encíclica do Papa foi recebida com grande entusiasmo na Alemanha enquanto
nos USA se levantaram vozes críticas, certamente os que beneficiam com as
injustiças do regime económico. O Papa, porém, tem de falar deste tema e
criticar o sistema, (embora isto não agrade a muitos) porque o problema
ecológico atinge as pessoas e as regiões mais vulneráveis e consequentemente a
fome e a emigração em massas.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
In “Pegadas do Tempo” www.antonio-justo.eu
2 comentários:
ENCÍCLICA
Nas encíclicas, os papas anunciam aos bispos e aos fiéis orientações de pensamento em determinados temas sociais e religiosos.
Muito bom.
Esta encíclica mostra o excelente preparo no enfretamento de uma das mazelas que atinge a todos, o ataque sistematico com fins meramente mercantilistas à natureza. Mostra uma profunda visão do Papa Francisco e mesmo sua coragem ao denunciar o que muitos preferem por conveniência empurrar para debaixo do tapete.
Não é a toa que a GRB - Grande Religião Brasileira , conforme recentemente fiquei sabendo , planejada a mais de 4.800 (quatro mil e oitoscentos anos ) atrás, quando Portugal ainda não existia como tal ( mais já assumira sua futura missão) tem seus cultos fortemente ligados a natureza, tem nas florestas, praias , montanhas , cachoeiras, lagos , campos, seus pontos de força religiosos. E na integração do homem com sua própria natureza uma das razões de ser, na evolução por meio do Sagrado Setenário (simbolismo antiquissimo e atualissimo aos Sete Sentidos da Vida).
Congratulo o Papa Francisco,
Vilson
in Diálogos Lusófonos, 22.06.2015
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