sábado, 10 de março de 2018

CHAMADOS A SER BONS SEM TERMOS DE SER OS MELHORES



Amar e ser amado entre egoísmo e altruísmo

Por António Justo
Se fores capaz de transmitir a alguém o sentimento de ser amado, de ser considerado e ser aceite, ele acreditará em si mesmo e a sua autoconfiança fará milagres. 

O eu faz parte do nós e o nós expressa o encontro com o tu que leva ao reconhecimento do eu como relação em torno do amor.
O egoísmo está presente em todo o ser humano; faz parte da energia que conduz à identificação e à diversidade. Egoísmo e altruísmo são atitudes que se requerem em certo equilíbrio.

Na nossa vida do dia-a-dia verificamos que amar alguém, gostar de uma coisa ou de um ideal implica entrega e que fazer algo ou dedicar-se a alguém, desinteressadamente, traz consigo a consciência de que o serviço prestado, reverte também em benefício de si mesmo sem ter sido pretendido. A alegria, que se proporciona a outrem, recebe-se de volta, na ressonância de uma satisfação comum. Isto implica altruísmo, mas sem auto-negação.

A necessidade de identificação, de reconhecimento e o grau de narcisismo próprio levam-nos a navegar entre amor próprio, auto-negação e amor autêntico a si mesmo.

A consideração pelos outros (altruísmo) é saudável se não se realiza à custa do próprio bem-estar. Sofrer ou tortura-se para que alguém se sinta feliz, a ponto de desconsiderar as próprias necessidades e de não considerar os próprios limites, leva uma pessoa a não se dar conta de si nem dos próprios sinais psíquicos nem físicos que, não tomados a sério, acabam em doenças. A natureza vive do esforço individual e comum, no respeito pelas necessidades de cada um. Sem entrega nem esforço não há transformação nem desenvolvimento. A vida define-se como relação aberta na procura de autonomia individual. Geralmente a energia mais acentuada é o egoísmo.

Dá-se desrespeito e autoexploração quando se exagera no altruísmo por razões de perfeccionismo ou excesso de ênfase no dar resposta ao que outros esperam de nós. Muitos tornam-se vítimas das espectativas dos outros e aquela energia positiva despendida, que deveria provocar satisfação, torna-se em incómodo por ter sido tirada à custa da própria substância e não do que transbordava dela.

O oposto destas atitudes e comportamentos (egoísmo exacerbado) acontece num outro tipo de pessoas que estão tão fascinadas de si mesmas (narcisismo) que só veem o mundo e os outros na própria perspectiva, crivando a realidade pelos próprios interesses; o narcisista ama a imagem de si mesmo a ponto de viver enamorado do seu ego. A falta de reflexão e a inexistente sintonia/compaixão com o outro leva o/a narcisista a não notar as necessidades do outro e a viver num mundo infantil, no ego de príncipes encantados.

Auto-obsessão no amor próprio
 
Para se poder avaliar do grau doentio do amor próprio (grau de narcisismo) há que observar critérios patológicos como egocentrismo, sentimento de superioridade, auto-obsessão, falta de empatia, forte susceptibilidade (expressa no conto “A Princesa e a Ervilha), desvalorização e exploração de outros

Por trás do fanatismo também se encontra sempre narcisismo e um sentimento de inferioridade a querer ser compensado. Nele o ego é tão embalonado que sobe sem reconhecer o próximo (ou usa-o como pretexto ao serviço da sua ilusão); geralmente vive centrado na mente e só se identifica com algo longínquo que o ultrapassa, embora reprogramado no próprio ego. Orienta-se por slogans que ele próprio escolheu, conferindo-se assim um sentimento de soberania e de poder.

A sociedade ocidental é cada vez mais narcisista. O narcisismo é um amor próprio aparente; na realidade está preso a sensações de inferioridade e falta de amor próprio equilibrado.

Todo o narcisismo é egoísta, mas nem todo o egoísta é um narcisista. O ego (amor próprio doentio) manifesta-se sob três tendências: possuir, dominar e/ou querer ter valor (ser importante). Se uma destas três características tiver um valor acentuado então poder-se-ia falar de egoísmo sublinhado.

“Nunca me ligaram” – A falta de autoconfiança – Fuga a si mesmo

A tendência egoísta, se demasiadamente acentuada, é sintoma de carência afectiva e falta de empatia; provem de um buraco na personalidade, que poderá vir da falta de apreciação na infância (a experiência inconsciente do “nunca me ligaram” ou de uma infância do “laissez faire” onde tudo lhe foi removido do caminho; sem necessidade de enfrentar obstáculos não teve ocasião de se situar, nem de criar raízes estáveis de relação. Então fica pela vida fora uma falta de autoconsciência que se compensa e sacia na realização automatista de um programa desastroso outrora aprendido e internalizado. 

Esta programação inconsciente provém de um sentimento internalizado do " Eu não sou Ok”, "Eu não tenho valor", "não sou bem-vindo", "Não sou suficiente”, etc. Tanta criança arma teatro e até dança em torno dos pais e dos educadores, tal como o gato ao encostar-se às pernas do dono, mas sem conseguir obter a atenção e dedicação devidas porque o adulto, no momento, se encontra fechado nele, alheado no seu mundo de pensamentos, longe da situação; encontra-se a viver um outro filme, num outro mundo que não é o seu, nem o da criança…

Esta amarga experiência infantil, somada a muitas outras, cria um buraco na alma daquela personalidade que passa a ter a necessidade de se destacar perante os outros – tem a necessidade de ser em tudo super, para poder sentir-se aceite e amada; nessa necessidade, mendiga agora a atenção que não teve e, em consequência disso, é incapaz de se definir por si mesma, de descansar em si mesma e de fazer as pazes também com os próprios defeitos. 

Foi programada por alguém tipo árvore frondosa que não deixa vingar nada debaixo dela nem a seu lado, (talvez por alguém com trastorno limite de personalidade – narcisista-borderline), que faz da criança uma escrava ao serviço da sua vaidade. Conheci tais pessoas que só viam os outros em função delas e isto chegava ao extremo de abusar da criança que quando chamada, sistematicamente, tinha de deixar tudo imediatamente e correr, sem ter direito ao tempo dela, sem um momento de pausa para se dar conta do próprio existir e das próprias necessidades (nela passou a existir as necessidades dos outros): o pai/mãe chamou, sem respeito pelo que a criança estava a fazer, e a criança ficou automaticamente comprometida com a vontade alheia; aprendeu a responder às necessidades do outro sem ter em conta a própria necessidade, passando a ser uma estrutura  interrompida; a criança não teve tempo para construir a autoconfiança que vem da capacidade de dar resposta a si mesma e aos outros num ambiente de amor,  consideração e aceitação. Agora, como adulta continua a responder à necessidade de ser perfeita ou de parecer perfeita. 

Como vivemos numa sociedade de apelo ao narcisismo, a sua tendência para a auto-optimização, de ser cada vez mais bonita, melhor e de subir mais alto, leva-a, ainda mais, a viver fora dela. A consequência pode ser o desenvolvimento de uma personalidade com uma atitude desafiadora e intolerante para consigo e para com os outros (ou uma pessoa sempre a correr atrás de gurus narcisistas porque a sabedoria interior foi perturbada). 

Muitas vezes, pessoas estruturadas desta maneira são condicionadas a procurar compensar o buraco psíquico com o perfeccionismo ou com um sentimento insaciável da necessidade de produzir sempre mais e melhor; nunca se sentem satisfeitas com o que fazem porque uma força internalizada lhes diz que, para serem boas, têm de ser melhores e produzir mais para serem aceites pelos outros!  Sentem-se sempre incompletas; e como o stress não resolve problemas acumulam ainda outras inconveniências.

Amor próprio equilibrado entre egoísmo e altruísmo 

Nem mais nem menos: “Ama o próximo como a ti mesmo”, adverte o Evangelho! O pressuposto para se amar verdadeiramente o próximo prevê primeiro o amor a si mesmo.
 Se nos observamos bem a nós e ao mundo, notaremos que tudo é relação (relacionamento parentesco). Sem um tu não há um eu e sem um eu não há um tu e só no reconhecimento recíproco se dá lugar ao nós. 

Nos polos equilibrados, do egoísmo (amor a si mesmo) e do altruísmo (amor ao próximo), gera-se a sintonia/compaixão (em termos religiosos, a caridade) sem tirar a responsabilidade ao outro nem a liberdade a si mesmo. O verdadeiro altruísta não se satisfaz com o resultado do seu bem-fazer porque sente a legítima satisfação da relação com o outro na gratidão e na alegria que dimana no todo.

O Homem não pode ser apenas um fim em si nem sequer um meio para a finalidade dos outros. Através do próximo chegamos à consciência do eu que é o encontro das relações. Em torno da palavra eu se forma o Homem e a humanidade na consciência de serem identidade em processo e a caminho de uma meta que não é o colectivismo, mas a comunidade, à imagem da fórmula trinitária onde o eu pessoal e o nós se reúnem e expressam em pessoa. 

Se no nosso interior há tempestade não é saudável compensar o desequilíbrio da alta ou baixa pressão em nós, mediante a abertura de um ventículo para o exterior, uma adição; esta pode substituir o sintoma por algum tempo, mas volta imprevistamente. Primeiro há que alcançar a bonomia, a bonança dentro de nós para que a nossa acção se torne benéfica ad intra e ad extra. Uma certa tensão é sempre necessária douto modo a vida tornar-se-ia num “buraco negro” …

O altruismo saudável não funciona para acalmar a má consciência nem tão-pouco para afugentar o medo. Quem exagera no altruísmo, para adquirir reconhecimento, facilmente cairá em depressão ou Burnout! 

A auto-realização implica um egoísmo sadio, um egoísmo sem egocentrismo. Também estamos chamados a promover o bem alheio, mas não à custa da própria felicidade. Uma pessoa contente transmite contentamento aos outros; uma pessoa infeliz anda envolvida pelo manto da escuridão e propaga o escuro nos outros.

Segundo investigações psicológicas 75% das pessoas agem devido a influências exteriores sem saberem, muitas vezes, o que é importante para si.

Há muitas pessoas com um padrão comportamental de tendência altruísta que chegam a colocar a defesa da vida do grupo acima da individual. e uma maneira de se tornar reconhecido e aceite, uma tendência natural a ajudar os outros.

Uma dedicação despreocupada ao próximo faz parte do desenvolvimento pessoal espiritual e psicológico…. Quando for capaz de descansar em mim mesmo, sem necessidade de andar sempre a arranjar a casa do meu eu ou do próximo e quando sentir o sol do carinho que em mim brilha independentemente dos defeitos que tenha, então o sol interior irradiará na minha atuação e na minha atitude para o exterior. 

Então compreenderei a satisfação do gato e do cão que – sem a necessidade de controlar ou de se controlar - despreocupadamente se rola no chão, de pernas para o ar, vivendo, de maneira aberta, a satisfação do momento sem qualquer medo nem receio.

Por vezes há pessoas que passam uma vida sacrificando-se para os outros. Esquecem que temos esta vida para também treinarmos e aprendermos aquela alegria e gozo que, sem adiamentos, antecipa a realização futura. Somos individuações na comunidade.

Neste sentido, a primeira tarefa será aprender a amar-se, criando assim o fundamento para se poder mudar. Doutro modo anda-se a dar aos outros a compensação do amor que nos foi negado e nos faltou. Uma vida, realizada na alegria do viver, proporciona a resposta dos outros no respeito, amor e sintonia; então não se é enganado nem se engana o próximo com amores nem dedicações esforçados. Surge então o calor do dar e receber da mesma energia divina (amor) que flui dentro e fora no nós. 

Deus criou-nos a nós tal como criou o sol e em nós colocou a sua energia que vem de dentro para fora, do interior para o exterior. A opção pela autonegação dedicando-se só aos outros é tão perigosa como a dedicação só a si mesmo porque ambos surgiriam, não da realização e da riqueza, mas da falta que conduz a uma abnegação desequilibrada. O sol divino tem de brilhar primeiramente em nós para nos abrir e através de nós brilhar e aquecer os outros.

Sou com o todo sem me perder nos outros, sou com o outro consciente de que ele e eu somos apenas parte do todo.

Uma maneira consciente de avaliar o amor no trato de si mesmo será o de se permitir tomar decisões que deem satisfação independentemente do que os outros dirão ou esperam. Quando a voz do interior não é sorvida pela voz de fora, então vive-se naturalmente, o Reino de Deus, como os “pássaros e os lírios do campo” aceitando os cumprimentos e as críticas dos outros como aqueles aceitam o sol e a chuva. Então o que faço dá alegria e contentamento porque faço-o simplesmente, sem sentimentos de obrigação ou de culpa muito embora num sentimento de sintonia/compaixão. Então a felicidade e a infelicidade dos outros não me ensombram porque o meu viver compreende amar os outros e deixá-los ser como são.

Tenho que pôr nos pratos da balança da minha vida, de um lado o amor, o respeito, o cuidado que tenho para comigo e no outro prato as necessidades dos outros.
Deixo entrar e sair de mim o ar dos sentimentos positivos e negativos sem os reter, do mesmo modo, como entra em mim o ar mais ou menos oxigenado que respiro. Aceito o dentro e o fora, o dia e a noite, a luz e a sombra, o sucesso e o fracasso sem o medo de me negar ou afirmar para ser aceite. Consideração e estima iluminam as minhas relações sem me deixar prender em pensamentos negativos, devaneios, dúvidas e medos. Não sou vítima de ninguém e na qualidade de consciência reflectida assumo a responsabilidade de ser, ser com os outros numa dinâmica de ser para mim e ser para os outros.

Reconhecer-se e aceitar-se

Para se chegar ao nível do “ama o próximo como a ti mesmo” há, em primeiro, que se reconhecer a si mesmo, como advertia a frase no frontispício do templo de Apolo em Delfos aos que nele entravam. Reconhece a ipseidade (“conhece-te a ti mesmo”) e nela os teus pontos fortes e fracos, as facilidades e dificuldades como fluxo e refluxo da mesma realidade. O segundo passo é “aceita-te como és” com os teus lados de luz e de sombra. E se me encontro numa altura em que me não posso aceitar, então aceito a não aceitação. O terceiro passo será: aceitar em si uma possibilidade de mudança, mas sem limite de tempo e sem pressão de auto-optimização.

Em paz de consciência

Muitas pessoas têm na sua consciência um juiz interior muito rigoroso sempre a apelar pata o dever: esse juiz malformado diz: “eu devo…, tenho que…” ou “a gente deve…, a gente tem que…” 

Muitas vezes, esta é a voz do “eu paterno” que continua escondida e a mandar em nós. Este juiz fala do alto da sua cátedra e por isso é preciso substituí-lo por um juiz Anjo, que não condena embora faça ver as coisas positivas e negativas com objectividade e que gosta de ti tal como és. 

Dos erros se aprende para a próxima vez. Deus ama-te como és, no antes, no agora e no depois; faz algo que te dê alegria, não te deixes subjugar apenas pelo programa do dia-a-dia, doutra maneira vive o programa em ti, sem que tu vivas porque só serves. 

Muitas vezes surge em nós uma sensação corporal ou um sentimento espiritual desagradável e não temos tempo para lhe dar atenção e compreender o que esse sentimento ou sensação nos quer dizer; muitas vezes esse mal-estar apenas nos quer dizer que excedemos os nossos limites. 

Sentimentos agradáveis são sinais de que nos encontramos em consonância com a situação do momento. Se o sentimento é torturante talvez se dê ao facto do sentimento puro se misturar com devaneios, conflito interno, a tentativa altiva de dominar uma sensação, etc..

Do sentimento de aceitar e ser aceite surge o contentamento de se encontrar com o dia ou com o próximo, venha ele como vier. Chega a boa intenção de procurar o bem em tudo e de se experimentar contentamento, independentemente da gratidão que se receba. Então a viva sorri para mim e eu sorrio para a vida na consciência de que a dor e a alegria servem o todo.

A realidade do eu-tu-nós encontra-se magistralmente delineada na fórmula Trinitária onde a Relação é de tal maneira viva e misteriosa que ganha expressão numa terceira pessoa. Neste sentido, a abertura e a entrega expressam a liberdade amorosa.

© António da Cunha Duarte Justo
Pedagogo e teólogo

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