A Igreja tem uma
Face feminina ainda escondida
Por António Justo
Nas sociedades islâmicas os
valores culturais sobrepõem-se aos direitos humanos individuais e o homem tem
um estatuto superior ao da mulher. Na sociedade ocidental embora haja igualdade
de dignidade e de direitos, na prática social há discriminação; também no catolicismo
não se aceitam mulheres no clero pelo facto de serem mulheres.
Na controvérsia sobre a
integração das mulheres no clero, o Papa Francisco pretende dar um passo qualitativo
no sentido de lhes possibilitar a sagração, mas sofre oposição por parte de
ultraconservadores na igreja e é até difamado por grupos políticos que fazem
campanhas contra ele por temerem a sua influência em vários campos
sociais.
O obstáculo maior à inclusão das
mulheres no clero tem sido o argumento da tradição. O mais importante, porém, a
registar para atenuar um tradicionalismo exagerado vem da mensagem libertadora
de Jesus e do facto de ter havido mulheres discípulas de Jesus, e suas provadas
funções na igreja primitiva. Só com o tempo foram impedidas de ocuparem funções
de direcção nas comunidades.
A matriz sociológica masculina antes
implantada pelo nomadismo e depois pela situação bélica dos povos de outrora
valorizavam o papel do homem de modo a conduzirem à marginalização sistemática das
mulheres (à segregação da feminilidade).
Seguindo o espírito da sociedade (Zeitgeist) também na Igreja a acção das
mulheres, como discípulas de Jesus e como orientadoras de comunidades, foi
deitada ao esquecimento para mais facilmente se poder justificar a violência do
poder da masculinidade (economia, política e religião dão-se as mãos). Chega
até a ser cultivada a desconstrução teológica da imagem de Madalena, a”
apóstola dos apóstolos”, de maneira a ser interpretada e adaptada à ordem
social e ao espírito de cada época segundo a norma masculina vigente.
Tanto a exclusão das mulheres do ministério sacerdotal como a determinação
do celibato obrigatório para todos os padres, têm como pano de fundo interesses
estratégicos do poder institucional masculino (também uma consequência lógica do
Constantinismo , mas de não menosprezar o contraponto da “feliz culpa” que tem
como consequência a globalização da cristandade!).
É cristãmente trágico
constatar-se nesta religião libertadora, como nela, ao longo da História, a
mulher e mulheres conscientes e fortes foram impedidas de afirmar a
feminilidade em funções de poder na Igreja petrina. A Igreja também tem uma
face exterior feminina, mas na controvérsia teológica esta tarda a ser
reconhecida. Pelos vistos apesar da razão, o poder é o último a ceder!
Maria de Magdala (a Madalena com
histórias populares virados para a lenda e para a sua desconstrução moral
através do resumo nela de outras Marias seguidoras de Jesus) esteve presente em
todos os momentos decisivos da vida de Jesus. O grupo das mulheres (discípulas)
mostrou-se, no seguimento e anúncio de Jesus, mais arrojado que o dos homens.
No episódio das irmãs Marta e Maria ( (João 11:1-45 ) Jesus louva Maria por
se querer instruir na missão de discípula e admoesta Marta por ainda se
encontrar demasiadamente presa ao papel caseiro atribuído à mulher. Maria (Madalena), mulher consciente e
forte, não se deixou limitar às funções caseiras para se preparar para o
apostolado ativo, seguindo Jesus, com a mesma atitude dos homens. Jesus
confirma Maria na sua vocação de apóstola dizendo: “Maria escolheu a melhor
parte e esta não lhe será tirada”. Os tradicionalistas que defendiam o papel de
Marta para a mulher na sociedade, conseguiram, contudo, que a tradição e a
força do hábito dos costumes dominassem sobre a mensagem evangélica de
libertação. O Édito de Constantino, ao reconhecer a oficialidade do
cristianismo, fez o resto.
Também Hipólito de Roma (170-236) testemunha que Madalena era a “apóstola
dos apóstolos” (João 20:17); dignidade esta que o Papa Francisco reconhece, na
sua qualidade de discípula de Jesus, mas a que falta o reconhecimento na
prática através da atribuição do inerente ministério sacerdotal também a
mulheres (De facto seria pobre uma Igreja de homens que só manifestasse
admiração e louvor pelas mulheres).
Grande é a multidão de mulheres
relevantes na História da Igreja (1). O espírito do tempo tinha uma percepção
androcêntrica da realidade que era vista na perspectiva dos homens e das suas
atividades. É natural que a nossa percepção seja sempre autobiográfica e
circunstancial pelo que, também os teólogos não escaparam à realidade ambiental
que os circundava e mais não fizeram que interpretar os escritos e a realidade
da igreja primitiva segundo a sua condicionada observação que levava a uma
interpretação dos factos considerada real.
O exegeta Bernhard Heininger refere que (2) “um quarto de todos os colaboradores de Paulo
nomeados no Novo Testamento são mulheres”. Na sua opinião, a prescrição do
silêncio na Primeira Carta aos Coríntios é uma interpolação pós-paulina e encontra-se
em contradição com outras afirmações de Paulo. Uma teologia
demasiadamente masculinizada apoiava-se em cartas pastorais de Paulo, que
segundo exegetas não proviriam dele. É interessante a observação de que Paulo,
na carta aos Coríntios, permitia o divórcio a mulheres no caso de os maridos
não estarem de acordo com o empenho das mulheres na comunidade.
A apóstola Febe, que presidia à comunidade doméstica de Cencreia
é referida por Paulo com o título de diácono.
Paulo trata-a como irmã e refere também que Áquila e Prisca eram muito activas
na comunidade de Corinto e Roma. Paulo
diz que conheceu o Messias através de Prisca. Também Lídia era a chefe de
um grupo de mulheres (Atos dos Apóstolos, 16) e também Tabita propagava a fé no
messias. No último capítulo da Carta aos Romanos, o apóstolo Paulo pede para
saudar o casal Andrónico e Júnias, que “estiveram comigo na prisão, são
apóstolos respeitados que confessaram Cristo antes de mim".
A respeito de Júnia, João Crisóstomo (344-407 d.C) escreveu: “Quão grande
deve ter sido a sabedoria desta mulher que foi achada digna do título de
Apóstola".
Em Roma, o acesso aos aposentos
das mulheres era proibido aos homens, por isso só as mulheres podiam ter sido anunciadoras
do Evangelho. A ciência bíblica tem de investigar mais para colocar o papel das
mulheres a uma nova luz no sentido de uma tradição mais esclarecedora e justa.
Urge dar o exemplo para continuar na vanguarda da História.
Há filmes feitos por homens, na
tradição da masculinidade, que reduzem Maria Madalena a uma companheira
afectiva de Jesus ou a uma sedutora, para assim corroborarem as comuns imagens
de mulher em função de uma sociedade de poder masculino adverso à feminilidade/espiritualidade.
Também é de compreender que muitos
teólogos ao longo da História seguissem os mesmos parâmetros de cariz masculina
porque, envolvidos no Zeitgeist e nas estruturas de poder, certamente, não se
encontravam suficientemente livres nem iluminados pela mensagem libertadora do
evangelho; a luz do Zeitgeist era mais forte; assim interpretavam as atividades
das discípulas de Jesus orientados pelo molde expresso pelos usos e costumes
das respectivas épocas, que reduzia a imagem da mulher a uma missão subsidiária
e a uma posição social de auxiliar.
Custava a uma sociedade
patriarcal compreender o facto de o testemunho da ressurreição ter sido feito
por mulheres. Como poderia Deus ter confiado tal missão a Madalena (3) e não a
Pedro? A inculturação da mensagem cristã é legítima, mas se se fica por aí
emperra-se o andar da História e limita-se a mensagem evangélica ao crivo de
tradições e correspondentes argumentos de caráter oportuno que provocam a
discriminação da mulher através do limite de funções. A figura de Teresa de
Ávila (1515) mostra-nos como uma mulher previa o desenvolvimento que hoje
estamos a tentar concretizar (4).
Também no sec. XVI (5) Maria Ward afirmava que a diferença entre mulher e homem não é
tanta como é feita. O que vale “não é a verdade do homem (veritas hominum) ou a
verdade das mulheres, mas sim a verdade do Senhor (veritas domini Jesus).
Quando falhamos, vem da falta de verdade e não de sermos mulheres... Espero em Deus que vejamos que as mulheres
farão muito no tempo que virá"(6). (Pelos vistos a voz de Deus tem
sido dificultada em ser ouvida no sentido das mulheres!).
Muitos movimentos feministas não
respondem à realidade da Mulher integral feita de feminilidade e masculinidade;
fixam-se apenas nas questões funcionais e de sexo, talvez, na sua luta, não
conscientes de que estão servindo o pensamento e o modelo patriarcal (parte da
luta pode ser vista como resposta, mas não como solução). Não chega ter em mira
apenas a igualdade de oportunidades de mulheres e homens, mas também os valores
ou princípios que têm determinado o modelo de sociedade vigente ao orientar-se
apenas pelo princípio/energia da masculinidade ignorando o princípio/energia
feminilidade que tem de ser também constitutivo da realidade social e individual
(independentemente do ser existencial homem ou mulher), se é que queremos uma
sociedade mais pacífica e mais justa.
Em todas as sociedades e ideários dominantes no mundo ainda se nota um medo
inibidor perante as mulheres devido, certamente, a um temor cultural
transmitido e adquirido; este temor, aliado a uma certa fraqueza natural passou
ao inconsciente social criando no homem a ideia imperceptivel de que se não
conseguir “domesticar” a mulher, sentir-se-á inseguro e perdido; como resposta
a esse medo o homem e com ele a sociedade – construída sobre as bases do
princípio da masculinidade - têm
construído estratégias culturais de opressão que, no fundo, têm como objetivo defender o
homem da concorrência do outro homem ( este medo dela encontra-se
especialmente expresso no islão que subjuga a mulher de maneira proporcional ao
medo e ao instinto de domínio). Uma coisa é certa, apesar da agressividade da
masculinidade hodierna (uma crise de machismo) delineia-se já no horizonte a
descoberta do princípio da feminilidade como solução para o alvorar de uma nova
sociedade. Delas, as mulheres, como expressão mais manifesta do princípio da
feminilidade, terão um grande papel numa revolução do islão e numa renovação fundamental
da sociedade ocidental, a começar pela Igreja. As mulheres que se encontram na
cena política ainda não podem funcionar como exemplo integral porque se
encontram empenhadas na continuação da sociedade de matriz baseada no princípio
da masculinidade. Como se dedicam apenas em aplicar as modalidades ditadas melo
modelo político vigente apenas preparam os caminhos para a continuação de uma
concorrência mais equilibrada entre mulheres e homens; de resto, nesta situação
o princípio da feminilidade ainda é mais menorizado porque em vez de se partir
do aspecto orgânico e integral continua-se a servir apenas a funcionalidade (a
parte exterior, não se passando da fenomenologia adiante)!
Já foi dito muito sobre a
subjugação da mulher, mas ainda não é visto nem reconhecido por todos. O que
mais me legitima a tratar do tema é a feminilidade que fala também em mim e o
desejo de fomentar a concretização do reconhecimento da masculinidade e da
feminilidade tal como se encontra realizada no protótipo Jesus Cristo a nível
humano e cósmico.
Uma igreja universal inclui necessariamente nela o princípio da masculinidade
e da feminilidade, sendo por isso uma igreja (petrina e joanina) dos homens e
das mulheres, e, como tal, não poderá deixar-se levar pela acentuaç1bo, no seu
agir por meros critérios de inculturação; de facto quer os diversos quer os
mesmos dons, se encontrarem simultaneamente quer na expressão masculina quer
feminina. O todo é mais que
a parte. Precisamos de todos, de homens e mulheres de ortodoxias e de
ortopraxias num mundo mais aberto e ainda a fazer-se.
No fim de ter escrito este artigo
e ao relê-lo notei como sou também dominado pela matriz da masculinidade. De
facto, notaram os eleitores a maneira como procurei convencer, convencer à
maneira masculina nomeando autoridades como se não chegasse a fé, a razão e o entusiasmo
por Jesus Cristo e a sua boa nova de libertação como argumento para se verem as
coisas (isto é naturalmente ainda tolerável num período de transição da pura
masculinidade para uma equilibrada sociedade em que quer o princípio da
feminilidade e o da masculinidade se harmonizem!).
Ontem 15 de Agosto comemorou-se a
Assunção de Nossa Senhora; certamente uma data e uma comemoração apontar para
uma realidade importante. Mas quando começaremos nós a olhar também um pouco
mais para a Terra? Porque não se passa, na Igreja, a criar a possibilidade de
mulheres também fazerem parte do clero?
Por vezes chega-se a ter a impressão que tanto louvor a Nossa Senhora e a
santas se pode tornar num perigo de um deslouvor (impedir honras e cargos) das
mulheres na Terra, impedindo-as de ascender ao sacerdócio jerárquico. A
feminilidade e a masculinidade não se reduzem ao sexo; as duas energias
pertencem juntas! Seria oportuno olhar para o Céu sem esquecer a Terra; doutra
maneira continuaremos a praticar a visão antiga do Olimpo lá em cima para
alguns e o Sheol para os enlameados terráqueos.
Vai sendo tempo de se abandonar
uma praxis baseada na ambivalência de papéis! Padres e pessoas com cargos de
responsabilidade nas bases começarem a trabalhar pastoralmente mais em conjunto
com freiras, mulheres exemplares num espírito colegial de repartição da missão
de evangelizar sem medo de escandalizar pois só assim se consegue, numa
comunhão sacerdotal participada no Espírito Santo, progredir no anúncio e
prática do Evangelho que é promessa de bem para toda a humanidade. Talvez assim
se fossem destruindo barreiras.
De facto, vivemos num mundo onde, se não
fosse o erro, não se avançaria! Por isso, numa nova mentalidade a criar-se não
há culpas nem censuras a distribuir a este ou àquele. A missão é grande: temos
mais que indicações suficientes para continuarmos a tradição de errar para
podermos avançar; importante é criar espaço em cada um para que a mensagem e o
chamamento possam ser ouvido. Cristo não nos pediu para andarmos por caminhos
seguros, ele disse que era o caminho e, para o seguir, é necessário ter a
coragem de se andar sobre as águas sem o medo de sucumbir!
É trágico, que a Igreja que deu tanto à humanidade e tem tanto para dar, perante tanto medo de errar, perca muitas vezes o comboio da História, ficando demasiado tempo nos apeadeiros de uma moralidade sexual descontextuada; no caso é fatídico para a mulher, no sentido do desenvolvimento da sociedade e da eclésia santa. Os factores “sexo” e “medo” foram sempre instrumentos privilegiados usados pelas potestades na intensão de manter os pretendidos súbditos de maneira sustentável.
Olhemos para as mensagens religiosas e para os mitos, eles já nos disseram tudo, o problema é que a sua mensagem ainda não chegou a todo o lado!
No sentido eclesial o poder não pode
continuar a ser unilateralmente ligado ao homem e ainda por cima de forma
sacralizada (Clero). Como mensagem evangélica e eclesial estamos à frente do
mundo, não há nada que justifique andar atrás dele! Há que criar uma nova
pedagogia e fomentar as capacidades da feminilidade/espiritualidade e o
desenvolvimento da personalidade ainda antes da transmissão de saberes. Urge
uma nova educação baseada nos princípios da feminilidade e da masculinidade e
não uma focalização nas suas exterioridades no sexo masculino e sexo feminino.
Mulheres ligadas à Igreja, devem preparar-se
e apostar mais no estudo da filosofia, da teologia e da administração
institucional. As universidades
católicas, instituições eclesiais e até cargos nos colégios episcopais esperam
por vós; as freiras deveriam prestar aqui uma especial atenção, doutro modo uma
masculinidade desequilibrada continuará a adiar o futuro com o argumento que a
mulher não está preparada; a aurora de novos tempos já se faz sentir:
preparai-vos para assumir funções sacerdotais.
(Este artigo faz parte de um
livro sobre masculinidade e feminilidade que há anos espera por ser dado a
lume)
© António
da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
In “Pegadas do Tempo”, https://antonio-justo.eu/?p=5592
Notas no sitio de Internet
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