Festival da
Eurovisão Cavalo troiano ou Chance de Aproximação
Emissor turco
boicota o Festival da Canção
António Justo
Conchita Wurst (Thomas Neuwirth),
vencedor do Festival da Canção (Eurovision Song Contest) divide públicos e
culturas em trincheiras intransponíveis. O emissor estatal turco não emitiu o
festival por questões de moral e de decência e a Rússia constata a decadência
ocidental.
Enquanto no Ocidente se vive num
clima de guerra cultural de progressistas contra conservadores, nos campos de
interculturas e civilizações vive-se na luta do modernismo ocidental contra a
ética de rigor cristão e contra o tradicionalismo russo e islâmico. Esta guerra
passa desapercebida a uma maioria perdida em lutas de perspectivas de moda
(Zeitgeist). É uma realidade incontestável que os progressistas, como em
Copenhaga, se encontram a favor do vento e ganham, uma a uma, as batalhas culturais
na Europa. Isto exaspera as pessoas mais conservadoras.
A Rússia e a República de
Bielorrússia, depois da vitória de Conchita “Salsicha”, pensam em organizar um
Festival da Cancão próprio. O chefe do partido comunista russo disse que depois
do resultado de Copenhaga “a paciência encontra-se esgotada”; o presidente de
Bielorrússia diz que o resultado do Festival está simbolicamente para “ o
colapso completo dos valores morais na EU”; a Turquia não transmite o festival
mas já se tinha afastado em 2012. O amigo de Putin, Vladimir Jakunin, chefe das
ferrovias russas, uma das personalidades mais influentes na Rússia, vê em
Conchita a expressão da arrogância ocidental porque quem não aplaude “a mulher
barbuda” é colocado no rol dos não-democratas e acrescenta “o etno-fascismo
vulgar tornou-se novamente parte da nossa vida”. Defende a lei russa contra a
homossexualidade afirmando que 4% das crianças russas com um gene defeituoso
nascem homossexuais e que isto foi provado pela medicina. Só acredita na igualdade
de casamento entre heterossexuais e homossexuais “quando vir um homem grávido”.
É pena, tanto para um lado como
para o outro, até porque temos muito a aprender uns dos outros! Este foi um
evento que seria inocente se não nos encontrássemos numa luta cultural entre
uma visão mais secular progressista e uma visão mais conservadora da sociedade,
numa luta franca pela apropriação da moral.
Quanto a mim, gostei da música e
da encenação. O Ruído
em torno da Couraça de Conchita Salsicha encobriu a Música do festival. Não
gostei da utilização da ribalta pública para, com aparentes argumentos de
tolerância, se encenar, à maneira do Corão, uma ideologia em que o próprio
credo se apresenta como sendo obrigação e a solução universal. Triste é o facto
de as duas partes (tradicionalistas e progressistas) falarem com o rei na
barriga, na conquista de uma grande parte de público inocente que bebe a
libertinagem intencional modernista tal como medievais bebiam a mortificação,
como meio de alcançar a felicidade.
Na verdade, os contrastes que
Conchita sintetiza com a sua apresentação - o encontro da feminidade e da
masculinidade - seria realmente ideal, se por detrás disso estivesse a defesa
da integração das potencialidades da feminilidade e da masculinidade, tanto no
homem como na mulher e se o episódio não fosse movido por um movimento
agressivo masculino, demasiado fixo no sexo, e na reivindicação do direito da
modernidade a ter sempre razão contra a tradição.
Conchita Salsicha (uma alusão ao
sexo da mulher e do homem) é um homem em corpo de mulher que, ao apresentar o
seu rosto com barba, sobrevaloriza a masculinidade. Querem-no como protótipo do
Homem: um Jesus de aspecto feminino mas de rosto barbudo.
Na sua pose messiânica depois de
ter ganhado o festival, Conchita disse: “este é um sinal importante para o
mundo…“ „Esta tarde é dedicada a todos os que acreditam no futuro de paz e
liberdade. Nós somos uma unidade e não há quem nos pare”. Estas palavras
constituiriam programa se não focalizassem a salvação no sexo, se fossem
bem-intencionadas, para poderem ser tomadas a sério por tradicionalistas e
progressistas e não como uma declaração de guerra. O resultado da eleição
testemunha a tolerância dos eleitores que vêem no evento um apelo à tolerância
e a uma liberdade de expressão que desafia representações ideais e morais.
Não é a primeira vez que um
trasvesti ganha o 1° lugar do Festival da Cancão. O marketing ideológico em
torno do sexo e o contexto político em torno da Ucrânia com os posicionamentos
russo e da Nato deram mais relevo ao evento. O problema da Europa, não parece
ser de desemprego ou de carência, mas de luta de ideias e de poder…
O festival da Eurovisão deixou de
ser um evento cultural em que se apresentava a riqueza das diferenças culturais
dos países participantes e que reunia em torno da TV toda a família, para se
tornar num evento de caracter mais igualitário híbrido promotor de políticas e
de tecnologias.
O vice-primeiro-ministro russo
Dmitry Rogozin declarou que "a Eurovisão mostrou aos europeus a sua
perspetiva da Europa - uma mulher de barba". Sem querer questionar a
propensão decadente da Europa, seria também de perguntar qual seria a
caricatura que a arte oriental teria a apresentar em relação ao futuro da
Rússia e da UE!
Reduzir a atitude russa a
homofobia seria colocar-se no outro extremo; no da homofilia também ele sem
lugar para a diferença e para a liberdade da direcção a tomar na
autodeterminação. O autoritarismo russo com a correspondente propaganda é tão
obtuso como o autoritarismo da opinião ocidental com a sua propaganda
categórica do politicamente correcto. O facto de a Rússia ter proibido por lei,
em Junho de 2013, a promoção de hábitos sexuais "não tradicionais"
entre menores de 18 anos, não justifica a propaganda ocidental agressiva contra
a Rússia; esta não proibiu a homossexualidade em geral. Se a Rússia e a
sociedade islâmica abusam no seu purismo sexual, o Ocidente secular abusa com a
sua libertinagem em certas medidas tomadas em relação à cultura, à educação
sexual nas creches e nas escolas e, não menos, com a sua intenção de educar o
povo numa direcção secularista. A sociedade parece só apostar num
desenvolvimento de caracter polar. Quem pretender ser anti-nada fica mal na
massa dos anti-outro. Urge que a Europa saia da luta cultural polarizadora para
construir uma consciência integral.
Já não temos os mouros ao pé da
porta que justifiquem cruzadas contra outras opiniões ou culturas. A discussão
e variedade de opiniões são salutares; só na aceitação da diversidade se
exercita a tolerância. “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem
mulher; pois todos são um em Cristo Jesus (Gálatas 3:27-28). A força
emancipadora deve vir de dentro numa discussão respeitosa dos pontos de vista e
da integridade humana. Fora de questão deve estar a defesa da dignidade humana
e da integridade e liberdade da pessoa. É discutível se a participação
austríaca ganhou devido à cancão ou se venceu Conchita pelo facto de “o
diferente” ser politicamente correcto. “Quem com ferros mata com ferros morre”!
A promiscuidade de política e religião não se revela salutar, mas não é melhor
a promiscuidade de arte e política. Urge criar laços de responsabilidade entre
as facções e recuperar a dignidade humana, sem ter de abandalhar a sociedade
nem de reprimir a individualidade de cada um. A tolerância é uma estrada de
dois sentidos tanto de direita como de esquerda. Nem é boa a festa desenfreada
nem um tango demasiado travado!
António da Cunha
Duarte Justo
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