A Civilização mais compatível com o Globalismo
Por António
Justo
Ainda a respeito do texto sobre (“Presidente chinês faz negócio em Portugal”), um leitor
questionou o facto de eu ter aludido aos
direitos humanos para a China (país dos cem nomes) porque é um povo com uma
cultura totalmente diferente, e que encara a vida numa perspectiva pragmática em
que o ideal cristão da dignidade da pessoa só estorvaria.
De facto, como se nota já na especificidade
da língua mandarim, depreende-se dela uma outra estrutura mental que se
expressa em outras maneiras de pensar e numa mundivisão totalmente diferente da
europeia. Na impressão que se tem com chineses, à primeira vista, nota-se que são
pessoas que têm uma maneira mais objectiva e utilitária na maneira de ver, de
viver e de se relacionar.
A cultura chinesa é polivalente, e manifesta um génio sincrético que
consegue colocar em funcionamento utilitário tradição, deuses, comunismo e
capitalismo no sentido de tudo se mover ao serviço dos próprios desejos: daqui se
pode depreenderá também uma inclinação especial para o negócio.
É uma civilização que desde o século passado
se encontra em mudança total e como tal torna-se imprevisível o futuro
desenvolvimento de uma civilização tão antiga e tão rica. No contexto de civilizações e sob a pressão de um globalismo nivelador,
a civilização ocidental deveria estar consciente do que tem de específico a
guardar para a humanidade, isto é, a dignidade da pessoa humana, mas sem
transformar esta consciência adquirida para legitimar ou fomentar guerras, como
tem feito sob o argumento da defesa de valores/direitos humanos. Cada povo,
cada cultura, cada civilização tem uma coerência interna a ser respeitada
mutuamente.
Num mundo cada vez mais ditado pelo
negócio e numa competição, que não deveria perder de vista a complementaridade
e a inclusão, seria um grande empobrecimento para a humanidade se as relações
de futuro só fossem determinadas por um utilitarismo chinês que valorize mais o
negócio e a instituição do que o indivíduo, tal como se dá na cultura árabe, no
neocapitalismo e no comunismo. Daí também a necessidade da China se abrir ao
humanismo cristão e do Ocidente redescobrir em alguns de seus princípios
doutrinais tradicionais, uma imanência também característica dos chineses.
Dos chineses podemos aprender a sua
relação familiar como base das relações sociais em harmonia com a natureza. A
sua relação especial na expressão família, vida e morte, foi certamente
transmitida através do culto aos antepassados em sintonia com a natureza e com
o universo. Uma mundivisão em que deuses, pessoas vivas e mortas coexistam em
relação, sustem um caracter que lhe dá sustentabilidade. Esta mundivisão
faz-me lembrar (embora de forma mais abstrata mas também mística) a realidade
do mistério da trindade no Cristianismo que possibilita a unidade na
diversidade mas que, infelizmente, é pouco comentada na sociedade ocidental.
A sociedade ocidental, tal como a sociedade tradicional chinesa, encontra-se
em perigo, devido ao capitalismo liberal do deus Mamon (dinheiro, eficiência
material e lucro) que tudo nivela para tornar a pessoa, isto é, transformar o
indivíduo em mero cliente para que, deste modo, este se torne mundialmente,
massa maleável e compatível e então tornar possível uma plutocracia económica e
ideológica de um governo mundial que através de ONGs especiais supera países,
regiões, regiões etc.
O confucionismo conseguiu guardar o legado
do passado chinês e presenciá-lo de forma orgânica. Sistematizou toda a vida
chinesa numa espécie de organigrama que possibilitou uma filosofia de vida
social que deu forma e consistência à vida do chinês no seu dia a dia, de forma
a fomentar uma corresponsabilidade natural criando sintonia entre vida humana e
natureza.
O budismo assimilado pela cultura chinesa assumiu
toda essa riqueza de comunhão com a natureza dando-lhe uma perspectiva
transcendental também no que respeita à questão da vida depois da morte na
complementação do taoismo.
A tradição do culto do imperador e uma visão funcionalista da pessoa
facilitaram a assimilação da doutrina comunista ocidental. Esta provocou a questionação de todo o
sistema confuciano. Agora o globalismo liberal completa a obra abusando de
muitas características da tradição e da antropologia chinesa; aqui a avalanche
do globalismo provoca mais facilmente a nivelação geral do que no ocidente onde
o travão civilizacional oferece mais consistência. Daí a ferocidade
implícita em agendas bastante combativas no ocidente. A revolução cultural em
via contra a cultura ocidental é especialmente agressiva contra o catolicismo, tal
como o comunismo maoista fora contra o confucionismo.
Os novos regentes em Pequim, para darem consistência ao sistema comunista
procuram apresentar Mao Zedong como a nova autoridade conectora do ideal chinês,
servindo-se, agora para isso de Confúcio em segundo plano; este não tinha deixado
de ser em parte venerado durante a revolução cultural; agora colocado num
segundo plano ao lado de Mao revela-se como boa fonte de regras bem apuradas para
disciplinar a massa crítica popular e servir de instância contra a corrupção de
funcionários. A arte deve substituir a religião no intuito de orientar as
pessoas e lhes possibilitar mudança…
Na Europa, a tradição da dignidade humana e dos direitos humanos ainda
constitui um certo empecilho ao globalismo liberal (imposição dos
interesses globais aos interesses individuais, nacionais e civilizacionais,
mediante desconstrução cultural, conexões e agendas), para isso seve-se do
relativismo de leis e valores para favorecer a estratégia do seu domínio global
através de ONGs que ganhem mais poder de influência que as nações.
Atendendo aos prossupostos do ideário cultural, a China é certamente a
civilização mais apta para dar resposta e até para gerir o globalismo como
intentona anticivilizacional. Daí a necessidade da Europa se tornar consciente
disto e saber defender-se contra a proletarização cultural em via.
A globalização aproveita-se na China de
uma mentalidade comunitária (tipo nacionalismo que prescinde do indivíduo) que
é, neste sentido, semelhante à islâmica e ao comunismo proletário, em que o
indivíduo é considerado apenas um meio, um instrumento a operar em função da sociedade
que é superior a ele, pelo facto de este não ser acompanhado da dignidade
inviolável humana (caracter divino da pessoa); isto é, para eles, o indivíduo
só vale em função do grupo, o que impede uma criação da relação de valores
fundamentais da pessoa como soberana, o que é próprio da mundivisão da
civilização cristã ocidental (isto é, o que a Civilização cristã tem a
transmitir ao mundo: a compatibilidade do humano com o divino, do grupo com a
pessoa numa unidade profunda que diria quase natural e, em termos cristãos, de
incarnação-ressurreição). O respeito mútuo das civilizações deve ser palavra de
ordem porque cada uma corresponde a um corpo orgânico próprio que só pode ser
ordenado num superorganismo na qualidade de órgão dele e não instrumentalizada
ou até declarada como campo de batalha dos pseudoprogressistas da onda em voga.
Ao falar da necessidade da China se abrir
aos valores da pessoa e sua dignidade queria apontar para um aspecto
fundamental de um humanismo que daria mais sustentabilidade à China. Estou
convencido que este é o caminho que também corresponde a uma verdadeira visão global de Teilhard de Chardin e ao
aprofundamento da fórmula trinitária que revela muito de comum (compatível) e
de enriquecimento mútuo no diálogo das civilizações.
O bom senso comum reconhece que ninguém é
tão rico que não tenha algo para receber e ninguém é tão pobre que não tenha
nada para dar! Para isso as civilizações terão de abandonar a sua legitimação da
guerra que provém do sentimento de superioridade.
© António da Cunha Duarte
Justo
In Pegadas do Tempo, http://antonio-justo.eu/?p=5154
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