Mudança do paradigma institucional para o individual
Pensar e agir em Contexto de Globalização implica fomentar um Humanismo plural
António Justo
Na qualidade de professor de ética na Alemanha, onde
tinha alunos cristãos, ateus, hindus e muçulmanos, vi-me confrontado a ter de
distinguir melhor entre Moral e Ética na disciplina que lecionava, devido às
diferentes “morais” de proveniência dos alunos e à óbvia necessidade de adquirirem
um mínimo de valores éticos comuns para os habilitar para um adequado
relacionamento intercultural no dia-a-dia e obterem a suficiente compreensão
para respeitarem as diferentes morais e crenças. Pelo que observamos a nível
mundial, as culturas encontram-se com problemas irresolvidos e a civilização
ocidental passa um momento axial da sua História (ou sua negação), o que a leva
a uma crise de sentido do Homem e da civilização.
Urge construir uma sociedade com pessoas de boa vontade,
dispostas a criar uma comunidade e um mundo de todos para todos e para isso é
óbvio apostar-se na juventude como os melhores obreiros do novo mundo, uma
geração comprometida com o desenvolvimento social e humano.
A Dignidade humana e consequente
respeito pela pessoa é o valor primeiro a ter de ser reconhecido e integrado,
como princípio ético, em todas as culturas e Estados; toda a discriminação vem
da desconsideração de tal princípio ético. Dado as diferentes
instituições humanas se regerem quase só pela negociação de interesses entre
elas (e de corporações dentro delas) ,
é necessário que pessoas e grupos (em cada Estado e outras instituições) lutem para que a nova perspectiva ética, (que parte do
interesse da pessoa e não tanto, como
até agora, do interesse das instituições),
seja concretizada nas instituições (a dignidade humana como seu
constitutivo e primeiro objectivo) e também através delas. Só assim se poderá
chegar a uma prática comum do “não faças aquilo que não queres que seja feito a
ti”.
Observa-se um esforço
crescente no sentido de se estabelecer uma ética global (Direito ético) sobre a
moral própria (Direito moral) de civilizações, religiões, culturas e nações. O
intento revela-se de muita urgência para se poder chegar a um mínimo de
consenso na relação dos povos entre si, para que se estabeleça um código de
valores ou princípios éticos comuns que venham a influenciar a feitura das leis
dos diferentes Estados. Este esforço não deve cair na
tentação de aplanar culturas e morais por uma rasoura só racional e de pretensões
materialistas hegemónicas escondidas a pretexto da racionalidade.
O direito ético (nível de reflexão) é diferente do
direito moral (leis morais culturais, decálogo). Os princípios éticos (gerais e
abstractos) estão para a constituição do país, como esta está para as leis e
tribunais no trato directo da conduta concreta (moral) do cidadão (1). A ética
seria a filosofia crítica da moral e a moral seria a ética aferida e aplicada
na vida concreta (diferentes regiões e culturas). Neste âmbito os mitos de
diferentes culturas e suas narrativas encobrem em si verdades universais comuns
a ser exploradas.
O surgir de compromissos globais
Hans Küng, com o "Global Ethic Project"(2), activou fortemente
a discussão mundial sobre a necessidade de um consenso básico de valores,
atitudes e padrões para um Ética Global. No seu programa "Projeto Ética
Global", publicado em 1990, formulou três convicções básicas: “Não há
sobrevivência sem uma ética global. Não há paz mundial sem paz religiosa. Não
há paz religiosa sem diálogo religioso (Não há diálogo entre religiões sem
pesquisa básica nas religiões.)".
O Parlamento das
Religiões Mundiais reunido em Chicago adoptou a Declaração (3) a favor de uma
ética global, a 4 de setembro de 1993. 200 representantes de todas as religiões
assinaram a declaração. Concordaram com elementos centrais de uma ética comum,
assumindo o princípio da humanidade como regra de ouro e as directrizes: não
violência, justiça, veracidade, parceria e direitos iguais para homens e
mulheres.
Uma ética concebida à margem da espiritualidade não assume
um caracter de sustentabilidade porque não se encontra ligada a um princípio
superior e, na consequência, uma ética artificialmente racional traz em si o
cunho da transitoriedade. Um princípio resultante de eleição democrática está
sempre dependente de interesses geralmente não justificados pela natureza e o
caracter espiritual fica perdido entre a luta de interesses corporativos no
meio da polis. Também o argumento de que há ateus não é suficiente para se
optar por uma ética meramente racional. Daí a importância do respeito da moral
de caracter religioso-cultural nas diferentes regiões.
Também aqui seria de aplicar,
a nível global, o princípio da civilização cristã: a Deus o que é de Deus (ao
povo o que é do povo) e a César o que é de César. Este princípio implicaria o
estabelecimento de uma cultura de paz que reconhece a complementaridade de
culturas, instituições e pessoas, o que tornaria como consequente a instituição
de uma ética global vinculativa para todos os povos (missão secular) e o outro
princípio, ao povo o que é do povo (a Deus o que é de Deus), implicaria, também
a nível de supraestruturas, o respeito e reconhecimento da sua cultura e
religião. Estas enchem com vida a Ética.
Para compreender a discussão entre conservadores e progressistas
Para se compreender o valor e a necessidade do
estabelecimento de um código ético universal é relevante partir-se da distinção
entre ética e moral (4).
Na linguagem
cotidiana costuma-se usar ética e moral (moralidade) quase com o
mesmo significado. Com o desenvolvimento da globalização e de novas
possibilidades científicas (manipulação do gene, inseminações artificiais, etc.)
a política precisa de uma moral propriamente secularizada (ética) em termos
gerais; isto possibilita um maior discernimento
necessário numa sociedade cada vez mais intercultural e de expressão científica.
Enquanto a moral consta de um
sistema de normas tendentes a levar a um comportamento moral e a acções
concretas, a ética é a ciência (filosofia moral) deles e tem como objeto o
esclarecimento e análise crítica da moralidade na base de princípios éticos fundamentais:
não julga mas classifica de ético ou não ético, enquanto a moral julga. A ética
passa a ter um caracter mais científico (político) e a moralidade um caracter
mais religioso (cultural).
Uma coisa é o direito constitucional – os valores da sociedade
como critérios objectivos de orientação - (por exemplo a Constituição Nacional
a nível político, e a nível religioso o Papa em contexto universal que garante
uma visão católica unitária) e outra coisa são as leis (uma espécie de
pastoral) que a interpretam e aplicam num aferimento com a realidade concreta.
As leis são como que o
compromisso entre os princípios gerais (constituição, dogmática, etc.) e o
comportamento do povo; por isso a lei chega, por vezes, a
ser inconstitucional (caso do aborto) e tacitamente aplicada em razão do
contexto social. (Neste caso, a constituição estatal por razões de ética
proíbe o matar, mas cede quanto à moral). A ética, sem perder de
vista a realidade geral das diferenças a ser integradas, permite, por outro lado,
paulatinamente uma mudança cultural…
O assumir
de uma ética universal corresponde a adoptar como que uma doutrina comum por
que se teriam de orientar as Constituições dos países; como acontece com a
dogmática e a pastoral a nível de Igreja.
Assim a supraestrutura (p.ex. Estado)
ao assumir, a nível internacional, compromissos de caracter ético (credo),
portanto constitucional, terá de o aplicar concretamente, na legislação
(ministério da justiça e tribunais).
Hoje já é visível o efeito da aceitação do princípio ético da dignidade humana,
dos direitos humanos e da não descriminação e os efeitos tornam-se, por vezes,
inesperados porque tocam com toda a matriz social. O estabelecimento de uma ética universal tem
consequências na feitura das leis nacionais; estas terão de ser aferidas aos
princípios éticos acordados (a Igreja católica, como única organização
orgânica de caracter global tem aqui um significado especial; por outro lado ao
aplicar no concreto o princípio ético da dignidade humana e dos direitos humanos,
que ela mesmo difundiu, terá de rever certas posições).
O acordo de
uma ética global seria uma maneira indirecta de estabelecer também na
civilização muçulmana a igualdade entre Homem e Mulher (a moral islâmica mudar-se-ia
a partir de dentro). De notar já as consequências que o princípio ético da
dignidade humana e da não discriminação provoca na legislação concreta dos
países da Europa. A não discriminação da pessoa provoca mudanças profundas no
conceito de família e no trato jurídico.
No cristianismo torna-se fácil
compreender a distinção entre “convicções éticas e convicções morais” porque o
cristão adulto deve estar na disposição de distinguir entre a atitude certa
para com a vida e a atitude errónea tomada irreflectidamente e na compreensão
de que a decisão foi tomada de maneira imponderada e em dependência psicológica
ou moral. Neste caso embora a atitude não tenha sido objectivamente certa (isto
é, tenho sido eticamente má) moralmente foi boa porque agiu segundo a própria
convicção.
Por isso, segundo o catolicismo, é
preciso ser-se mesmo adulto para se poder cometer um “pecado mortal” porque este
se define como "uma falta contra a
razão, contra a verdade livre e contra a consciência reta que fere a
natureza do homem e ofende a solidariedade humana” : para isso é preciso
juntar-se os três critérios ao mesmo tempo: a gravidade da matéria, o pleno
conhecimento e pleno consentimento. Doutro modo faz algo mal mas sem culpa
(consciência errónea). Também a obediência a uma lei civil pode basear-se em princípios
(obediência cega) que não correspondam à ética.
Como se vê,
a Ética tem com objecto de exame a razão, os argumentos racionais e
compreensíveis. Isso torna a ética um assunto de lógica porque se age no
sentido do bem com argumentos racionais. A moral tem uma conotação mais religiosa
(vem de cima) por fundamentar as suas acções num fundamento a priori que é Deus. Por outro lado, a consciência cristã, ao ter a referência a Deus, não
desliga a razão pelo que Deus passa a representar um argumento objetivo. Obediência a Deus corresponde à obediência à
razão/consciência. Não chega
seguir-se o argumento de autoridade, seja ele o dogma, a Constituição do Estado
ou uma instituição religiosa. Facto é que nem a instituição religiosa nem o
Estado podem justificar isenção de erro. Tanto
o cristão como o não cristão que possui uma atitude moral bem pensada, justificada
e reflectida e age segundo ela, procede moral e eticamente bem porque pode
justificar o seu comportamento. Daqui a necessidade de treinar a pessoa para
não se tornarem escravos morais nem da lei nem da autoridade.
Com tudo isto não se dissipa, porém, uma outra questão em
relação à razão ética. O facto de eu poder apresentar logicamente a minha
posição ética não quer dizer que posições opostas à minha lógica deixam de ser
éticas; isto leva a justificar-se a ética também como estudo da moral.
Concluindo: elaborar uma ética baseada num humanismo
plural
É natural
que, numa sociedade cada vez mais pluralista, o Estado não queira permitir que uma religião ou mundivisão determine o
que é bem ou mal na polis. O Direito
tem que organizar juridicamente essas relações. Cada vez serão mais naturais as comissões de ética e não
de moral (5)!
A declaração dos direitos humanos em 1948 está agora a
provocar grandes mudanças em vários ramos do Direito. A cidadania (a
consciência dos direitos humanos) é a palavra de ordem da contemporaneidade..
É interessante verificar-se como a convenção dos
refugiados ( imigração) leva a novas interpretações das leis em casos
concretos, e como estas interpretações se tornam, por sua vez, em fonte de
direito para novos julgamentos.
No caso concreto de uma possível acção criminal cometida
por um afegão na Alemanha, este pode contar com uma pena menor, dado o juiz ter
de considerar na sua sentença, os direitos humanos do acusado e, nesse sentido,
ter de interpretar a lei, no contexto histórico, sociológico e valores morais religiosos,
culturais e a formação individual do arguido. O juiz terá de sentenciar, pelo mesmo crime, uma pena mais leve a ele do
que a um cidadão alemão. Isto
legitimaria, a termos, numa sociedade aberta, diferentes tratos entre os
diferentes grupos de uma mesma sociedade. A subjectivação da justiça contribui
por outro lado para o fomento de ressentimentos e sentimentos de injustiça da Justiça.
Neste sentido passaria a haver uma discriminação positiva das minorias.
Temos todos de nos dar as mãos e
reconhecer a complementaridade. Sem esforço nem espiritualidade não haverá
ética que perdure. Razão e fé (crença) terão de andar de mãos dadas.
O cristianismo, ao
iniciar a crença num Deus único universal para todos, criou o fundamento para a
aceitação de uma ética global ancorando a cidadania (dignidade humana) já não
numa lei, raça ou Estado, mas na natureza humana onde toda a pessoa
independentemente de crença ou religião, tem filiação divina comum. Deste modo
deu-se origem a um humanismo plural. Com as iniciativas pela criação de um
código ético universal encontra-se já em via uma mudança do paradigma
institucional para o individual. O protótipo de toda a pessoa é Jesus Cristo.
© António da Cunha Duarte
Justo
Teólogo e Pedagogo
In “Pegadas do Tempo” , https://antonio-justo.eu/?p=5318
(1)
Em termos gerais, o mesmo se pode dizer em relação ao
catolicismo: a doutrina (dogmática) está para o Papa como a pastoral está para
as conferências episcopais (deste modo se poderia aplicar mais diferenciadamente
os princípios gerais na prática pastoral).
(3)
Declaração de Ética Mundial: https://www.weltethos.org/1-pdf/10-stiftung/declaration/declaration_portuguese.pdf
(4)
Der
Unterschied zwischen Ethik und Moral: https://www.sapereaudepls.de/was-soll-ich-tun/ethik/ethik-vs-moral/
(5)
Nos meus escritos, tento reflectir sobre temas de ética, cultura,
religião e política no sentido de fomentar uma compreensão para o que se está a
passar na nossa sociedade e assim criar maior confiança nas próprias potencialidades, num espírito de inclusão e de
complementaridade.
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