Coisas da Democracia: Trump ganha e Democratas queixam-se
da Democracia
Por António Justo
O dia das
eleições é aquele em que todos os cidadãos são iguais. No dia seguinte volta-se
à divisão dos grupos de interesses do costume, na disputa do terreno público:
os que ganharam e os que se sentem com direito a ganhar. Por vezes é custoso aceitar
que em democracia quem ganha tem razão, embora nela a verdade seja sistémica,
encontrando-se repartida e disseminada por diferentes grupos de interesse.
Uma sociedade de franco-atiradores abandonada a si mesma
O estado da
nossa democracia é cada vez mais amedrontador numa sociedade provocada que
provoca também; as pessoas cada vez se sentem mais desamparadas e sem fala não
se sentindo em casa na própria terra. A desilusão é tanta que, como na América,
as pessoas, sem alternativas válidas, já chegam a agir segundo o mote: “mal por
mal Marquês de Pombal”. Nos EUA o povo elegeu Donald Trump, não por causa das
suas expressões sexistas e xenófobas mas porque o sofrimento e a falta de
esperança que sente é tal que os levou a elegê-lo apesar disso..
Não chega
rejeitar o discurso do medo, do ódio, da intolerância e da cisão; é preciso iniciar-se uma cultura que não
se fique pelo discutir das causas que deram razão a Trump mas que provoque a
mudança de atitude e de agir da classe política dominante.
Elites arrogantes incapazes de notar os sinais dos tempos
Os comentadores
do mundo já não entendem o que se passa; por isso preferem ficar-se pela
coutada que os favorece. No discurso público é comum a arrogância dos que,
na falta de argumentos, explicam os fenómenos declarando de estúpidos e
populistas quem representa interesses que não os seus. Os eleitores de Trump
são declarados bobos e parvos como se não soubessem o que fazem e o que querem
nem tivessem direito a defender os seus interesses e a Democracia também não
lhes pertencesse. Trump mobilizou os sentimentos dos que geralmente se
calam porque não têm oportunidade perante os grupos de interesses da arena
política; os Mídias usaram a mesma técnica de Trump ao apelarem aos
sentimentos negativos das populações contra Trump em vez de analisarem o que
estava por trás da sua posição em relação ao globalismo e à responsabilidade
mundial a assumir pela Europa. Não souberam ver que Trump é o símbolo de uma
nova época que se anuncia e como tal trará consequências positivas e negativas
decisivas para a Europa e para um mundo mais complicado e difícil. Assistimos
à sabotagem da opinião pública e, de repente, o povo espectador sente-se
desenganado por uma realidade não propagada e como tal não esperada.
Chega-se a ter a
impressão que os usuários do sistema político e económico europeu, habituados a
viver reconfortados, sem grandes perturbações sob o mandato do pensar
politicamente correcto da esquerda, se aproveitam de Trump para fomentar os
seus preconceitos contra os americanos ou para indirectamente atacarem uma
democracia não forjada à sua imagem e semelhança. O mesmo já se viu na
discussão sobre o Brexit! Em vez de analisarem as causas do terremoto americano
de que enfermam também, as elites europeias, optam por criticar e difamar o
eleito e quem o elegeu e com a sua falta de discernimento serrotam o próprio
galho em que se encontram. A própria presunção leva-os a difamar, como inimigos
da democracia, outros grupos de interesse surgentes que se organizam, como
eles, democraticamente. Preferem falar da maléfica atitude de
demagogos do que da própria má vida e da corrupção que é o húmus da demagogia.
Esquecem que quando apontam um dedo para os outros têm pelo menos três a
apontar para si.
Na era digital o sentimento popular é quem mais ordena
O maculado Trump inicia a derrocada do
sistema estabelecido e é um aviso à corrupção das elites dos países da União
Europeia que nadam em ideologias e em dinheiro e cada vez deixam mais população
a nadar no charco.
Trump é
realmente um fenómeno, até qui inédito em democracias consideradas adultas,
dado ele ser expressão da nova idade digital que inicia a era pós-fática. Nesta era, como podemos verificar nos
resultados das eleições e na opinião pública europeia, o sentimento é quem
mais ordena! O sinal de que há uma desfasamento e até contradição entre os
interesses ideológicos e económicos estabelecidos e os do sentir do tempo
popular, deduz-se também do facto das empresas das novas tecnologias terem
apoiado a campanha de Clinton com 35 milhões de Dólares e a de Trump com 300
mil Dólares!... A mesma contradição parece haver numa política até aqui
considerada racional afirmada contra as razões de uma política também
sentimental.
A discussão
pública parece querer ignorar que vivemos numa sociedade em luta e repartida
entre os diferentes grupos de interesses, vivemos numa sociedade formada de
grupos de interesse a viver uns dos outros e de uns contra os outros; até agora
temos vivido em democracias de pensamento bem penteado mas bem divididas entre
os que vivem ao sol e os que vivem na sombra: os lá de cima e os cá de baixo.
No meio de tanta poeira no ar os beneficiados do sistema nem notam que a
democracia já legitima as barbaridades (ordenados horrendos de banqueiros,
futebolistas, benefícios vitalícios de políticos, etc., se comparados com os
salários mínimos e depois vêm falar ao povo de moral, de justiça e de decência)
que condena em regimes autocráticos e antidemocráticos. Desta vez o povo
perdedor do sistema, ao ir às urnas, demonstrou que o que se sente também
faz parte da realidade. Os sentimentos criaram um facto: Trump como
presidente, um homem que pensa através do corpo e da nação e como tal não tão
puro como o quereriam formatadores elitistas que só conhecem a realidade
filtrada pelos interesses do seu pensamento, que não parece comportar o
conhecimento da dinâmica de causas e efeitos; querem tudo menos reformar o
próprio sistema; tocar nele significaria autenticidade e a própria renúncia a
privilégios, que se tornaram em verdadeiros atentados à democracia e ao
bem-comum (em nada inferiores aos das elites do passado e que têm a
descaramento de criticar).
Actores sem remorsos produzidos por uma elite sem vergonha
Trump ergueu-se,
da parte sombria, num horizonte dominado por raios e coriscos, e confessou
querer defender os interesses dos USA, os interesses dos conservadores, os
interesses individuais, os interesses de grupos a viver na precaridade. Usou de
uma retórica agressiva e discriminadora mostrou, sobretudo a sua face
narcisista imprevisível e deste modo dividiu emocionalmente uma nação
politicamente já dividida. Trump não sentia remorsos de consciência ao
revelar-se como discriminador de grupos porque se sabe num regime que
discrimina mas se branqueia e legitima atrás da maioria. Como pessoa entendida
em questões de poder afirmou querer defender os interesses da América e nesse
sentido querer domar a globalização e analisar os acordos internacionais para
ver em que medida servem a América. Conseguiu juntar a si o grupo dos
perdedores de uma globalização que não respeita a pessoa, a cultura nem a
nação. Tocou o nervo da maioria da população insatisfeita do mundo ocidental.
Tem duas coisas que o não ajudarão: o seu caracter impetuoso e o partido
republicano dividido em dois. (Se não se acautela ainda o matam antes de
tomar posse como presidente. Tanto é o medo de ideologias e economias que se
sentem ameaçadas com o pouco que disse de relevância política.
O descontentamento brada aos céus num firmamento nublado
Os mantedores do
sistema dominante encontram-se desapontados. Parecem ignorar que na luta não se
limpam armas e menos ainda na era digital e que depois da luta tudo vai ao
duche e se apresenta asseado. Trump usou na sua retórica os princípio que
parecem orientar grande parte da política estabelecida: os fins justificam os
meios; na luta vale tudo, só depois vêm os argumentos! Desta vez a maioria
silenciosa teve uma efusão de alegria perturbadora das minorias detentoras do
sistema. No dicionário da classe estabelecida só parece haver lugar para a
linguagem erudita, sem lugar para a linguagem sentimental do calão ou da
linguagem considerada populista. Trump, soube verbalizar o descontentamento
de muitos que com a globalização se sentem expropriados embora na América só
haja cinco milhões de desempregados, o que não é nada em comparação com o
desemprego na Europa.
Independentemente
dos defeitos de Trump, ele tornou-se no contestador da corrupção do regime
político que nos governa. Depois de uma campanha dolorosa fez-se sentir a voz
da maioria silenciosa e daquela parte da população que também na Europa não
se atreve a manifestar a opinião para não se expor e não ser tachada de
populista ou para não ser prejudicada na carreira. A arrogância do
pensamento das elites europeias parece não deixar espaço para poder
compreender o aviso americano ao quererem reduzi-lo a uma questão de populismo,
a uma onda de emoções que passam e se expressam num homem desvairado. Esta
arrogância cega de representantes do sistema não deixa sentir os novos ventos
que correm e, por isso, persistem em querer manter o espírito na sua garrafa, e
também o monopólio da interpretação que não ouve o clamor interno nem o medo
dos pequenos cidadãos; estão mais preocupados nos deslizes de Trump do que nos motivos
dos suspensos do sistema que o elegeram. Corrijam-se os erros do sistema
para pessoas como Trump se tornarem supérfluas. Em Trump, um homem que
vem das elites, assistimos a uma verdadeira revolução contra o rígido
Estabelecimento das elites e as ideologias que representam. O desespero ganhou
largas: todos falam dele mas dizem que não o conhecem. Depois das elicoes
Trump já disse: “Agiremos de forma justa com todos”; a justiça depende porém da
mão dos mais fortes.
Porque é que a Europa tem medo de Donald Trump
A europa
encontra-se preocupada com a Eleição de Trump porque este não é fruto dos
quadros da política; porque terá fraquezas de caracter usando palavras
sexistas, xenófobas e reage à crítica com agressividade; porque quer travar o
globalismo no sentido do nacionalismo, quer permitir métodos de tortura contra
terroristas e querer expulsar 11 milhões de imigrantes ilegais, e não
reconhecer os problemas das mudanças do clima. O anunciado proteccionismo da
economia americana é uma questionação radical ao globalismo. A sua intenção de
rever no sentido dos EUA os acordos de livre comércio implica para já um não às
negociações TTIP. Não quer continuar a exportar democracia.
Não quer pagar os
soldados americanos que defendem a Europa. Quer apoiar o presidente Sírio como
o legítimo detentor do poder; é contra o aborto. A China confia na nova
administração apesar de Trump ter dito que quer uma política comercial menos
liberal. O melhorar as relações com Putin embaraça a política da EU que tinha
adoptado alguns caminhos impróprios. Com Trump a Nato será reestruturada e a EU
obrigada a organizar e assumir a defesa dos próprios interesses estratégicos o
que implicará para a EU o assumir de relações amistáveis com a Rússia e
responsabilizar-se pela organização caríssima do aparelho militar. A maior
regulamentação e intervenção nacional no processo da globalização terá
consequências muito graves para a economia alemã. Numa altura em que a EU se
preocupa por unir e responsabilizar mais os seus membros, o facto de Trump e
com ele a América querer mais patriotismo e menos globalismo obriga a um novo
baralhar das cartas da política. Com a nova América Putin ganhou e a esquerda
perdeu.
Quando a américa espirra a Europa vai para a cama
Tudo isto não
será tão mau como parece. Os USA têm sistemas constitucionais que se controlam
mutuamente e o Congresso tem muitos representantes republicanos que não seguem
a linha de Trump (partido dividido em duas facções) e o aparelho do governo tem
milhares de cargos e estes têm muito a dizer. A Europa já ridicularizou Ronald
Reagan, por ser um actor e ele conseguiu um acordo de desarmamento com a União
Soviética, exultou Obama como um messias e na sua administração houve mais
guerras no mundo do que noutras anteriores. Trump provoca uma mudança no
ideário internacional mas terá de seguir a perícia e a inteligência da
administração.
Ângela Merkel já
puxou as orelhas a Trump dizendo que quer colaborar com quem respeite os
tradicionais valores ocidentais. A europa quer ver na Nato uma comunidade de
valores mas isso não é tao lineal como parece porque, em política e economia,
na base dos valores estão os interesses. Na Europa há muitos Estados que têm
uma relação estreita com os USA e isso implicará um contrapeso a Bruxelas: Trump
está para o mundo como o Reino Unido para a EU. A Europa terá de organizar
uma estratégica própria em colaboração com a Rússia e não na confrontação se
não se quiser esgotar economicamente na militarização da sociedade, além do
mais tem de reconhecer os erros que obrigaram o Reino Unido ao Brexit.
Moral da
história: a classe política europeia deveria reconhecer a base dos seus valores
na sua cultura e não ir vivendo do improviso de valores abstractos fabricados
ao sabor de ideologias ou dos tempos. Quem quer a globalização deve ter os pés
na terra e reconhecer os interesses da própria cultura, aquela que lhe dará
sustentabilidade. O progresso e a inovação são muito necessários mas não poderá
ir além do comprimento das pernas que temos.
O povo é que
paga as favas: paga-as quando alimenta as classes privilegiadas demasiado
gordas e paga-as quando estas se queixam de que ele é estúpido. A democracia
não se adequa a ter donos, sejam eles partidos ou autocratas. Com a tecnologia
digital iniciou-se a era pós-fática em que o sentimento é quem mais ordena!
Resta-nos ficar
com a atitude de esperança do Vaticano em relação a Trump: a promessa de rezar
por ele e a jaculatória “Que Deus o ilumine”!
António da Cunha Duarte Justo
Reflexão incómoda in Pegadas do Tempo http://antonio-justo.eu/?p=3932
5 comentários:
GASTOS COM A CAMPANHA ELEITORAL
Nos USA há 8 partidos nacionais mas a imprensa só falou de três. Além dos candidatos concorrentes Trump e Clinton ainda houve três outros candidatos concorrentes na campanha: Jill Stein (Ecologista), Gary Johnson (Partido Libertário) e Evan McCullin (Partido da Constituição)
O Washington Post refere que na campanha de Trump foram gastos 795 milhões de dólares e na de Clinton foram gastos 1,3 bilhões de dólares.
Hitler, também chegou democraticamente ao poder, na Alemanha dos anos 30… Contudo, o grande problema foi, que após essa eleições, quando alcançou o poder… acabou com a Democracia! Esperemos, que esta tão triste história… não se repita, de novo!
João Soares de Carvalho
in FB
A democracia só acaba quando o povo abdica! Há democracias que têm de vez em quando as suas febres, há outras que andam sempre doentes. A democracia é a melhor forma de governo, apesar do estado de consciência do povo que a forma e legitima. A democracia americana é resistente. O medo não legitima uma determinação democrática; naturalmente é necessário estar-se sempre atento. A América não se encontra na situação do povo alemão dos anos 30. A democracia portuguesa esteve sempre mais em perigo do que agora a americana e ninguém se preocupou. Cada povo tem a democracia que elabora e como tal a que merece.
Parece-me ser necessário lembrar-lhe que a Democracia americana – que, pelos vistos, lhe parece tão “resistente” quanto isso – também teve os seus percalços… Isto é, nos anos 50, com o McCarthy nas “purgas” que fez junto de académicos, jornalistas, escritores, cineastas e todos os outros intelectuais americanos, tentando varrer do mapa toda a Esquerda americana, e de nos anos 70, o escândalo “Watergate”, com Richard Nixon, uma vez que, ao tempo, tinha, de facto, uma imprensa livre (e não um veículo propagandístico dos interesses económicos e financeiros, como a que passou a ter desde os anos 80…) divulgando o caso, junto da opinião pública, levando, obviamente, á sua demissão. Por último, a Democracia, pode permitir a eleição de um ditador, e, esse, no poder, acabar, de facto, com ela. Por isso, lhe referi, anteriormente, o pior exemplo disso, que a História nos trouxe… o caso de Hitler! E, se acredita que o caso do empresário Donald Trump, será diferente… eu, também isso, espero. Contudo, só o futuro nos dirá… por isso, esperemos.
João Soares de Carvalho
Muito obrigado pelo seu esclarecido depoimento. A revolução francesa começou propriamente na América; Depois Lincoln iniciou a ideia de que a ”Democracia é o poder do povo para o povo” de forma orgânica e representativa. Um momento de crise nos Estados Unidos não é suficiente para a pôr em perigo. Com o fim da última grande guerra a América foi a grande impulsionadora da democracia numa Europa então demasiado escura. O povo americano consegue bem digerir Trump.
Seria melhor varrer a nossa casa aqui na Europa para podermos criticar os outros. A intenção do meu artigo era fazer reflectir! A corrupção especial em Portugal é sistémica e acontece sem reacção das forças democráticas; o mesmo acontece com a imprensa europeia que deixa muito a desejar e ninguém se preocupa.
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