União Europeia – Uma “Comunidade de Valores” sem Sustentabilidade?
António Justo
Não é a autonomia da pessoa
que fundamenta os direitos humanos, mas sim a dignidade humana que fundamenta a
sua autonomia. O Homem é
um ser situado e como tal feito de eu, tu e nós, de espaço e de tempo (é mais
que as suas circunstâncias). Nele a transcendência dá perspectiva e continuidade
à chama da realidade (1).
Querer basear os Direitos
humanos apenas no Direito político (no direito e na moral), como tenta a União
Europeia, quando se procura identificar e definir como “Comunidade de Valores” (por ordem decrescente a nível de
popularidade: "direitos humanos", "democracia", paz,
"estado de direito", "solidariedade" "respeito por
outras culturas", "respeito pela vida humana",
"igualdade", "liberdade do indivíduo",
"tolerância", "autorrealização" e "religião"), significaria um encurtamento, uma regressão
no processo do desenvolvimento (humano,
histórico e sociológico). Ao mesmo tempo corresponderia ao abdicar da sua
função teleológica (das causas finais ou finalidade – propósitos e motivos que
estão por trás do viver e do agir) e a conformar-se com o fim da História.
Implicaria uma amnesia da história passada e deste modo uma renúncia ao futuro
(de sujeito assumiria o papel de apenas objecto da História, para viver
oportunisticamente numa posição hipócrita de igualdade artificial com outras
culturas).
Pretender reduzir a tradição europeia ao iluminismo sem reconhecer que este
só foi possível na continuação da Idade Média e do Renascimento e da doutrina
cristã e grega corresponderia a desfamiliarizar-se à imagem do filho pródigo. Os valores da comunidade não a justificam
por si mesmos; com o tempo tornar-se-iam numa roda de hamster sem missão nem
sentido e sem objectivo abrangente. Ontem como hoje legitimam-se guerras e
injustiças em nome da defesa de valores e direitos individuais, religiosos e
políticos. Os direitos e interesses das partes concorrentes determinam o agir à
custa da dignidade humana (2).
Entre o imperativo categórico da razão e o imperativo integral do divino
O barómetro da validade dos valores dependeria pontualmente do sentimento
expresso em determinada época ou tempo.
O desejo corre atrás da falta. O
mimetismo das leis e costumes na luta pela sobevivencia que cria esperanças não
dá sentido nem satisfaz a Esperança. O bem-comum e a democracia são demasiado
circunstanciados para poderem ser apresentados como garantes de futuro ou como
princípio ético global (Exemplo de sócrates e de Jesus Cristo que foram mortos
em nome da lei por defenderem a dignidade humana que transcende a própria lei e
moral: ao não seguirem a moral da massa ficaram fora da lei e da sociedade). A polis, a democracia em nome do
povo, legitima pela lei a morte do indivíduo embora este,
como testemunha Jesus e Sócrates, seja fiel a uma consciência ética individual
e social superior à da massa; numa
perspectiva da polis, ao indivíduo fica reservado o mal se não segue a masssa. Na
consequência podemos concluir que não chega o reconhecimento do grupo ou da
sociedade como prémio ou como saisfação de uma necessidade para legitimar um
acto ou uma lei geral. O facto de se pressupor um ideal absolto e de ele ser
impossível no tempo, devido à falta, não justifica a sua negação ou sentido.
O desejo realizado apenas no âmbito social reduziria a vida a uma mera necessidade de
autoafirmação presente na natura e na cultura mas sem perspectiva de sentido
final. A liberdade e a
dignidade humana são mais do que a lei
produz. A esfera da moral é criada pela
lei mas esta deve deixar margem para poder ser secundada pela consciência.
A vontade da lei – expressão
do momento - seria determinante independentemente do sentido e da finalidade do
Homem, da história e da natureza, que apontam seguir no sentido de uma meta e
de uma caminhada de aperfeiçoamento comum (a natureza e o desenvolvimento antropológico e
sociológico seguem na peugada de um chamamento). A teleologia explica a
realidade em termos de causas finais e a teologia explica a realidade em termos
de primeiro motor e de causas finais, na perspectiva humano-divina.
O imperativo categórico da razão
não pode obstar ao imperativo integral do divino, que é uma constante a manter-se; a ética da
responsabilidade é um bom orientador para regular a vida da pessoa na cidade
(sociedade) mas não é suficiente, precisa também da virtude moral pessoal
(convicção) que assente num imperativo divino (esfera mística e ideal já
apresentada por Platão na alegoria da caverna). Não é suficiente a narrativa da comédia e da tragédia da vida para a explicar;
a vida humana necessita-se também da filosofia e da espiritualidade como
procura da verdade. (Naturalmente que aqui falo como cristão, mas como
cristão consciente de que todas as doutrinas e éticas se interrelacionam e se necessitam
na caminhada comum de realização e descoberta do mistério).
Substituir
o olhar de Deus pelo do Estado secular seria condicionar o cidadão irremediavelmente
à polis (cidade) tal como em tempos anteriores o servo da gleba tinha sido
condicionado à agricultura. Seria dar o passo da Religião para a Ciência de
maneira irreflectida, porque esta não aceita reconhecer nem ver a ideologia que
a sustenta. Nesta via reduzir-se-ia tudo a educação, psicologia economia e sociologia, fazendo dos professores
os novos sacerdotes ao serviço de uma subalternidade que humilha a pessoa.
A dignidade humana (de gene divina) ultrapassa o estatuto da moral e do
direito; ela é que os fundamenta e garante: neste sentido, todo o Homem é filho
de Deus independentemente da sua crença e mundivisão. Com a morte de Deus, a
Europa perderia o seu passado e com ela o sentido do seu futuro. Seria antieuropeu e anti-cultura-ocidental,
se os seus representantes continuassem a negar o Deus dos cristãos (o
Cristianismo fonte do seu ser e projecção e sentido da missão no mundo de se
dar “a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”) porque ao matar Deus matam a cultura e negam a continuidade da história.
Todo o Homem ocidental consciente da cultura europeia, independentemente de ser
ou não crente, reconhece a importância do cristianismo como matriz da cultura
ocidental que soube integrar nela o
espírito grego e romano numa dinâmica de aculturação e inculturação com outras
culturas; de facto são instituições como o Catolicismo e outras comunidades
que, na abertura, permitem garantir a sustentabilidade de uma civilização que
herdou delas a dignidade humana e os direitos humanos numa dinâmica de se
reinventar e refazer continuamente.
O direito é algo externo e como tal não tão vinculativo como a dignidade
humana porque, mesmo o Estado de direito que se entende justo, tem um sistema
jurídico fruto da força dos mais fortes e que os beneficia, com maior ou menor
desvio, de cultura para cultura: a dignidade humana essa é uma constante
acompanhada por valores (direitos e deveres) variáveis. A dignidade humana, por
mais ultrajada que se encontre num sujeito, transcende o direito (quando este
dispõe do homem como objecto); a dignidade humana responsabiliza o ser humano
no foro externo e interno; não se subjuga à ponderação de interesses imediatos
(individuais ou grupais) que a determinem.
A instituição e o órgão não se podem sobrepor à pessoa (dignidade humana).
O Estado embora promova o direito é ao mesmo tempo seu objecto e a vontade do
povo é legitimadora das leis na medida em que as condiciona à dignidade humana.
Doutro modo temos uma sociedade de direito, mas de legitimidade muito limitada.
De que me valeria ser justo se a
minha justiça contribuísse para a sustentabilidade de um estado de injustiça?
Para Aristóteles o fim da acção é a felicidade (fim teleológico)
Na vida individual e social, a uma força biológica causal junta-se uma
força intencional (um objectivo a longo prazo, impossível de ser observado num
momento determinado dado o observador fazer parte do processo).
Sem uma visão teleológica da realidade e da própria história, os valores e
os direitos humanos (e um possível catálogo de princípios éticos acompanhantes)
careceriam de sentido e propósito, não podendo por si sós tornar-se em
motivação de acções e de valores. Um
agir motivado apenas pelo direito teria como consequência um utilitarismo
egoísta ad hoc porque até o princípio ético da justiça não passaria de um
argumento para se produzir um contínuo estado de guerra desesperada contra quem
tem ou é mais ou até incrementar um estado de guerrilha de indivíduos e de
grupos na sociedade (à imagem dos jhiadistas muçulmanos).
Se observamos, o ser humano, a natureza (biologia) e a História na sua
caminhada (antropológica e sociológica) verifica-se não só a caminhada mas que
o caminhar se orienta para uma meta (força motivadora e intencional; o
argumento de uma possível lei de adaptação é insuficiente por excluir o fim
aberto da metafísica; não chega a força da necessidade para justificar a
criação do órgão nem o salto das espécies para explicar o desenvolvimento nem tão-pouco
uma ordem; por trás da necessidade há um
impulsionador que possibilita a própria ordem, a orienta e a satisfaz e a
que se poderia chamar felicidade ou perfeição – realização final (dinâmica da
trindade). (Nesta perspectiva torna-se óbvia a colaboração das várias ciências
como achegas complementares na tentativa de desvendar o mistério da vida e do
mundo que é maior do que o âmbito que cada sector abrange: não chega ficar-se
pelo materialismo nem pelo espiritualismo como modo de explicar o mundo e o
Homem (sua origem, composição, finalidade e sentido; também não é suficiente
perder-se em explicações); um e outro têm de se dar as mãos para solidariamente
servirem a Humanidade. Com efeito, uma autoafirmação no ser contra e através da
negação do outro (alteridade) corresponderia a um impulso primitivo de
elementos inconscientes, sem ipseidade própria nem sentido.
A Dignidade Humana é a logomarca da história intelectual e mística europeia
A dignidade humana dá
consistência à autonomia dos direitos humanos, legitimados por uma convicção
moral. De facto, não
chega a tentativa de um enquadramento da consciência europeia em variáveis
jurídicas e morais para fundamentar o valor de uma cultura ou fundamentar a
dignidade humana; a moldura é variável, como se verifica ao longo da História e
na comparação das culturas. (Uma fundamentação e explicação meramente ética
procura a sua origem na filosofia Kantiana, em concepções utilitaristas ou
relativistas). São, porém, insuficientes. O
acto político humano circunstancial (democrático), expresso na elaboração de
uma Constituição, não é suficiente para fundamentar um direito vinculador do
comportamento, porque não reflecte o ser do Homem, o Homem todo, a sua
ipseidade de caracter divino.
Não chegam conceitos morais para
fundamentar os diretos humanos; uma ética responsável é sempre pessoal; como referi, a “dignidade humana”, de identidade cristã e de filiação
judaico-geco-romana precisa de manter instituições que preservem a memória e a
vivência a ser transmitida de geração em geração (cristianismo e seus
desafiadores como guardiães do direito natural, do direito positivo e do
direito espiritual). A Dignidade Humana é
a logomarca da história intelectual e
mística europeia e baseia-se na” Imagem de Deus” apesar das mais diversas
expressões e ao abuso do mais forte; abuso sempre presente na história
religiosa e profana pelo facto de estes não deixarem de ser portadores dos
males inerentes ao ser humano.
Embora o cristianismo não
tenha elaborado um catálogo específico sobre os direitos humanos e o seu
fundamento na Dignidade humana, toda a sua espiritualidade (ser-humano feito de
terra e céu, o protótipo Jesus Cristo, o embutindo na
relação pessoal trinitária, as bem-aventuranças,
tudo isto cria um uma relação substancial de elevação natural da dignidade
humana. O cristianismo é mais que uma religião, por isso, a dignidade humana é
definida independentemente da religião…e como tal global e válida para toda a
crença e descrença.
A dignidade humana é mais que um direito; ela é a rainha de todo o direito! A honra humana é inerente ao
Homem independentemente do estado social e da sua avaliação ao longo do tempo. Para
Paulo não há grego nem romano. O Homem deve velar pela sua dignidade perante
si, perante os outros e perante Deus implicando isto o seguimento de um
chamamento de perfeição.
A dignidade humana e a admiração
por todos os seres prestam-se como alegação universal para o direito e a moral
de todos os povos. A dignidade humana é o fundamento religioso e
filosófico mais apropriado dos direitos humanos; uma tentativa de colocar os
direitos humanos como fundamento leva ao equivoco, dado o direito e a moral que
os assistem serem demasiadamente localizáveis, condicionadores e condicionados
ao lugar e ao tempo, para poderem servir de fundamento último de mundividências
ou atitudes. A mera lei como orientação
mata as asas do sonho, aquilo que nos torna Homem.
Pena de morte – Um Direito contra a Dignidade humana
Consequentemente, a dignidade humana não é compatível com a legitimação da
morte de embriões nem de pessoas em estádio último, muito embora o direito se
expresse diferentemente em circunstâncias diferentes. Tentar definir a
dignidade humana corresponderia a equacioná-la e condicioná-la em termos de
sistemas ideológicos ou mundivisões ela é o valor em si porque, o valor a
priori anterior à formulação do direito público e do direito privado.
Corre-se o perigo de haver uma degradação da orientação baseado num
processo de transferimento do pensar da filiação divina, para o pensar racional
e ultimamente para o pensar utilitário-financeiro. De facto, na formação dos
juízos de valor deparamo-nos com a influência da economia em termos de câmbios
correspondentes a trocas de valores equivalentes a produtos em igualdade.
Basear os direitos humanos apenas na acção de legislação política corresponderia
à elaboração de um sistema social com pés de barro como na predição de Nabucodonosor . Com o tempo o homem deixaria de ser sujeito e
senhor para passar a objecto e escravo.
A Dignidade Humana e o respeito perante a vida (todo o ser) são os garantes
da paz e do desenvolvimento dos povos.
A lei da pena de morte, vigente nalguns países, é o exemplo mais acabado de
como uma determinação legal, embora democrática, transgride a dignidade humana
e o respeito pela vida ao conferir a uma instituição o direito de colocar a sua
norma acima da Dignidade humana.
©António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e
Pedagogo
(1)
Faço esta reflexão que provem de uma observação do
agir e legislar da União Europeia, consciente de que muitos dos seus timoneiros
não estão à altura de perceber a matriz da cultura europeia e do seu sentido e
significado para os cidadãos e para o mundo. Em vez de viverem a própria
cultura, incorrem num zelo jacobino masculino de imporem a outros povos a sua
“democracia”, com um constructo dos “valores europeus” em que os valores da
pessoa, da família e da comunidade deram lugar aos valores do mercado que para
se tornar absoluto aposta no egoísmo humano, longe de Deus e do povo. Não me
preocupa a crença; o que me preocupa é uma Europa só corpo que perdeu a alma e
que por isso não parece saber o que quer nem o que faz.
(2)
Hoje torna-se óbvia, mais que nunca, uma discussão
desemperrada sobre a cultura europeia atendendo ao seu caracter aberto e à
afirmação crescente da cultura árabe no seu meio como gueto. Neste sentido não
é suficiente uma Constituição dado se afirmarem à custa da cedência de bens
culturais europeus sem que eles cedam também nos seus; de facto, a abertura
cede ao fechamento sem nada em contrapartida.
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