Reflexão sobre a Família baseada em “A Alegria do Amor”
António Justo
” A família é o lugar onde nos desenvolvemos
como pessoas e cada família é a pedra base que constrói a sociedade”.
Na exortação apostólica “A Alegria
do Amor” o Papa Francisco apela ao
reforço da família, como “lugar da misericórdia” onde o plano de Deus se
realiza. Não deixou de valorizar também a “dimensão erótica” do amor conjugal,
como bom acompanhante: um “dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos”.
Como no Oceano, tudo o que é exterior muda e transforma-se com o tempo; as
necessidades e as expressões afectivas também.
Não há caminhos
feitos, há metas. A este propósito recordo uma história que ouvi de um colega
padre no Domingo a seguir à Páscoa: uma
comunidade de cristãos brasileiros questionava-se da razão de Jesus ter
escolhido um pescador para chefe da Igreja. Depois de algo reflectirem, a
resposta foi unânime: quem se movimenta em terra constrói estradas e
asfalta-as. Consequentemente usará sempre o mesmo caminho. Pelo contrário, um
pescador procura todos os dias um novo caminho. O importante é descobrir os
peixes e dirigir-se para onde eles estão. Pode acontecer que o caminho de ontem
não conduza onde os peixes de hoje se encontram.
A experiência dos
pescadores da Galileia foi-se repetindo ao longo da História da Igreja, num
caminho de sucesso e de falhas, que é também o caminho de cada um de nós. Jesus
aparece aos discípulos em diferentes lugares; aparece lá onde estava o medo. A
mensagem pascal é reconfortante: Vive a vida em plenitude onde te encontras
porque aí Deus está presente e procura-te sem te condenar; o pressuposto é a
disponibilidade de te encontrares a ti mesmo no seguimento de uma presença
envolvente.
Clima familiar
Família é mais que
a soma de dois indivíduos que se possibilitam um ao outro. Família é o
princípio de toda a união, é um laboratório de futuro. Sem família não
há indivíduo e dos destroços de uma cultura o que permanecerá é a família. Na família
nascem os sentimentos e a intimidade onde se inicia a primeira comunidade de
pais-filhos- irmãos. Do amor entre os membros nasce a alegria de viver. Uma estruturação equilibrada da pessoa e da
família precisa de programas e ritos que dêem protecção e consistência ao
indivíduo numa
espiritualidade familiar (Cf. http://antonio-justo.eu/?p=4138).
Francisco encoraja a “cuidar a
alegria do amor” na consideração pelo outro e na expressão do carinho e da
ternura. Nesse sentido aconselha a usar na família muitas
vezes e todos os dias as palavras "por favor", "obrigado" e
"com licença". O beijo
matinal mantem o amor fresco. Recomenda aos pais que, num clima de liberdade
deem regras claras às crianças e cuidem pelo pouco consumo de telemóvel porque
é uma tecnologia que conduz ao autismo.
A
constante do amor de Deus no matrimónio faz crescer a afeição e o carinho entre o homem e mulher premeia-os com confiança,
amor e paz interior misericórdia e ajuda o desenvolvimento pessoal; possibilita o encarar a vida e as pessoas com benevolência
sem ter em foco as exigências da justiça numa atitude compassiva, também
para com os mais necessitados. "Bem-aventurados os misericordiosos,
porque eles alcançarão misericórdia “(Mateus 5:7).
A Parábola do
Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), é um exemplo importante da extensão da
misericórdia divina aos outros. O filho depois de ter malgastado tudo o que o
pai lhe dera foi acolhido sem qualquer pedido de satisfação.
Deus é
misericordioso, não olha para as nossa culpas, trata-nos com a graça e a
bondade de um favor imerecido: Deus não faz contas, não julga, premeia (João
10,10). O bem que fizermos, por nós o fazemos; fazemo-lo no sentido de nos
tornarmos entidades desenvolvidas e de consciência espiritual distinta. Em nós
flui o mundo todo. “A maturidade chega a uma família quando a vida emotiva dos seus membros
se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções
e valores, mas segue a sua liberdade, brota dela, enriquece-a, embeleza-a e
torna-a mais harmoniosa para bem de todos”.
Misericórdia é mais que
justiça
Misericórdia é, para o Doutor da Igreja Tomás de Aquino, a maior das
virtudes. E o Papa Francisco faz dela programa de vida, ao enfatizar, com S.
Tomás, a primazia da caridade na acção da Igreja e no agir de cada um. A “misericórdia”
do estado social é insuficiente.
Para a igreja os pobres e os fracos “formam, em primeiro lugar, uma
categoria teológica e só depois uma categoria sociológica ou política” (cf.: “Alegria
do Evangelho”); para além da justiça está a
misericórdia– a rede social da misericórdia, expressa também na Caritas,
procura dar resposta à justiça social na sequência da tolerância. “A vida não é tempo que passa mas tempo de encontro” e a ”Solidariedade é uma reacção voluntária que nasce no coração de cada indivíduo” .
“Faz aos outros
como queres que te façam a ti”, reza uma digna regra moral antiga. O ideal do
amor ao próximo (independentemente de raça ou religião) tem uma dimensão emocional e espiritual ao contrário do imperativo
categórico de Kant que corresponde à “moral sem amor”, como constata o
cardeal Walter Kasper. A justiça embora seja o fundamento da vida social é
seca. A racionalidade procura o que vale mais; tudo é vista na perspectiva e
na lógica do negócio. De facto, em ciência e política,
o altruísmo é considerado como lógica de negócio em que o doador recebe algo em
compensação. A Igreja completa-o acrescentando à inteligência racional a
inteligência afectiva com o sentimento e a espiritualidade. A misericórdia supera a justiça, porque tem em conta a pessoa. É um modo de vida compassiva que integra a
ternura e a benevolência predispondo a pessoa para as necessidades do próximo.
A pessoa compassiva é realizada, por isso, renuncia à afirmação do ego à custa
dos outros, respeitando os que não têm tanta força para se impor. Neste sentido
precisa-se de uma nova educação, uma educação humana no sentido das
bem-aventuranças e das obras de misericórdia, onde, de forma reduzida se se
apresenta um programa especificado de vida (1). “A violência na
família é escola de ressentimento e ódio nas relações humanas básicas”
Cristianização das
mentalidades
Na base de uma vida familiar
conseguida estão “o crescimento no amor mútuo”, o respeito, a tolerância e o perdão
que garantem autoconfiança, estabilidade e humanidade.
O
ideal católico do amor concretiza-se, como “projeto comum estável„ no
sacramento do matrimónio, um estado sagrado, no exercício dos valores
generosidade, compromisso, lealdade e paciência; onde surgem dificuldades maiores
há resta o recurso ao exercício da misericórdia. Aponta para o ideal da “doação
generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e
se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma” (no sentido evangélico, seguir o chamamento divino
sem ceder a fraquezas humanas que se considerem como critério de orientação nem
ao facilitismo).
Por experiência penso que, na vida de casais, o
mais difícil virá da dificuldade de estabelecer compromissos no aferimento de
ideais, intenções e metas comuns, na relação do dia-a-dia; como família, um e
outro agirá na qualidade de comunidade e não de indivíduo, o que supõe uma vida
comum regrada e orientada por Deus e não apenas por objectivos imediatos nem sequer
pelas tendências ou capacidades de um ou do outro; a perspectiva do nós
prevalece sobre a do eu. Há casos de casais
com mentalidades extremamente diferentes e a maioria deles não terá o ideal nem
a paciência que tinha Sta. Mónica em relação ao seu filho Agostinho.
O amor
a Deus é colocado acima das próprias necessidades e como tal serve de ponto de
reencontro e de ponte que possibilita a realização do presente numa perspectiva
de futuro gratificante. O matrimónio é processo em que os dois se desenvolvem
na entrega mútua. Um desenvolvimento individual desafinado conduz a becos sem
saída.
A vida
familiar é dificultada por uma cultura do "individualismo desenfreado... e
do Provisório " acrescida da comodidade e de uma atitude de suspeita e
desconfiança. A dificuldade de um equilíbrio entre vida familiar privada e vida
laboral contribui para fomentar uma dinâmica de ressentimento e agressão.
Segundo o Papa, na vida familiar, a misericórdia é de colocar acima da moral tradicional.
“O Sábado é para a pessoa e não a pessoa para o Sábado” (Mc, 2,27).
Uma atitude
misericordiosa pressupõe a mudança de postura perante as comunidades de vida, perante as mães solteiras, os nascituros
indefesos, os drogados, os homossexuais, os divorciados e todos os que vivem à
margem da sociedade. A misericórdia divina é exemplo para a Igreja petrina; por
isso, esta não poderá perder-se tanto no sector moral nem na acentuação
pedagógica reguladora da vida dos fiéis; as falhas de cada pessoa já serão
sancionadas nela mesma e exteriormente através da sociedade envolvente (leis,
costumes e preconceitos).
O ideal proposto e
vivido pela igreja tem de passar pela via de Deus que é o perdão (a nível
institucional: anuição dos recasados à comunhão; a nível familiar:
reconciliação e perdão, ritualizados na oração diária do fim do dia!).
A questão ética da
relação ou validade de valores e normas é algo a ter-se presente. A exortação pastotral do papa dá
primazia à misericórdia e aponta pistas na “A Alegria do Amor” não
neutralizando a responsabilidade individual no respeito pela consciência
pessoal como última instância perante Deus e perante si mesmo. Naturalmente, o
outro lado da misericórdia, para a condição humana, é a justiça. A necessidade
de misericórdia para com os fracos não pode passar por cima da sua
responsabilidade nas relações vividas.
No dia-a-dia há pessoas
que sentimos como não simpáticas e que são desgastantes e desagradáveis; nestes
casos uma atitude autoconsciente e de benevolência misericordiosa ajuda a
diminuir o estresse que a situação pode proporcionar. A misericórdia presume que se dê e se renuncie
a algo de si que se encontra na alteridade. Deus é misericordioso, não condena, perdoa e proporciona sempre uma
oportunidade. O perdão não é uma estrada num só sentido (2), pressupõe a
metanoia e reparação. Mas segundo o pensamento cristão não é um irmão que julga
um irmão, há um terceiro que julga: a presença divina.
Misericórdia é dar
de olhos nos olhos, é doação e entrega. Também
implica ser misericordioso consigo mesmo na aceitação de se ser como se é e
reconhecer as próprias limitações como algo natural e a aceitar para então se
puder ultrapassar. Ao aceitarmo-nos com
as nossas limitações estamos dispostos a aceitar os outros e a fazer uma
caminhada com eles. Isto supõe a reconciliação
consigo mesmo, com os outros e com a vida (3). De facto, todos somos tecelões de um grande
tecido e do qual fazemos parte: o mundo e a humanidade onde todos queremos
mudar algo no sentido do futuro que é esperança.
Perdão é o possibilitador de
futuro
O futuro só é
possível onde houver perdão – muitas das faltas contra o próximo são acções de
défices da própria autoimagem que procura confirmação em alguém.
Alegria e caridade
pressupõem o dom da empatia que, por vezes, escapa à força de vontade e à praticabilidade. A justiça pode-se exigir, mas o amor não! Nele não se
trata de exigir demais, mas de dar um passo mais largo do que a dor possibilita;
o futuro é amor.
Por vezes, pessoas escrupulosas ou hipercríticas
querem ver formas autoritárias na Igreja, querem ver tudo regulado por leis,
partindo de uma ideia preconcebida, do como cada pessoa deveria ser.
É preciso recuperar a união da
família, dela dependem os valores humanos. A família é um valor a defender por
todos os grupos, independentemente de diferentes éticas. Ela é a matriz de
qualquer ordem social com perspectiva de futuro.
Conclusão
“Somos chamados a formar as
consciências, não a pretender substituí-las”! Este apelo do Pontífice não
significa uma cedência ao relativismo nem uma redução da acção da igreja a mero
humanismo e filantropia. Na base está sempre a Boa-nova, a consciência e o seguimento
da trdição espiritual apesar da mudança dos costumes e das vontades.
Na exortação “A Alegria do Amor” não
se trata de uma flexibilização da doutrina católica no sentido de uma
protestantização nem de uma ortodoxização da igreja católica, como pretendem
ver grupos conservadores; muito menos uma cedência ao modernismo.
Na
Exortação pontifícia não se trata de encontrar desculpas para aliviar erros
sociais ou seguir tendências modernistas, o que só beneficiaria os traficantes
de ideias e ideologias; em questão está o respeito pela consciência da pessoa
concreta, o chamamento do Evangelho, a Igreja mãe e a família com seu primeiro
lugar de exercício social. Sem trair a
tradição da Igreja ela possibilita uma certa ambiguidade de interpretação
nalgumas passagens, o que por outro lado favorece melhor emprego numa prática
de situações diversificadas.
O
Pontífice critica “o fascínio do gnosticismo fechado no subjetivismo e o
neopelagianismo autorreferencial e prometeuco com um elitismo narcisista e
autoritário”.
O papa reconhece que “nem todas
as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de
intervenções magistrais… em cada país ou região, é possível buscar soluções
mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais”. Para os
divorciados com desejo de se recasarem permanece a doutrina da penitência com
as mesmas condições de acesso aos sacramentos e que são: a confissão, o arrependimento
sincero e o estado da graça.
Para a Igreja e para o cristão, o
sentido de orientação é Deus, o oriente onde nasce o sol da iluminação.
“Queridas famílias, também vós sois uma parte do
povo de Deus. Segui o vosso caminho em paz. Permanecei sempre unidos a Jesus e
levai-O com o vosso testemunho a todos”, exorta o Pontífice.
Este papa é uma bênção para o
mundo. Resta-nos abençoá-lo também.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e
Pedagogo
Pegadas do
Tempo, http://antonio-justo.eu/?p=4239
(1) As sete obras de misericórdia corporais (Cf. Mateus 25:34-40): 1ª Dar de comer a quem
tem fome; 2ª Dar de beber a quem tem sede; 3ª Vestir os nus; 4ª
Acolher os peregrinos; 5ª Dar assistência aos doentes; 6ª Visitar
os presos; 7ª Enterrar os mortos. As sete obras de misericórdia
espirituais: 1ª Dar bom conselho; 2ª Ensinar os ignorantes; 3ª
Corrigir os que erram;4ª Consolar os aflitos; 5ª Perdoar as ofensas; 6ª
Suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo; 7ª Rezar a Deus
pelos vivos e defuntos. Os Sete Pecados
Capitais contra as obras de misericórdia: 1° A Gula (é
intemperança, desejo insaciável), 2° A Avareza (apego excessivo pelos bens
materiais), 3° A Luxúria (a fixação no prazer sensual e material), 4°A Ira
(sentimento descontrolado de raiva, ódio e rancor), 5° A Inveja (o ciúme, não
vê o que tem para cobiçar as posses, status e habilidades do próximo), 6° A
Preguiça (negligência, desleixo evita o trabalho), 7° A Soberba (Orgulho
arrogante, Vanglória, Vaidade).
(2) O Papa pede para se demitirem do sacerdócio os
abusadores sexuais. A tolerância para com os criminosos não se deve tornar em
injustiça para com as vítimas. Abuso além de pecado pessoal, é crime, por isso
os superiores têm de o comunicar ao Ministério Público. Antigamente não
se tinha ideia dos prejuízos psicológicos que causam tais delitos.
(3) Em termos de recasados: Isto significa o perdão
do adultério por Deus misericordioso é oposto pela negação da comunhão.
Contradição fidelidade a Deus e infidelidade do divórcio. Deus quer a
fidelidade e certamente não há nenhuma pessoa que possa perdoar de maneira
global. Por isso há uma maneira nobre como a Igreja resolve a questão através
do sacramento da penitência não reduzindo a questão a um caso perdido ou
individual. A reconciliação consigo
mesmo e com a comunidade dá-se no ponto de encontro onde se encontram o
indivíduo com a comunidade para se realizarem como comunidade.
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