Como o globalismo liberal e as migrações transnacionais desafiam o modelo constitucional do Estado-nação
.... As vagas migratórias contemporâneas diferem qualitativamente das vagas pós-guerra dos Gastarbeiter de cunho funcional e economicista temporária. São estruturalmente transnacionais, duradouras e enquadradas por uma ideologia de globalismo liberal que relativiza as categorias clássicas de soberania, fronteira, cidadania e pertença nacional. Simultaneamente, a União Europeia encontra-se num processo contínuo de transferência de competências soberanas dos Estados-nação para instâncias supranacionais, criando um duplo movimento de diluição: por um lado, da soberania política; por outro, da homogeneidade cultural mínima que historicamente sustentou a coesão constitucional europeia...
Isto provoca desconforto que se manifesta na perceção de abdicação cultural e social por parte do Estado, que parece incapaz de articular uma narrativa coerente de cidadania, pertença e futuro comum...
Multiculturalismo, guetização e o fim do interculturalismo esperado
A formação de grandes guetos urbanos, associados a um multiculturalismo fechado, tem frustrado a expectativa intercultural que marcou o período dos Gastarbeiter...
Este fenómeno coloca desafios não apenas sociológicos, mas profundamente constitucionais. O conceito europeu de Estado, fundado na tríade pessoa, território e constituição, entra em tensão quando parcelas significativas da população estruturam a sua identidade cívica a partir de uma pertença religiosa transnacional, cuja referência normativa não é a constituição do Estado de residência, mas a Ummah, entendida como comunidade islâmica global.
Cidadania europeia e cidadania islâmica: conflito de antropologias jurídicas
No constitucionalismo europeu, a cidadania articula elementos de pertença (direito de sangue e/ou de solo) com direitos e deveres civis e políticos universais, assentes numa conceção de dignidade humana inerente a cada indivíduo. Esta matriz, historicamente influenciada por uma antropologia cristã secularizada, reconhece a dignidade como pré-política e inata.
Em contraste, a cidadania islâmica, enquanto conceito normativo, funda-se na Sunnah e na trilogia Corão-Sharia-Ahadith. Os direitos e deveres derivam da pertença religiosa à Ummah, sendo os princípios de dignidade, igualdade e justiça plenamente aplicáveis apenas aos membros dessa comunidade. Trata-se de uma conceção coerente no seu próprio sistema, mas não universalista no sentido ocidental. Daí a guerra aberta de grupos islâmicos que se sabem cobertos pela doutrina islâmica contra o “modernismo ocidental e cristão”, mas que a sociedade europeia qualifica de extremistas, numa de se enganarem a si mesmos!
Este desfasamento antropológico e jurídico gera conflitos estruturais. Não se trata apenas de práticas culturais distintas, mas de modelos constitucionais incompatíveis no plano dos fundamentos. A exigência de aplicação da Sharia em contextos europeus, como se observa no Reino Unido, onde operam tribunais islâmicos paralelos em matérias civis, questiona diretamente o monopólio estatal do direito e da jurisdição, elemento essencial da soberania moderna e que os políticos oportunisticamente tomam como dado aceite...
O embaraço político e o recurso ao eufemismo
O resultado é um défice informacional que afeta tanto as populações autóctones como as comunidades migrantes, criando uma paz aparente sustentada por desinformação tácita.
A emergência de manifestações públicas a favor de um califado em cidades europeias, como Hamburgo, revela que o problema não é meramente teórico. No entanto, o debate permanece frequentemente interdito pelo receio de estigmatização, o que paradoxalmente impede a formulação de soluções democráticas e juridicamente sólidas, além de conduzirem a uma atitude política e mediática hipócrita e de má-fé em relação ao futuro...
Um Estado que abdica da clareza normativa comporta-se como um sistema sem função-objetivo definido...
Soberania em transformação e o risco de um novo tipo de Estado
A soberania, entendida modernamente como elemento constitutivo do Estado, perde densidade quando subordinada exclusivamente à lógica económica do globalismo liberal. ...
A Europa encontra-se, assim, num momento de transição para uma forma ainda indefinida de Estado. Esta transição exige uma análise comparativa rigorosa entre o conceito europeu de nação e o conceito islâmico de Ummah, entre constitucionalismos seculares e religiosos, e entre modelos de soberania territorial e comunitária...
Integração, cidadania e honestidade política
A questão central permanece: como articular imigração, integração e cidadania sem exigir uma transformação radical apenas aos cidadãos autóctones, preservando intactas visões do mundo incompatíveis com o constitucionalismo europeu?...
Só uma política séria, baseada num interculturalismo exigente e não num multiculturalismo acrítico, poderá preparar uma sociedade europeia verdadeiramente humanista e pacífica...
Enquanto o Islão for tratado como tabu analítico, e não como objecto legítimo de estudo comparado, a Europa continuará a adiar soluções, criando situações de Soberania Islâmica em desafio com a Soberania Constitucional. A inteligência humana e concretamente a tradição europeia ensina que problemas não explicitados não podem ser resolvidos; devido à incúria política e ao oportunismo partidário, apenas se acumulam até atingirem pontos de rutura.
António da Cunha Duarte Justo
Artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10521


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