O medo humano manifesta-se em múltiplas dimensões que vão do instinto biológico à manipulação política. Compreender esta complexidade é essencial para distinguir entre proteção legítima e submissão instrumentalizada.
O medo como instinto vital
O medo originário é um mecanismo de sobrevivência necessário, inscrito biologicamente antes de qualquer construção cultural. Ele protege-nos de perigos reais e prepara o corpo para responder a ameaças concretas. Este medo é pré-moral e funcional. O problema surge quando deixa de responder a perigos objetivos e passa a ser alimentado por narrativas, cenários projetados e imaginação ansiosa, transformando-se num estado permanente de suspeita.
O medo social e a tirania da imagem
Existe um medo mais subtil mas igualmente poderoso: o receio do julgamento alheio. Tememos perder reconhecimento, estatuto e pertença social. Este medo já não protege o corpo, mas sim uma máscara identitária que construímos. Ele gera conformismo, silêncio e cumplicidade passiva, explicando por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente reconhecem como frágeis. Discordar exige mais coragem do que obedecer, e o pensamento crítico torna-se doloroso quando a dignidade depende do aplauso externo.
A dimensão teológica: da confiança à idolatria
Na perspectiva bíblica, o medo surge quando se rompe a confiança ontológica fundamental. Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro e na justiça, substitui essas âncoras pela segurança absoluta, que se transforma em ídolo. O diferente, o estrangeiro e o dissidente deixam de ser pessoas para se tornarem símbolos do caos. O medo deixa de perguntar "o que é verdadeiro?" para apenas questionar "o que me protege?".
O medo como ferramenta de poder
As elites políticas, económicas e mediáticas reconhecem o medo como instrumento eficaz de governo porque ele simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excecionais. Em contextos como a guerra na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções, transformando cidadãos em espectadores emocionais dispostos a aceitar sanções, censuras e sacrifícios sem debate proporcional. O medo deixa de ser reação pontual para se tornar condição permanente de governação.
Pensar o medo como acto de libertação
O verdadeiro problema não é sentir medo, mas não o interrogar. Pensar o medo exige perguntar: é proporcional ao perigo? Quem beneficia dele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe? Quem pensa criticamente o próprio medo não se torna violento, mas livre. E essa liberdade é sempre incómoda para quem governa através da ansiedade coletiva.
A parábola do vale enevoado
O autor conclui com uma parábola ilustrativa: num vale cercado por montanhas, uma névoa desceu e alguns começaram a falar de monstros invisíveis. Uma torre foi erguida por quem prometia segurança. As gerações seguintes cresceram temendo atravessar o vale, não pela névoa em si, mas pelas narrativas que a rodeavam. Um idoso que se lembrava do caminho ensinou que "a névoa não mata; o que mata é esquecer para onde se ia". Os que ousaram atravessar descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. A torre permanecia de pé, mas vazia, funcionava apenas enquanto todos acreditavam na sua necessidade.
Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso não para os outros, mas para quem vive do medo deles.
António da Cunha Duarte Justo
Este é o resumo do artigo completo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10508


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