QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE
Medo, confiança e o sagrado da infância
O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.
O medo como experiência originária
Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta e prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.
Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde a fantasia e a realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.
A infância como lugar do sagrado
A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas sim uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.
Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.
Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.
Uma memória: rezar no escuro
Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, eu atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro, devido às sombras, aos ruídos, à imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas e de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.
Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo se mudava: o espaço deixava de ser vazio e o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas eu já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.
São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.
Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.
Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar; funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.
Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida
A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.
Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.
Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.
Quando a confiança desaparece, o medo governa
Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.
Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança e despreza o humano. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.
Acender a luz sem destruir a noite
A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.
A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10506


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