Uma Reflexão Crítica e
Experiencial
Introdução
O ensino da
língua materna em contextos de emigração transcende largamente a mera
transmissão de competências linguísticas. Envolve, de forma indissociável,
questões culturais, identitárias, políticas e estratégicas. O meu percurso
enquanto docente e representante do ensino do Português no estado alemão do
Hesse ao longo das décadas de 1980 e 200 permitiu-me observar de perto não só
as realidades práticas do ensino, mas também os fios subterrâneos — por vezes
invisíveis, outras vezes descaradamente evidentes — que conectam intenções
políticas, interesses institucionais e decisões pedagógicas.
Este ensaio pretende,
à luz dessa experiência concreta, articular uma análise crítica da evolução dos
cursos de formação de professores e do ensino da Língua Materna (LM) no Hesse,
expondo simultaneamente as convergências e tensões entre os interesses
portugueses e alemães, e refletindo sobre as implicações mais profundas desta
realidade. É, entretanto, de reconhecer que o ensino da Língua Materna (LM) no
Hesse era exemplar em comparação com outros estados porque reconhecia o ensino
da língua materna integrando a nota da língua materna com nota relevante no
meio das outras disciplinas curriculares.
As Primeiras Estruturas: Intenções Declaradas e
Realidades Paralelas
Nos anos 80,
Portugal e o Hesse deram os primeiros passos concretos para estruturar o ensino
do Português como Língua Materna. À superfície, destacava-se o propósito nobre
de garantir aos filhos dos emigrantes portugueses o acesso à sua língua e
cultura, conforme plasmado nos compromissos constitucionais portugueses, mas
também de abertura e boa vontade alemã. No entanto, a forma como este processo
se desenrolou, revelou desde o início um jogo complexo de interesses,
metodologias e visões divergentes.
Enquanto
Portugal, através dos seus cursos de formação organizados por Lisboa e
dinamizados pelo consulado em Frankfurt, seguia uma abordagem de cima para
baixo, ancorada primeiro na pedagogia
behaviorista (Pavlov) de aprendizagem (repetição memorização)
seguindo-se depois a aplicação das teorias
linguísticas e pedagógicas (como a gramática generativa de Chomsky), o Hesse
optava por uma estruturação prática e administrativa, partindo da realidade
concreta das escolas, dos professores e dos alunos.
Este contraste
não se traduzia apenas em metodologias pedagógicas diferentes, mas refletia
também diferenças profundas na conceção do papel da língua: Portugal via-a inicialmente
como veículo de cultura e identidade; a Alemanha, como ferramenta de integração
escolar e social.
O Conflito Subtil: Entre Teoria e Pragmática
A convivência
destas duas linhas — a portuguesa, mais teórica e cultural, e a alemã, mais
pragmática e administrativa — gerou inevitavelmente pequenos atritos.
Recordo-me dos seminários no consulado de Frankfurt, sob a orientação do Dr.
Silvério Marques, marcados por um discurso fortemente conceptual e ideológico,
contrastando com as reuniões da responsabilidade de Wiesbaden, lideradas pela
Prof.ª Zulema de Sousa, onde prevalecia a preocupação prática e a maior articulação
com as políticas educativas do estado do Hesse. Posteriormente, quando a Prof.
Cristina Arad assumiu a representação da LM em Wiesbaden, isso trouxe
estabilidade e reduziu os conflitos.
Não obstante, foi
precisamente na dialética entre estas duas abordagens que os professores de LM
puderam beneficiar de uma formação contínua relativamente equilibrada, ainda
que, como observei, o interesse prático e a procura de materiais aplicáveis às
aulas se sobrepusessem frequentemente à compreensão crítica das orientações
políticas subjacentes.
A Mudança dos Anos 90: Da Cultura à Funcionalidade
A década de 1990
trouxe consigo uma inflexão clara no ensino da LM, tanto em Portugal como no
Hesse. Sob o manto da integração europeia e da globalização, o ensino da língua
materna começou a ser progressivamente esvaziado do seu conteúdo cultural
identitário, reduzido a uma competência funcional, instrumental, desligada da
alma da nação, parafraseando António Sérgio.
A criação do
Instituto Camões, com sucessivas reestruturações e reorientações sob tutela ora
do Ministério da Educação, ora do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
simboliza esta transição. A promessa constitucional de assegurar o ensino da
língua e cultura portuguesas aos filhos dos emigrantes foi, na prática, diluída
num discurso técnico de ensino da língua, formatado segundo os parâmetros
europeus, mas amputado do seu enraizamento cultural.
No Hesse, esta
mudança encaixou-se perfeitamente na tradição administrativa alemã, onde o
ensino da LM, embora reconhecido e integrado no currículo escolar, sempre foi
visto mais como ferramenta de integração social do que como espaço de afirmação
cultural.
Intenções e Interesses: As Camadas Invisíveis da
Realidade
Qualquer análise
séria da evolução do ensino da LM não pode ignorar o entrelaçamento de
intenções e interesses — uns legítimos, outros discutíveis — que sustentam as
políticas educativas. No caso do ensino do Português no Hesse, destaco três
níveis de interesse que, ao longo dos anos, se cruzaram e por vezes colidiram:
Interesses Pedagógicos: A preocupação com a
qualidade do ensino, a formação dos professores e o sucesso educativo dos
alunos.
Interesses Políticos e Geoestratégicos: A
utilização da língua como instrumento de soft power, de afirmação internacional
ou de diluição identitária, conforme as conjunturas.
Interesses Administrativos e Sociais: A
necessidade de gerir a diversidade cultural nas escolas, promover a integração
e evitar conflitos sociais.
Estes interesses
nem sempre foram transparentes, e o professor no terreno, embora peça
fundamental do sistema, foi frequentemente tratado como mero executante, muitas
vezes alheio às motivações mais profundas das mudanças curriculares ou
institucionais.
Considerações Finais: O Risco da Língua sem Alma
A minha experiência
no Hesse mostrou-me que a língua, quando separada do seu contexto cultural,
perde a sua força transformadora e identitária, tornando-se um mero código
funcional. Esta tendência, que se acentuou com a entrada de Portugal na União
Europeia e com o advento de políticas educativas cada vez mais globalizadas,
representa um empobrecimento não apenas linguístico, mas também humano: a língua
perde a sua alma para se reduzir a corpo.
O ensino da
Língua Materna não pode ser reduzido a um produto para consumidores ou a uma
competência desprovida de contexto. A língua é portadora de memória, de
identidade, de pertença. Negá-lo é empobrecer as gerações futuras,
transformando cidadãos em meros operadores linguísticos, desenraizados e
moldáveis segundo interesses alheios.
Conclusão
O ensino do
Português na Alemanha ao longo das últimas décadas revela, na sua microescala,
as grandes tensões e dilemas do nosso tempo: entre cultura e funcionalidade,
entre integração e identidade, entre interesses políticos e necessidades
pedagógicas. Reconhecer estas tensões, nomeá-las e debatê-las abertamente é o
primeiro passo para uma educação mais consciente, humanista e verdadeiramente
emancipadora.
Hoje tona-se cada
vez mais evidente a necessidade de uma política que defenda uma educação que
preserve a riqueza cultural da língua enquanto património vivo.
António da Cunha
Duarte Justo
Pegadas do Tempo:
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