Uma Provocação alemã? Se sim
- qual o porquê?
Medidas concretas tomadas pela assembleia sinodal para
a Igreja na Alemanha: de futuro em todas
as dioceses serão possíveis celebrações de bênçãos para casais homossexuais. Já tinha havido uma reforma da lei católica
do trabalho em 2022, segundo a qual a igreja também não despede uma gerente de
creche que viva numa relação lésbica. A igreja católica emprega
cerca de 650.000 pessoas a tempo inteiro, das quais 500.000 trabalham para a
Caritas. E mais de 600.000 pessoas trabalham como voluntárias da Igreja
Católica.
Leigos empossados,
homens e mulheres, também podem pregar nas diferentes liturgias da igreja de
modo a que a igreja se torne sinodal com mais participação em todos os níveis.
A bênção da igreja não será
mais negada aos divorciados que se casem novamente.
Na última assembleia sinodal
em Frankfurt, no terceiro dia (19.03) foi eleito um "Comitê Sinodal"
que consta de 27 bispos diocesanos, 27 membros eleitos pelo ZdK (Comitê Central
dos Católicos Alemães) e outros 20 membros agora eleitos pela assembleia (1). O
"Comitê Sinodal" manterá o processo de diálogo
entre representantes dos bispos alemães e representantes dos leigos e
trabalhadores da Igreja.
Na assembleia do caminho sinodal (2) os membros revelaram-se
capazes de compromissos embora alguns aspectos doutrinais tivessem de ficar em aberto
para serem resolvidos no sínodo no Vaticano pelo Papa Francisco (diaconado para mulheres, celibato). Houve um clima de
discussão-argumentação nas reuniões, muito característico do espírito discursivo
alemão. Bispos e líderes leigos têm-se debatido de forma mais política do que
piedosa por encontrar compromissos. As resoluções do caminho sinodal têm um
aspecto de recomendações e de apelo ao Vaticano.
Houve muita discussão sobre a abertura do
sacerdócio às mulheres e sobre o celibato (3). Os bispos exigiram abertamente o diaconado para as
mulheres. 93% da assembleia geral e 80% dos bispos
votaram a favor; neste assunto a assembleia sinodal alemã
apenas fez um apelo à igreja universal e ao Papa Francisco. Em outubro será realizado o sínodo
mundial no Vaticano e também tratará das decisões da assembleia alemã.
Certamente o sínodo em Roma surpreenderá muita
gente e não desiludirá muito os defensores de reformas. Quanto à bênção dos
homossexuais e a abolição do celibato obrigatório tudo leva a entender que a assembleia
sinodal de outubro no Vaticano oferecerá diferentes soluções para as
respectivas culturas e igrejas regionais, obedecendo ao lema: diversidade e unidade na igreja
universal. Acho que tais mudanças são possíveis sem que a Igreja Católica se torne
protestante; o seu maior problema será o da politização nas suas fileiras! A discussão
pública na Alemanha sobre o caminho sinodal tem sido controversa e polarizada
fazendo lembrar uma discussão entre partidos sobre uma instituição de grande
relevância social, mas conduzida sob aspetos políticos sem grande preocupação espiritual.
A discussão dos problemas é ainda mais dificultada pelo facto de nos
encontramos num contexto político-social histórico adverso ao cristianismo por
razões de domínio de caracter político que tende a reduzir a pessoa a mero
cliente.
Alguns críticos temem que as discussões possam
separar a Igreja Católica na Alemanha da Igreja universal. Outros veem no
caminho sinodal uma oportunidade para a Igreja enfrentar os desafios da sociedade
moderna.
Um dos argumentos teológicos em favor da mudança
baseia-se na atitude cristã primitiva de interpretar os sinais dos tempos (um
elemento da revelação) para que a igreja não se ausente da vida real.
No meio de tanta discussão o Papa encontra-se numa
situação desconfortável e difícil porque o poderá levar a sentir-se só com o
Espírito Santo: não será fácil conciliar a fé cristã com uma política mundana
orientada por maiorias. Por outro lado, os sinais dos tempos não parecem
indicar que se deva submeter a doutrina bíblica e eclesial a simples tradições
de ética sexual, sejam eles do passado ou do presente. Tentar limitar hoje a
sexualidade ao matrimónio sacramental revela-se ainda mais difícil que manter o
celibato obrigatório para todos os padres.
Numa altura em que a pastoral (aplicação prática da doutrina e dos sacramentos
sob orientação do bispo) tende a
acentuar-se sobre a teologia (ciência que procura penetrar o conteúdo da fé
por meio do método discursivo e da reflexão para dar resposta às vicissitudes do presente, e uma resposta
para o futuro) seria uma oportunidade
para a mística cristã (religiosidade da vivência do encontro pessoal com
Deus e da contemplação dos mistérios divinos) poder vir a assumir (finalmente!) um papel mais determinante na vida
eclesial.
O Papa certamente continuará fiel à sua exortação
sinodal “Querida Amazónia” defendendo uma reforma a partir da base, sem
masculinizar as funções da mulher, mas que deve feminizar a praxis eclesial (4).
Na cultura alemã sobressai a racionalidade e a natureza científica envolvidas
por uma forte ética de trabalho e amor pela ordem e estrutura deixando pouco
espaço para a espiritualidade/religiosidade. Embora a religião cristã
continue a ser uma parte importante da herança cultural alemã e da vida
cotidiana de muitas pessoas, ao mesmo tempo observa-se uma perda crescente da
fé e uma dispersão em práticas espirituais alternativas. Há muita procura e
vontade de experimentar em práticas e filosofias espirituais alternativas, tendência
esta que corresponde ao espírito do tempo que aposta mais na afirmação do ego e
do hedonismo. A religiosidade é mais crença do que fé (pistis). É sintomático o
facto de a língua alemã usar uma só palavra (Glaube) para designar crença e fé
(Pístis).
Pelo que pude observar nestes últimos três anos da discussão dos temas do Caminho
Sinodal, esta mais me parecia uma discussão político-social com pouco a ver com
o espírito religioso ou com a fé. Fica-se mais pela liturgia da palavra do que pelo aspecto místico da
devoção sendo a religião muito psicologizada e, como tal, orientada para as
coisas deste mundo. Encontra-se tudo mais
centrado e conotado com valores socialmente utilitários como justiça, solidariedade,
direitos humanos, democracia e paz. Sente-se a falta de valores cristãos como
fé, amor a Deus, devoção, respeito ao próximo, caridade, bondade, esperança e
paz. Por vezes
sobressai a impressão de se procurar apenas a autorrealização, e de se querer salvar
e melhorar o mundo por conta própria.
O discurso público e religioso encontra-se
unilateralmente politizado, facto que se observa cada vez mais na opinião
pública europeia; a politização da vida ameaça empurrar para longe todas as
outras áreas da vida pública.
Na edição de fim de semana do jornal alemão que assino verifico que párocos católicos e evangélicos
no seu espaço do jornal falam de temas da actualidade com alguma possível referência
final bíblica, mas quase nunca há uma referência a Jesus Cristo ou a algo que
tenha a ver com espiritualidade (o pároco está presente, mas ausente a
conotação da religião/espiritualidade que representa). Resume-se tudo a alimento
para a mente como se fosse embaraçoso falar de Jesus Cristo ou de
espiritualidade. Mesmo em textos do episcopado sobressai uma linguagem
administrativa mais adequada à teologia do que à pastoral. Na pastoral, muitas
vezes, são usadas palavras muito sensatas que têm mais a ver com temas e
sistemas seculares de pensamento do que com um sistema religioso de atitude
cristã em relação com Deus. Pela impressão que tenho da maneira de ser alemã centro-norte,
a pessoa está mais centrada em si mesma procurando encontrar em si a força para
agir não contando muito com o apoio de outras dimensões da realidade como a fé,
a graça e a oração. Na consciência social a espiritualidade encontra-se
bastante privatizada.
Se os alemães exageram o debate a ponto de o politizarem e polarizarem, os portugueses mantêm uma cultura de debate público subdesenvolvida e por isso a opinião pública assume uma dimensão apenas vertical quando uma eclésia e uma verdadeira democracia deveriam dar mais valia à horizontalidade (fraternidade dos filhos de Deus)! Tudo cresce de baixo para cima!
António CD Justo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=8405
(1) Após o término do Caminho Sinodal, as deliberações sobre as reformas da
Igreja Católica devem continuar em um "Comitê Sinodal". Para garantir que
essas resoluções não fiquem apenas no papel, as coisas devem continuar - há uma
série de tarefas: algumas coisas devem ser implementadas pelos bispos
individualmente, algumas coisas pela conferência dos bispos, outras ainda
precisam de mais trabalho em novas comissões e grupos de trabalho, e no que diz
respeito ao ensinamento da Igreja, é submetido ao Papa em votação.
O Comitê Sinodal deve continuar e implementar o trabalho do projeto de
reforma nos próximos anos. Bätzing: “O caminho sinodal não leva a uma divisão
nem é o começo de uma igreja nacional. Rejeito firmemente tais alegações
obscuras mais uma vez.”
(2) O objectivo do caminho sinodal é encontrar novas maneiras de proclamar
com credibilidade o evangelho de Cristo. Para que isso aconteça, os membros da
Assembleia sinodal seguem uma dupla escuta: por um lado, todos os membros se
escutam sinceramente e, por outro lado, escutam o Espírito Santo. (Na escuta
dos membros entre si geralmente trata-se de uma escuta a nível de elites imbuídas
da cultura típica que as envolve!). Inclui os membros da Conferência
Episcopal Alemã, 69 representantes do Comitê Central dos Católicos Alemães e
outros representantes de serviços espirituais e escritórios eclesiais, jovens e
indivíduos (Assembleia sinodal é composta por 230 pessoas). Resumo das quatro Assembleias sinodais em alemão: https://katholisch.de/artikel/44051-beschluesse-offene-enden-und-hindernisse-wo-steht-der-synodale-weg
(3) Até 1023 havia padres casados. O
que é decisivo é a capacidade e o chamado de Deus para transmitir o amor a
Deus.
(4) Sobre exortação sinodal “Querida Amazónia”: https://antonio-justo.eu/?p=5803