“ALEGRIA DO AMOR” É A PONTA DE LANÇA DO VATICANO II
António Justo
Com a exortação “Alegria do Amor„ o papa Francisco procura dar resposta às
necessidades da Igreja e do mundo contemporâneo, diligenciando para que a
Gaudium et Spes e outros documentos do Vaticano II sejam postos em prática; em
parte tinham sido deitados ao esquecimento devido ao medo das ondas ricochete
da Igreja conservadora que, outrora, ganharam especial forma na resistência ao
Concílio, encabeçada pelo cardeal Marcel Lefebvre; este via em alguns documentos conciliares uma
“protestantização da Igreja” especialmente no que respeita à liberdade religiosa, ao ecumenismo
e à colegialidade dos Bispos (maior competência aos bispos). Precisamente nesta se apoia Francisco
compatibilizando a colegialidade episcopal com o poder das chaves de Pedro no
Papa! No mar revolto, a Igreja de Pedro é impelida pelas ondas e marés
conservadoras e progressistas. Umas e outras são fruto do mesmo Paráclito.
Também na Igreja são possíveis os mais diversos biótopos espirituais.
O princípio da ambivalência como estratégia de
desenvolvimento e de sobrevivência
Com “Alegria do Amor„ (Amoris
Laetitia) o Papa Francisco aponta pistas para resolver problemas de
espiritualidade de cristãos recasados e ainda outros atualmente mantidos na
gaveta (intercomunhão,
celibato, ordenação de mulheres, bênção de homossexuais), dando um peso especial ao método da casuística e da moral de situação
incardinadas.
O Papa parece querer tornar
atual o método discursivo da
controvérsia tão própria dos jesuítas e parece querer introduzir no
discurso, a ambivalência como estratégia de enfrentamento e de resolução de
questões complexas.
Indirectamente realiza-se
aqui uma certa democratização do pensamento e acentua-se a revelação de Deus no
processo da História! Dá-se valência tanto ao método dedutivo como ao indutivo,
de alcançar a verdade, numa perspectiva do “não só…, mas também…”. Num mundo de
definição a-perspectiva são reconhecidas diferentes percepções ou perspectivas
no processo de discernimento em formação.
Naturalmente, a Igreja Católica, para se manter sempre viva e sustentável,
na sequela Christi, para não se perder no tempo, terá de ser capaz de manter a
criatividade e subjectividade própria do tempo e, ao mesmo tempo, terá de
manter, como luzeiro de orientação individual e global, a doutrina de caracter
mais abstracto e objectivo. Por outro lado, terá que permitir a coexistência
das duas impostações ortodoxia e ortopraxia, diria em analogia, terá de manter
um centralismo doutrinal paterno e um regionalismo fraternal: a mãe não se
desvincula dos filhos, nem os filhos se desvinculam da mãe (Infalibilidade
complementada pela colegialidade episcopal e objectividade doutrinal
–institucional - complementada pela subjectividade individual!).
Pelo que pude observar da
leitura da Exortação, o Papa Francisco afirma a doutrina, mas parte do
princípio da jurisprudência “in dubio pro reo” (em caso de dúvida, pelo
arguido”)! Isto implica a inclusão de uma certa
gradualidade na lei, o que não agrada aos apologistas da Exortação de João
Paulo II que, segundo eles, na Familiaris
Consortio, 34, não prevê gradualidade na lei. (Tais conflitos são muito comuns no mundo
secular onde os princípios da Constituição, são muitas vezes contrariados pela
legislação parlamentar ordinária.)
Maior enfoque do método da casuística e da moral de
situação
A teologia moral procura resolver conflitos entre deveres de consciência, deveres
morais, e deveres religiosos. A casuística insere-se na moral de costumes,
sendo um segmento da teologia ética católica. Exige grande capacidade de
diferenciação e discernimento ao manter a correlação entre a consciência
individual e a norma paradigma. Aqui, a
orientação da análise é de caracter indutivo e como tal a argumentação parte de
casos concretos e analogias por vezes em confronto com uma argumentação da
razão baseada em princípios. A Amoris Laetitia veio complementar a
regulamentação anterior, dando relevo à situação e circunstâncias, valorizando
assim a casuística.
Para certos grupos
populacionais (maioria) a moral baseada em princípios dedutivos oferece mais
clareza e segurança, porque pode prescindir de uma autoanálise e de uma decisão
própria, limitando-se a pessoa a seguir o que é certo a nível de doutrina
geral.
O processo de discernimento segundo o método casuístico exige raciocínio
minucioso e uma argumentação muito delicada. Naturalmente, a casuística se
perder de vista o paradigma da doutrina pode tornar-se propensa a abusos e pode
levar a uma “moral laxa” (Blaise Pascal) mas o critério acaba sempre por se
afirmar. A casuística é influenciada pelo direito judicial (in loco) e não pela
lei.
Tomás de Aquino também fala
de “lex dubia non obligat” ("A lei não obriga a incerteza"); esta máxima tanto se pode aplicar
no sentido da teologia da libertação (método indutivo que parte dos dados da
experiência para tomar conclusões: ortopraxia) como da teologia dogmática que
baseia as suas conclusões em princípios universais (método dedutivo:
ortodoxia).
O recurso à casuística cria,
necessariamente, lacunas que se equilibram, ao interpretarem-se as cláusulas
gerais (dogmática). A exortação do Papa Francisco, com uma conotação da teologia da libertação, impede um normativismo e um formalismo
demasiadamente vinculados a formulações (encíclicas antigas) muito conotadas
pelo espírito do tempo.
A nova praxis exige maior maturidade
A valorização da consciência individual, possibilita aos divorciados
recasados, deixarem de ser excluídos para serem totalmente “incluídos”. O Papa
deixou à descrição dos recasados
a decisão de frequentarem a eucaristia, o que antes era proibido.
O Papa apresenta o “discernimento pessoal”, alcançado no diálogo, como
critério para permitir o acesso à eucaristia. Isto complica a pastoral porque ao padre não é suficiente o aspecto
moral nem a simples regra, para se orientar, porque tem de incluir, no
processo, também a consciência do cristão no acto da decisão. Tira o poder
ao juiz externo para o colocar na consciência individual. «O discernimento não
se fecha, porque “é dinâmico e deve permanecer sempre aberto a novas etapas de
crescimento e novas decisões, que permitam realizar o ideal cristão de modo
mais pleno” (AL, 303), segundo a “lei da gradualidade” (AL, 295) e confiando na
ajuda da graça.»
Torna difícil a distinção entre uma situação objectiva que seja
externamente pecaminosa e a sua não pecaminosaidade ou culpabilidade no foro
subjectivo. De facto, o contexto e a situação, passam a ter um peso equitativo
a concorrer com a moralidade do acto em si. Um acto mau em si deixa de o ser
atendendo não só às circunstâncias acompanhantes, mas também ao peso decisivo
da consciência individual. Moral
de situação defronta-se com a moral dogmática do intrinsecamente mau e do mal
em si.
Muitos pastores encontram-se
inseguros porque têm medo que isto leve à consciência de que o casamento não é
indissolúvel. Porém, a
ocorrência de a pessoa se encontrar em situação irregular não quer dizer, por
esse simples facto, que ela viva em adultério. Daí a necessidade de recurso a
uma análise discernida com acompanhamento e à decisão final da consciência.
Um certo paternalismo clericalista tem medo que a excepção se torne regra.
Este receio deveria ser compensado, mas no redobrado empenho pastoral na
formação de consciências adultas e livres.
Muitos vêm na Amoris Laetitia um documento com frases ambíguas que cria
tensões entre progressistas e conservadores. Facto decisivo, é que não somos
julgados pela consciência dos outros, mas pela própria consciência e a pastoral
deve ter isso em consideração. “Alegria do Amor” valoriza a adultez do cristão
tirando à jurisdição eclesiástica a decisão como elemento disciplinador,
passando-o para as mãos do crente. Com isto não abdica da sua função docente de
Igreja. O documento, embora não seja um acto ex cátedra, tem grande relevo
pastoral, empenhando os pastores no sentido de fomentarem e acompanharem o
desenvolvimento das consciências humanas. Resta á idoneidade dos pastores
fazerem o seu trabalho sem grande alarido!
No cristianismo não há lugar para condenações definitivas, porque certa
advertência de Jesus, no que respeita ao dia do juízo, também pode ser
considerada no sentido de uma pedagogia social moral.
Na discussão teológica deparamos com duas estruturas de personalidades com
diferentes orientações: os rigoristas e
os flexíveis; os primeiros sentem-se mais “conscientes” ao agarrar-se à lei
objectiva (a norma) e os segundos sentem-se mais eles (“conscientes”) se
seguirem o aspecto subjectivo (a situação) que os envolve. Muitos dos primeiros
priveligiam a organização da sua vida mediante o controlo mental em torno de
uma ordem dada (lei, doutrina) e de um perfeccionismo e no outro extremo
encontram-se os que seguem o laissez faire!
Estas duas espécies de tipologia humana com rescritos próprios de salvação,
fazem parte do mesmo quórum que é a Igreja. Daí a necessidade de uma orientação
privilegiar a ortodoxia e a outra privilegiar uma ortopraxia. As duas são parte
do todo e como tal complementares, mas para o reconhecer pressupõe-se lucidez,
amor (que supera o sentido da justiça), humildade e tolerância.
Concluindo: há católicos que querem ser mais católicos que o papa e a
tolerância que não têm com o Papa é a intolerância que os impede de aceder à
verdade encarnada. Na Igreja há lugar para todos. Jesus não chora com quem
cumpre ou deixa de cumprir a lei, Jesus chora e sorri em cada pessoa e em cada
recasado que realize a união. Somos todos uma grande Família onde se
realiza o plano salvífico de Deus.
O Papa Francisco, que vem de um outro continente, sem se desfazer da
doutrina anterior, procura, no espírito do Vaticano II, situar a Igreja no
mundo de hoje; uma Igreja católica inclusiva de outras perspectivas teológicas,
já não só de caracter ou perspectiva europeia.
© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e
Pedagogo
Pegadas do Tempo
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