sexta-feira, 26 de junho de 2015

O PAPA SEM FILTRO - O PAPA DA POBREZA DA ECOLOGIA E DA MISERICÓRDIA

Tema “Família” no 2° Sínodo dos Bispos em Outubro

António Justo
No vaticano sopra um vento sul forte, um vento oceânico de fora da Europa que, ao suflar nas batinas da Cúria romana, habituadas à brisa mediterrânica, causa perplexidade. Francisco I, no seu discurso de 22 de Dezembro diagnosticou 15 doenças em pessoal da Cúria e em muita outra gente acomodada que não se controla: “Alzheimer espiritual”, “terrorismo das conversas”, críticas aos “fariseus”, são palavras não diplomáticas que abanam muitas árvores da cúria chegando a atingir até as raízes de alguns “cedros do Líbano”.

No vaticano, como na política há posições controversas, uns mostram-se mais comprometidos com a doutrina, outros com a praxis, como é natural numa tradição de dialética frutífera entre doutores e pastores. A um Papa teólogo segue-se um Papa pastor. É profético e quase de obrigação programática o facto de a História ter reunido dois Papas ao mesmo tempo sob o mesmo tecto romano, como que a avisarem: a praxis é a flor da doutrina; a pastoral não se deve dissociar da doutrina embora aquela deva constituir um desafio a esta. Um grupo conservador receia que Francisco I mude a doutrina quando ele apenas quer pôr a pastoral na ordem do dia. Aguentar a tensão é o que a Igreja católica sempre conseguiu tornando-se assim em modelo institucional para a humanidade.

De facto, a Igreja encontra-se em diferentes contextos; foi a primeira instituição global quando os países nasciam e lutavam ou lutam ainda pela sua identidade regional; como tal, a Igreja tem diferentes rostos segundo os continentes e as culturas subjacentes, o que poderá originar diferentes práticas pastorais.
 
Francisco I também manifesta compreensão para com os gays de boa vontade que “não se devem condenar, mas pelo contrário ser integrados na sociedade”. As suas expressões espontâneas e palestras livres na missa matinal tornam-se motivo de observações teologais por parte de alguns prelados.

O Papa pretende a reevangelização do mundo. Até os seus críticos reconhecem nele grandes qualidades incontestáveis. Ele sabe olhar as pessoas nos olhos. Ao escolher a Casa Santa Marta (a casa de hóspedes do Vaticano) para residência preferiu o contacto directo com a realidade universal. O Papa revela-se à altura dos tempos e tem sido muito oportuno em iniciativas para as religiões no sentido de serem fiéis à sua tarefa primordial e dando também impulsos muito concretos para a política internacional: genocídio dos arménios, impedimento dos ataques dos americanos e do ocidente contra a Síria, relações diplomáticas entre Cuba e USA, apela para “não desprezar a Rússia”, e tem conseguido transparência na banca vaticana etc. 

Ano Santo da Misericórdia

Em Abril, anunciou um ano santo extraordinário, o Ano Santo da Misericórdia que vai de 8 de dezembro de 2015 até 20 de novembro 2016. O bem da igreja e das almas é prioritário. 

Uma igreja precisa de mística, doutrina e pastoral. As reformas na moral e na pastoral são precisas tendo muito em conta as assimetrias culturais e sociais das diferentes sociedades. A revelação divina acontece na Bíblia, na Igreja, na Comunidade e na História que vai sempre mostrando novas facetas da realidade global que é Jesus Cristo.

O Pontífice é servidor e não senhor da verdade, por isso não pode mudar a doutrina/dogmas, pode criar prioridades na forma de tratamento pastoral. Por isso, na sua bula sobre o ano da misericórdia acentua: a ”misericórdia é o caminho que une Deus e o Homem”. Misericórdia para quem merece uma pena é uma questão que na visão secular parece contraditória…

Bento XVI era um teólogo, Francisco é um pastor, a teologia permanece na tensão entre doutrina e interpretação e a pastoral segue as circunstâncias dos tempos e das idades. O que se faz e o que se crê não são a mesma coisa, a fé permanece embora a prática seja mais importante. A verdade é processo e o Papa tem a função de encaminhar as diferentes forças em direcção a ela. Francisco I esforça-se no sentido de tornar o espírito de Jesus mais visível e mais experimentável. Sabe que não é seu papel adaptar a Igreja ao gosto do tempo mas que a partir dele se torne experimentável o espírito de Deus. Esta será a sua tentativa.

Há pessoas que se sentem sempre indignadas com o que o papa diz. A indignação nem sempre é sinal de empenho e responsabilidade; hoje é, muitas vezes, uma forma fácil de se destacar e ser notado. Destacar-se perante alguém conhecido ajuda o “santo” ego. 

Alguns radicais e eternos insatisfeitos que procuram aproveitar-se do bem e do mal para danificar a Igreja apelam à venda de igrejas e obras religiosas para com esse dinheiro se ajudar os pobres. Esta medida encheria o estômago de alguns pobres por algum tempo mas o problema continuaria. “Pobres sempre os tereis…” (Jo. 12,1-9. A igreja oferece não só pão mas também cultura, arte onde as pessoas encontram paz, conforto e meditação (Não só de pão vive o Homem!). Imagine-se a presença e o contributo contínuo da Igreja para o património cultural dos povos. (Uma instituição sem memória não comporta o futuro). Nas igrejas podem reunir-se os pobres e os que sofrem do frio da sociedade; a Igreja é também o seu porta-voz. Os templos e as obras religiosas são também elas as mãos da natureza, de cidades e aldeias e do povo crente a apontar para a transcendência, a apelar para a verticalidade num mundo cada vez mais horizontal e massa inerte. A expressão espontânea brota do coração e transmite o calor do amor, a expressão da inteligência reflectida espalha a luz do amor. O amor guarda espaço para a pobreza consciente e interior que se preocupa com o bem estar material e espiritual da humanidade. A pobreza espiritual é a maior causa da pobreza material. Precisa-se de uma rede de pessoas de boa vontade. O Pontífice trabalha no sentido de uma utopia que quer um mundo melhor, ao contrário das ideologias que prometem um mundo perfeito. Fronteiras e limites devem ser mantidos apenas como as membranas que ligam os órgãos do mesmo corpo.

2° Sínodo em Roma

Em outubro deste ano realizar-se-á o 2° sínodo em Roma. Prevê-se uma forte luta entre a defesa da tradição da doutrina da Igreja sobre a família e os que seguem o coração das pessoas que aceitam que divorciados que se encontrem na situação de segundo casamento civil possam frequentar os sacramentos. Aqueles argumentam que a Igreja não deve submeter-se aos caprichos do mundo. Entre eles, o cardeal Raymond Burke e vários cardeais africanos e da europa de leste e da Itália receiam que Francisco mude a praxis da doutrina do matrimónio. Sem ser necessário mudar o dogma chegar-se-á a um consenso entre teóricos e pragmáticos. A doutrina fica a mesma, tal como acontece nos Estados em parte com a Constituição mas que se usa das leis para adaptar a constituição à situação concreta. Assim se responderia à necessidade da dogmática (lei fundamental) e de uma pastoral (aplicação da mesma no concreto). 

De facto o matrimónio dá-se muitas vezes numa situação de conhecimento e consciência diferente daquela que a realidade depois vem a mostrar; chega a haver casamento mas sem sacramento, apesar da liturgia realizada. Há doenças que um dos parceiros pode trazer consigo que não permitem uma verdadeira relação a nível interior e exterior. Para isso o recurso à anulação do casamento, por falta das condições iniciais necessárias, deveria torna-se num instrumento mais normal. Muitas pessoas trazem nelas doenças psicóticas (ou maldades) escondidas que só o convívio do dia-a-dia vem revelar e podem impedir o desenvolvimento espiritual e levar ao sofrimento dos parceiros a vida inteira.

Violência doméstica pode ser motivo para separação

O Papa Francisco tem compreensão para a separação no casamento em determinadas circunstâncias. “Certamente também há casos em que a separação de consortes se torna inevitável. Às vezes é até moralmente necessária”. Quando disse isto referia-se especialmente aos casos de violência doméstica, opressão do parceiro mais fraco ou de crianças pequenas.

Certamente um assunto muito complicado mas o “Casamento” não pode ser argumento de justificação de arrastamento de casos de violência repetida ou de impedimento de desenvolvimento individual e comunitário. No caso de matrimónios católicos há um instrumentário muito adequado que deveria ser mais utilizado e que constitui no recurso ao pedido de anulamento do matrimónio. Os episcopados deveriam ser mais receptivos e rápidos na decisão sobre pedidos de anulação. Por vezes faltam já de início as condições necessárias para a efectivação do sacramento. 

Também Jesus comparou o Reino dos Céus a um reino em que o rei fez o convite a muita gente para a boda de casamento do filho; muitos convidados não vieram e então ele convidou todo o mundo, bons e maus (Mateus 22:1-14). De facto a Igreja não se reduz a um povo eleito ou a uma cultura, por isso Jesus convida todo o povo a entrar no seu reino.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
In “Pegadas do Tempo” www.antonio-justo.eu

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