Lisboa, dezembro de 2024. No Parque das Nações, onde a Expo outrora prometeu um mundo sem fronteiras, ergue-se agora um cubo de vidro fumado. Dentro, cinco pessoas sentam-se à volta de uma mesa redonda; não há cabeceira, mas o poder sabe sempre onde se sentar.
No centro, um ecrã projecta uma fotografia a preto e branco: homens de uniformes diferentes, chapéus de aço postos de lado, trocam cigarros num terreno de ninguém coberto de geada. O som de Stille Nacht, em alemão e inglês, preenche o espaço, numa gravação memória de 1914. A voz arranha-se na gravação antiga, mas ainda se ouve o impossível: inimigos a tornarem-se homens.
Catarina é a primeira a falar. Tem sessenta e tal anos, cabelo grisalho preso num
coque frouxo, mãos que já lavaram demasiadas feridas. Trabalha numa IPSS no
Martim Moniz. A cruz que traz ao peito é de madeira barata.
"Eles ouviram qualquer coisa naquela noite. Uma coisa que não estava nas
ordens, que não vinha dos generais. Vinha de dentro, da gruta do coração. Cantaram e lembraram-se de que,
antes de serem soldados, eram homens, filhos, pais, irmãos." Catarina faz
uma pausa. "Hoje, o Natal é o Continente a bombar músicas em Dezembro. A
paz é um anúncio da EDP. A voz do poder aprendeu a falar mais alto do que o
coração. E nós? Continuamos a mandar os nossos miúdos morrer longe de casa,
agora em missões em defesa da guerra dos outros."
Tomás Almeida, general reformado, agora é consultor de segurança (que é como
quem diz: vende medo por medida), acende um cigarro eletrónico. Sopra vapor para
o ar, nem o fumo é sério.
"Bonito, Catarina. Muito bonito, esta de sentimentos. Mas aqueles soldados
podiam ter perdido a guerra naquela noite. A paz verdadeira não se canta,
constrói-se. Com força, com fronteiras, com quem está disposto a
defendê-las." Com decisão, aponta o cigarro para o ecrã. "São os
fortes que determinam os períodos de paz. Aquilo foi indisciplina. Hoje temos
drones, vigilância, psicólogos militares. Garantimos que os soldados não
fraternizam com quem deve ser abatido."
Elias é metalúrgico da Lisnave. Tem mãos grandes, nós nos dedos, olhos pequenos,
mas atentos. Representa o sindicato na comissão europeia dos trabalhadores do
aço.
"O senhor general vê indisciplina. Eu vejo outra coisa: homens que
perceberam que estavam a ser enganados. A ganância é sempre a mesma; os ricos
mandam, os pobres sangram. Ontem foi na Jugoslávia, no Afeganistão, hoje é na
Ucrânia, amanhã é em África, mas o patrão é o mesmo: o lucro. Os mesmos que
hoje usam o PIB, suado pelo povo, para comprar morte, em vez de semear vida. E
se pegássemos nesse dinheiro todo das armas e o metêssemos em hospitais? Em
escolas? Em salários que dessem para viver?"
Ao lado dele, Leonor, de trinta e poucos, jornalista livre que já
não acredita em redações, mexe no tablet. A cena de 1914 ganha vida, os
soldados movem-se em câmara lenta,
partilham chocolate, sorriem.
"Sim, eles foram enganados. O ódio foi a ferramenta; disseram-lhes: 'Nós
somos os bons; eles, os maus'. A mesma narrativa corre hoje, General, nas suas
narrativas estratégicas. E se, em vez de instrumentalizar o povo para a guerra,
o instrumentalizássemos para a paz? Em vez do serviço militar obrigatório, houvesse
um serviço social obrigatório em que cada uma podia exercer o seu serviço onde
a necessidade o chamasse. Um ano a construir casas, a ensinar crianças, a
plantar árvores. Um ano a conhecer o 'inimigo' antes de o matar. Aprender a construir
pontes, não trincheiras, a cuidar da terra e não arrasá-la. A voz do povo,
quando livre do veneno da propaganda, é a voz de Deus. E Deus, naquele campo
gelado, cantou, Noite feliz...”
Tomás riu-se, com um
som seco.
“Deus? A voz do povo é
volúvel, emocional. Precisa de direção. Sem divisão, sem o “nós contra eles”,
não há coesão nacional, não há identidade a defender. O diabo, como dizem, é
aquele que divide. Mas às vezes, a divisão é necessária para afirmar quem
somos.”
Catarina ergue-se e a sua sombra projetava-se sobre os soldados holográficos.
“Não! O diabo é exatamente aquele que divide para se afirmar! Deus une no
canto, no reconhecimento do outro como irmão. Aquele momento de 1914 foi uma
brecha no projeto diabólico da guerra. Os comandantes, sim, esses instrumentos
do poder distante, apagaram-na. Proibiram a paz. Porque a paz verdadeira
desarma os poderosos.”
A quinta pessoa não falou ainda. Rui é historiador, apenas observa. De
cabelo desgrenhado, óculos tortos, silêncio de arquivo, representa a memória. Rui
toca no tablet e o ecrã muda.
Agora vêem-se telegramas: "Esta fraternização é traição."
"Qualquer oficial que permita contacto será julgado." E depois,
imagens de 1915: a lama, os mortos, o gás mostarda a devorar pulmões.
Ninguém fala, um silêncio pesado cai sobre a sala!
Elias rompe o
silêncio, com a voz rouca de tabaco e fábricas:
" Alemães,
ingleses, franceses enterraram os mortos juntos, com as próprias mãos.
Reconheceram-se ao aceitarem a
humanidade comum que os motivava a agir assim. É esse o caminho: Nivelar as
trincheiras da Ucrânia, da Rússia, da Europa inteira, e sobre elas erguer
torres de paz. Fábricas de esperança.”
Leonor inclina-se
para a frente:
"Mas porquê a guerra, afinal? O espírito de 1914 não morreu. "A
guerra destrói a esperança antes mesmo de destruir os corpos. Mata o futuro
antes de matar as crianças."
Rui mexe de novo no tablet. Aparecem imagens de agora: manifestações a favor da paz, voluntários de nações inimigas ajudando civis, jovens de ambos os lados de uma fronteira imaginária a plantar árvores juntos. São fragmentos, pequenas tréguas natalícias invisíveis para os grandes noticiários empenhados em justificar a cultura bélica.
Catarina fecha os olhos e começa a cantar, baixinho:
"Noite feliz, noite de paz..."
A voz é frágil, cansada, mas não quebra.
Tomás olha para ela. Quer dizer qualquer coisa, mas não diz. Elias murmura a melodia. Leonor sorri, com os olhos marejados. E Rui, sempre calado, move os lábios.
O Historiador aumenta o volume do canto original de 1914. As duas canções, a do passado e a do presente, entrelaçam-se, criando uma harmonia estranha e comovente. Por um instante, as divisões ideológicas parecem trincheiras a serem aterradas.
A reunião não chega a lado nenhum. As decisões de guerra seguirão o seu curso nos corredores do poder, enquanto o povo não conseguir ter Voz. As armas continuarão a ser vendidas. As guerras terão financiamento. Os discursos inflamados justificando a guerra continuarão a correr nos meios de comunicação e nas redes sociais como veneno doce.
Mas naquela sala, durante três minutos e quarenta segundos, uma verdade ressuscitou: a paz não é um tratado. É um canto: Noite feliz, Adeste Fideles!
É um canto que nasce onde as ordens não chegam e que reconhece no rosto do inimigo o mesmo medo, a mesma saudade de casa, a mesma fome de sentido.
O ecrã apaga-se. A sala fica vazia.
Mas lá fora, no Martim Moniz, um grupo de jovens, portugueses, brasileiros, guineenses, angolanos, ucranianos, russos e iranianos, acende velas. Cantam “Noite Feliz” em quatro línguas ao mesmo tempo. Era um “Noite Feliz” um pouco desafinado, imperfeito, mas sinal de uma imperfeição redentora. É pouco, mas é começo.
A paz é o acto de resistência através da voz humana que se recusa a calar. Resistência pressupõe hombridade e preparação para não se deixar arrastar pelo vento ciclónico militarista que parece até arrancar e arrastar os “cedros do Líbano”.
Dedico este conto:
Ao meu país, que já foi império e hoje mal é
casa.
Aos que cantam quando mandam calar.
Ao Natal que ainda pode vir.
António da Cunha Duarte Justo
Lisboa, Inverno de 2024
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10552
(1) A Trégua de
Natal de 1914 foi um episódio verídico e espontâneo da Primeira Guerra Mundial,
onde soldados inimigos (alemães e britânicos/aliados) cessaram hostilidades em
partes da Frente Ocidental.
O evento começou na véspera de Natal, quando soldados alemães decoraram suas
trincheiras com velas e cantaram "Stille Nacht". Os aliados
responderam cantando "Silent Night" em inglês. Encorajados, ambos os
lados saíram desarmados para a "terra de ninguém", onde
confraternizaram, trocaram presentes (como cigarros e comida), enterraram seus
mortos e até jogaram futebol improvisado.
Apesar de ser um poderoso símbolo de humanidade, a trégua foi isolada e única
daquele primeiro Natal de guerra, não se repetindo nos anos seguintes devido à
proibição dos altos comandos. Seu registro histórico é sólido, baseado em
cartas, diários e relatos dos próprios soldados.
Em outubro de 2024, após milhares de mortos, a guerra na Ucrânia entrou numa
nova fase e no que os analistas descrevem como o momento mais perigoso até
agora. Esta preocupação que angustia o meu espírito e espíritos atentos
motivou-me a fazer este conto.


Sem comentários:
Enviar um comentário