Sim! Eles, os da administração da Branca (e de quantas Brancas há por esse mundo fora), os eleitos arboricidas do sítio, numa acção de golpe baixo, mataram os sobreiros centenários, lá ao lado do cemitério. (Na sorte destes sobreiros está o destino de tanta árvore maltratada e desconsiderada por essas cidades fora!) Sem piedade, envoltos no manto da indiferença geral, mandaram arrancar as árvores em cuja copa o amor e a admiração de muita gente pendia. Não os deixaram morrer de pé, aqueles monumentos solitários testemunhos da arboridade, da personalidade na paisagem. Morreram por um motivo ignóbil; para darem lugar à calidez do cemitério, e assim deixarem de ser uma provocação à morte e ocasionalmente oportunidade de sombra para visitantes.
Na cabeça o corta-relva
Sim! Lá na Branca, para deixarem os mortos na torreira, cortaram os sobreiros. Assassinados pela calada da noite, não lhes valeu a menção de protegidos por lei, nem sequer depois a recordação num jornal local, embora eles fizessem parte da imagem da Branca. Morreram incógnitos tal como acontece à relva humana. Deles só resta na paisagem a sua ausência e o sentimento ferido de quem tem respeito pela natureza!
Não, não quero ficar prisioneiro da consideração, no respeito pelos desrespeitadores.
Eles, sem vida no cemitério da administração administram a morte. Mas, não têm culpa, não sabem o que fazem! A ignorância mata muitos inocentes principalmente quando as instituições trazem o corta-relva na cabeça!...
O dia a dia e a administração deram-se as mãos perdendo a relação com a vida, com as plantas. De tanto olharem para a mata já não vêem as árvores, cada uma das árvores; chega-lhes a ideia delas. São pessoas estudadas, cientistas, arquitectos, paisagistas, doutores: chega-lhes a ideia. Mataram o espírito da mata na árvore. A ciência, a função estragada já o não vê, usa os óculos da biologia ou os da economia. O olhar administrativo, científico não desperta para a vida para o espírito, ele divide, ele mata, assassina.
Para certa gente aqueles sobreiros eram de tal modo elevados que constituíam uma afronta à igualdade, ao moderno! Querem ver as pessoas a olhar para baixo, para o cemitério da vida! Uma árvore aponta para o céu tornando-se um perigo, uma contestação do ordinário da vida, uma exigência. (Outros também nas querem desenraizadas para que as pessoas de tanto olhar para cima tropecem na vida…). O espírito do tempo transmite uma mentalidade em que cada vez custa mais às pessoas olhar para o que as supera, como se isso constituísse um atentado à sua personalidade. Chega o olhar “clínico”, o olhar matreiro para se desenrascar da vida!
Este olhar científico, desintegrador, recebemo-lo com o leite materno citadino. A mentalidade da ciência, que outra coisa não é que o pensar da igreja secularizado, vive da classificação. A igreja classificava as árvores de criaturas, a ciência classifica-as de plantas. Assim as desenraízam da terra e impedem o olhar para o céu, a união entre céu e terra. Eles querem-nos apenas produtos, produtos desenraizados comerciáveis na praça pública da economia global.
O nosso amor elementar pela natureza perde-se e com ele aumenta o nevoeiro científico reduzindo tudo a ideias, a abstractos. No templo da escola ensinaram-nos a classificar as árvores como plantas, madeira, etc... Não ensinam a aprender a realidade, querem é cabeças cheias de imagens da realidade. Eles enganam-nos dizendo que amor é sentimento, romantismo sentimental. Mas não amor é relação, é acontecer sem passar pelo altar do intelecto onde os cientistas realizam o sacrifício…
Instrumentalizamos as árvores classificando-as à nossa maneira. Roubamos-lhes assim a alma. Na biologia classificamo-las de plantas, na economia de madeira, na teologia de criaturas de Deus. Cada um usa e abusa delas à sua maneira desenraizando-as da realidade que é a-perspeciva.
Acesso à realidade através da poesia nela inerente
Sim, o verdadeiro homem também acaricia as plantas, não as reduz a árvore de natal ou a lenha para queimar!
Aquele que tiver acariciado uma árvore e falado com ela já não sacrificará árvores sem mais. Quem ama a árvore, gosta da mata, ama o mundo. “Quem não ama o mais pequenino dos mais pequenos não entrará no reino dos céus” recorda-nos o sermão da montanha. Este prega a devoção do mundo porque sabe que nele mora a poesia e esta é a que torna o ser mais humano, isto é ajuda-o a descobrir a sua verdadeira relação. Religião e ciência deveriam inclinar-se e alimentar-se da poesia que repousa na outra lógica e na devoção do mundo. Então o Homem tornar-se-ia adulto e como tal portador do mundo em si. Perder-nos-íamos para nos encontrarmos nele e viveremos todos na amizade manifestada na experiência da relação. Então, sem medo, poderemos perder-nos e encontrar-nos no mundo da árvore e assim entrar na ressonância do amor do mundo universal trinitário.
Então tornar-nos-emos conscientes da desafinação dessa ressonância que deixa morrer a árvore, num mundo desafinado pela turvação da relação científica, económica ou teológica que troca a relação com a árvore pela relação com uma ideia dela.
Na base da turvação (e no nevoeiro científico e religioso) está a miopia do banal. O segredo do negócio está no facto de, a todos os níveis, tudo ser subjugado ao hábito, ao normal, ao ordinário factual. O ordinário quer tudo subjugado, tudo sacrificado à ordem da rotina gratificante do hábito castrante. A nossa ordinariedade reduz tudo ao preceito do pragmático ordinário. Aí não há lugar para o segredo, para o mistério. Ao eliminarmos o extraordinário da vida, o insólito, matamos o mistério e ao matarmos o mistério começamos com a eliminação do espírito das árvores para depois passarmos ao extermínio do Homem. O credo da normalidade, do ordinário, do tal real e factual, não tem limites conduz-nos à banalização total à perspectiva niilista. O niilismo do dia a dia torna-se niilismo diário no culto do vulgar, do banal! O credo niilista anula, destrói, é o último acto da ciência na sua fábrica de cadáveres. Não querem ninguém a olhar para o céu, só aceitam uma perspectiva, a da terra. Da árvore conhecem apenas a madeira, do ser humano o corpo: o uso, só cadáveres! A existência do animal é reduzida ao conceito carne, como o de árvore a lenha ou celulose. Tudo não passa de material na banalidade do dia a dia. Tudo é ordinário, o culto da banalidade não permite a festa, o outro tempo, a conexão das coisas.
O mistério da vida é o propulsor do desenvolvimento
A banalidade é alérgica ao mistério, por isso desconhece a vida, é alérgica a perguntas. Na ilusão da luta contra o mistério destroem a vida, roubam-lhe a alma. Colocam tudo na vala comum da massa. Os mais consequentes com a sua ideia tiram-se a vida a si mesmos, talvez confundam o carácter purificador dum determinado niilismo para o transformarem em credo absoluto. Chega o fascínio das ideias, não há lugar para pensar! E assim, damos os nossos passos de ideia em ideia, na auto-estrada das ideias sem tempo para notar a vida ao lado!
O mistério é o único legitimador da pergunta. Quem acabar com ele abdica de pensar, acaba com a vida. Quem encalha no mundo material só terá a resposta do não sentido porque nesse porto já não há lugar para perguntas. Mas a pergunta é que faz o homem e esta provém do mistério, a realidade de que o Homem é formado. À primeira vista um labirinto!...
A mesma turvação condiciona o espírito do ser religioso e do ser científico na sua capacidade de apreender a realidade. O tal espírito banal de semana, de vida masturbada, de vida parasita.
A árvore é relação entre céu e terra visível na analogia das raízes e das folhas. Não deve ser reduzida a mero objecto, a uma ideia. Se não desmistificarmos a ciência, reduziremos tudo a cadáveres. Então defrauda-se o ser, rouba-se à árvore a sua dignidade, a sua arboridade, o seu ser de templo de Deus.
Já passa da hora, mas talvez ainda seja tempo de recuperar o perdido. Seria sacrilégio continuar a reduzir a árvore a madeira ou a árvore de natal. Se aparece no Natal será para nos reencontrar com ela. Se aprendermos a encontrar o sagrado na árvore realizamos o mistério do encontro do céu e da terra. O caminho para o sagrado é o segredo do ser humano.
E aqui, no mistério humano é que a arboridade faz parte do humano. Então o encontro com a árvore tornará o Homem mais humano. O grande segredo do mundo, do Homem e de Deus é o relacionamento, tal como o segredo trinitário o equaciona: a relação absoluta, a individualidade do nós.
Naturalmente que o reduto niilista não suporta o sobressair das árvores. Estas superam-se nos arranha-céus a custo do estropiamento da humanidade em nós. Na arquitectura das cidades não se olha para as árvores. Os únicos sinais permitidos contra a horizontalidade vulgar é a verticalidade dos bancos.
Ao matar Deus a sociedade vulgar não aceita árvores sobranceiras. Um dia, na sua ilusão ideológica, o homem a criar terá de ter a mesma estatura para que a igualdade não seja questionada pela preguiça, pela vulgaridade. A individualidade e a diferenciação parecem ser difíceis de suportar!
Um modelo de sociedade relvado
As árvores sobressalentes, ao serem transformadas em ideias na câmara escura da razão, tornam-se símbolos do fascismo por isso é preciso cortá-las como se faz com Jesus e outras árvores crescidas. Os representantes da democracia ordinária (presente no consciente de todos os partidos), estão interessados em derrubar as árvores grandes. São as árvores fascistas e comunistas (religiosas ou ateias) que fazem sombra ou incomodam num mundo que se quer relvado! Em vez dos sobreiros centenários querem apenas arbustos ou erva rasteira, tudo em nome da igualdade, tudo ao serviço duma ideia da realidade, à margem da mesma. Aqui fascismo e democracia tocam-se!...
A mentalidade tecnocrata inclina-se ao arroteamento. No seu andar não notam a dignidade dos montes, das árvores; apenas lhes interessa o alcatrão e construções técnicas.
O domínio da banalidade não tem o campo visual da tradição e da alma encoberta nas coisas. Este espalha-se despercebido em todas as camadas sociais, tal como o espírito fascista se espalhou na época nazi.
O génio da destruição não suporta a honra de plantas e animais, não quer ninguém honrado (no máximo condecorado!). O espírito do tempo só aceita plantas rasteiras onde limpar os sapatos ou relva baixa para calcar!
Para se dar o passo do ordinário barulhento, do dia a dia ao extraordinário pacífico da bênção duma árvore, pressupõe-se uma mudança de mentalidades. Esta não pressuporia a ideia de construirmos cidades em que a arquitectura do planeamento urbano se orientasse pela altura das árvores. Bastaria um cheirinho desta ideia, já que para alguns o homem se define pelo pensar! Melhor será pensar, sentir e agir na unidade da dinâmica relacional.
António Justo
“Pegadas do Tempo”
António da Cunha Duarte Justo
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