A nossa democracia cada vez tem mais críticos e adversários. O trato dos valores culturais tradicionais que deram identidade e coluna vertebral à cultura europeia tem deixado muito a desejar. Dançarinos da ilusão não respeitam processos de desenvolvimento dos povos confundindo, por vezes, liberdade com libertinagem, cultura com ideologia, democracia com lobbies. O globalismo e a precária situação nacional, em que se precisa de menos estado, menos burocracia e menos impostos, questionam os orçamentos do estado e constituem uma incógnita na tentativa de manter o equilíbrio e a paz social. A economia social de mercado, o modelo europeu por excelência, é cada vez mais questionado atendendo às consequências dum liberalismo económico feroz sem respeito por Estados nem pelas necessidades humanas mais legítimas ao tender fugir à responsabilidade social.
Com a progressiva desmistificação dos valores e a sua desconexão superior assiste-se a um processo contínuo de afastamento da natureza e com isto dos biótopos naturais. Uma mentalidade microscópica e microbiológica é alérgica a superstruturas e torna-se cada vez mais incapaz duma visão de conjunto. Encontramo-nos em total processo de individuação até à dissolução da identidade. Um plasma entre os buracos negros! A responsabilidade torna-se imanente prescindindo da resposta. Um mecanicismo para lá de todas as engrenagens!
No processo de desmitificação de deus e da sociedade passou-se da obediência a Deus para a obediência à consciência e desta para a obediência à razão. Hoje a sociedade democrática com as suas forças racionalistas e materialistas tenta, em nome da razão e do bem comum, ultrapassar a razão para levar o cidadão a obedecer apenas à lei, isto é à vontade dos cidadãos. Ao fim e ao cabo chega-se a um estado em que o cidadão reconhece apenas o concidadão sem necessidade de usar a razão. Há o perigo dum pragmatismo “racionalista” absoluto. Na sociedade europeia já há muitos sintomas deste processo ao verificarmos a destruição de valores sem uma discussão séria sobre a herança cultural, a identidade e as novas necessidades éticas. Cria-se um abismo entre o passado e o presente onde apenas têm lugar os ardinas da praça opiados por tudo o que é novo, auto-afirmando-se pela contradição com o passado. Neste processo em curso a razão poderia revelar-se como um impedimento dos seus intentos… Nota-se uma tendência para uma transformação da democracia numa espécie de religião em que a razão se torna impedimento, tal como no Islão que exige a total submissão a Deus, ao sistema, independentemente da razão. Por fim, em nome do sistema mais sagrado os sistemas reduziriam o ser humano a súbditos duma estrutura. O sistema democrático pode cair, por vezes, na ilusão de ser auto-suficiente e autónomo. De facto, os cidadãos comportam-se responsavelmente, sem serem patriotas, independentemente de serem crentes ou agnósticos. Têm-se todos eles comportado de maneira bastante uniforme perante a lei. Até um crente Islão que, no interior, não pode acreditar nesta estrutura obedece. Isto cria a ilusão na democracia de que poderá sobreviver sem ter em conta a necessidade de transcendência inerente ao ser humano. O segredo do desenvolvimento e do progresso da civilização ocidental está na sua concepção linear e teleológica do tempo (concepção judaico-cristã), ao contrário da concepção cíclica fechada.
O Islão, no que tem de agressivo, obriga-nos a descobrir a missão civilizadora a que os europeus estão chamados e a uma discussão séria da mesma no respeito pela própria tradição. Para isso terá que reabilitar e reconciliar-se com a acção dos colonizadores purificando-a naturalmente dos excessos na consciência de que todos os povos e todos os seres humanos são irmãos. A democracia é uma forma de governo fruto da mundivisão cristã e só funciona quando se partilha a prosperidade como diz o filósofo Richard Rorty.
Com a crise de confiança no capitalismo liberal e na fragilidade das ideologias, cresce a insegurança na Europa, uma cultura cada vez mais sem tecto transcendental. A concorrência e o consumo não são suficientes para dar resposta aos problemas do futuro. As leis do mercado, a concorrência de mercados, ideias e sistemas parecem ser contraditórias ao globalismo. O seu fim é teoricamente previsível. A dianteira tecnológica e científica, a que obriga através da inovação, não será suficiente para manter a distância entre os povos desenvolvido e os povos em vias de desenvolvimento, na dinâmica que tem caracterizado a economia de mercado até hoje. Além disso o turbo-capitalismo é um sistema que embora ao serviço do desenvolvimento e da iniciativa privada vive da desigualdade, reflectindo-a, por outro lado. No após guerra o capitalismo europeu ajudava o estado social, hoje assiste-se ao processo da sua desresponsabilização desacreditando mesmo a democracia. A política parece desqualificar-se cada vez mais reduzindo-se mais a uma função subsidiária de tapa buracos que a economia cria. Os estados parecem não dispor de forças nem de instrumentos capazes de regular o capitalismo global. A democracia, se não intervir no processo de erosão cultural e económica, cada vez se tornará mais questionável e dará oportunidade ao terrorismo que tanto tolera. O terrorismo, hoje ainda bastante limitado aos islamistas, com a sua guerra de guerrilha poderá vir a pôr a democracia seriamente em perigo, o que significaria um retrocesso histórico de consequências irreparáveis. (A guerrilha das caricaturas de Maomé pôs bem evidente, através da reacção da política e do mundo intelectual, quem era mais forte, precisamente os terroristas).
Os furores do turbo-capitalismo criam grande insegurança na Europa e fomentam uma tendência populista, nos estados latino-americanos, em favor do socialismo atendendo a que este se apresenta como o único garante capaz de pôr cobro ao capitalismo ao querer regular a economia através da política. Paradoxalmente, na Europa os socialistas renderam-se ao capitalismo liberal, apoiam os egoísmos nacionais. Por enquanto os beneficiadores dos sistemas são as grandes nações e as grandes multinacionais. A classe média e operária estão a subvencionar o desenvolvimento da China no seu esforço de se tornar uma grande potência tecnológica. Um erro crasso das nações tem sido a destruição da classe média, aquela que torna grandes as nações. Quando a China puder levantar cabelo e as potencias europeias deixarem de equilibrar os défices internos com o capital vindo do estrangeiro através das suas grandes empresas então surgirá o grande momento da reflexão ou do recurso às soluções desastrosas do passado.
A única possibilidade que a democracia tem para se tornar credível é integrar o capitalismo não permitindo a sua autonomia completa. É obrigá-lo a contribuir de maneira essencial para o bem comum. A política deve acompanhar a economia e não se limitar a seguir atrás dela. O globalismo capitalista terá que ser acompanhado com uma política social global. Isto só poderá ter lugar através duma ONU totalmente diferente e com poder político global. O Estado não pode explorar desmedidamente o cidadão. Este já chegou ao seu limite. Para isso o Estado terá que se tornar mais módico nas suas despesas e terá de socializar mais a economia a nível de produção.
É urgente a união de forças no sentido de se valorizar a democracia. Seria ilógico que dois sistemas, o capitalismo e o comunismo, surgidos do cristianismo, se combatessem em vez de tentarem uma terceira via encetando forcas no serviço do ser humano. De facto tanto os que fundamentam a sua vida no evangelho como aqueles que fundamentam o seu dia a dia em teorias sociais estão por vezes mais perto uns dos outros do que notam. Torna-se urgente uma mudança de mentalidades e de estratégias.
António Justo
Teólogo e pedagogo
Alemanha
António da Cunha Duarte Justo
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