sábado, 17 de novembro de 2007

Futuro da Religião e da Sociedade

Atendendo a alguma crítica, que agradeço, feita ao meu artigo “Mística – O Futuro da Religião e da Sociedade” de 29.12.06 em que alguns comentadores relegando Deus exclusivamente para o foro subjectivo místico negavam competência à religião para falar do divino, pretendo acrescentar algumas considerações leves ao assunto começando com analogias. Na discussão não se trata de entrarmos num pensar sectorial e exclusivista. Temos que aceitar a pessoa e a sociedade, as instituições como dados necessários a melhorar, restaurar segundo a divisa: “Ecclesia semper renovanda”. Toda a discussão da crítica pela crítica é irresponsável e autocrática. A instituição e o indivíduo precisam dum factor comum que lhe dê identidade e continuidade. Ou será que o nosso irrealismo chega ao ponto de negar o humano pelo facto de ter a gene que lhe dá continuidade? Trata-se de aprendermos a grande lição da natureza. Nela nada se exclui, tudo se transforma.

Não conheço melhor imagem de Deus do que o Homem (o ser humano). E a melhor imagem do ser humano é a sua palavra., a palavra actuante.

Tal como o Homem é a sombra de Deus, a ideia é a sombra do objecto. A ciência está para Deus como a forma para a matéria.

Assim a negação de Deus implica a negação da filosofia tal como a negação da palavra implica a negação da noção de realidade, a negação do Homem. O Logos, a palavra, o conceito, mantém uma relação com o objecto que lhe deu o ser.

Se partíssemos do pressuposto que a pedra é vida ou espírito materializado, certamente que não poderíamos dar o passo seguinte em frente na perscruta da realidade se a reduzíssemos à pedra como a forma da vida (a sua oportunidade). Agimos semelhantemente ao aceitarmos como única forma de acesso à realidade a dialéctica. Provocamos o mesmo curto-circuito ao materializarmos processos históricos em cadáveres conceituais ao serviço duma ideologia que em nome da vida se alimenta de imagens mortas, das sombras da vida passada ou futura.

A religião católica está bem consciente da revelação bíblica quandonela Deus afirma: “tu não deves fazer nenhuma imagem nem forma de Mim”. Este foi o grande papel judaico e cristão da desmitização de Deus e continuará a sê-lo. Naturalmente que a religião tem um carácter esotérico e outro exotérico. O facto de Deus ter proibido ser adorado sob qualquer forma ou imagem de Deus “quer do que está no céu quer do que está na terra” não quer dizer que Ele o que dá forma a tudo, embora imperscrutável, não esteja presente na forma do mistério. Para o cristão todo o falar de Deus é sempre o seu falar humano. No falar de Deus usamos imagens tal como no expressar da própria vida, dos próprios sentimentos se utilizam palavras, imagens condicionadas pelas nossas potencialidades. Não seria adequado identificar a expressão com a “ coisa em si”. Uma coisa é a dor em si e outra coisa o seu conceito expresso na palavra dor. Seria ingénuo e desumano querer eliminar os antropomorfismos da nossa realidade humana.

O antropomorfismo, o símbolo, a imagem faz parte da religião como a palavra faz parte da língua falada. O facto de não podermos identificar a ideia, a palavra com o objecto que a ideia interpreta não podemos renunciar à palavra pelo facto de ela não ser a realidade mas apenas a ideia dela.

O ser humano não pode atingir a Realidade, a Verdade de forma imediata mas apenas mediatamente. Seria pensar em curto-circuito se exigíssemos do ser humano outras formas de abordar a Realidade que não através dos sentidos e das capacidades que nos estão à disposição. O ser é mais do que o que os sentidos possam apreender e expressar dele; para lá do ser criado”existente” há o transcendente, o mistério. Nós estamos condicionados a viver na esfera espacio-temporal na tenção entre a Realidade e a Ideia ou experiência que possamos ter dela. Já Platão nos chamava a atenção à sua maneira para não identificarmos o mundo da realidade com o mundo das ideias. Há muito sofrimento no mundo pelo facto de vivermos no mundo das ideias e ideologias que nos impedem de ver a realidade.

Se conseguíssemos a identificação existencial da ideia com o objecto alcançaríamos a felicidade, tornar-nos-íamos divinos. Sombras desta realidade são já os tais momentos místicos.

Quem ridiculariza os antropomorfismos e segue este caminho para atacar a religião ou para ridicularizar a teologia não percebeu nada do aspecto esotérico da realidade, da religião, isto é, reduz a realidade à linguagem não se dando conta da correlação – distinção entre ideia e objecto, nem tão-pouco da dialéctica subjacente. O ser do Homem é determinado pela palavra. O falar humano será sempre antropomórfico o que religiosamente inclui a consciência do discernimento! A distinção entre “Deus” e a “palavra de Deus” são pressupostos elementares, tal como é elementar a distinção entre o objecto e a ideia que o descreve! A realidade, Deus também não pode ser reduzida a uma experiência subjectiva, por mais iluminados ou esclarecidos que possamos ser individualmente.

A identificação da palavra de Deus com Deus na pessoa de Jesus Cristo, é percebida como mistério. O inexprimível nome de Deus (ser de Deus) expressa-se (toma forma) em Cristo. No processo trinitário manifesta-se a relação completa, a Realidade actuante. Isto porém já assume o carácter místico do cristianismo, a que se não chega sem uma caminhada.

Na proibição bíblica de se fazerem imagens de Deus já está bem subjacente a experiência dum Deus vivo para lá das imagens, para lá da percepção ou dos conceitos. Assim distingue-se entre o aspecto cúltico e o aspecto litúrgico. No culto foi sempre proibido a forma, a imagem de Deus. Aí há realização, acontecer e não mera recordação, projecção ou introspecção. A proibição por Deus de O representar sob qualquer forma não quer dizer que Ele, aquele que dá forma careça de forma. Na tradição bíblica, babilónica, grega e romana encontra-se a ideia de Homem como a “imago dei”.

Na Bíblia só a voz de Deus pode constituir a ponte com a transcendência com o consequente problema de também o ouvido ser sensorial. “Deus é indescritível por palavras” diz Isaías, 6. Deus é puro espírito e portanto sem corpo e sem forma. Os antropomorfismos mantêm sempre o seu carácter metafórico não excluem o espírito incorporal divino. Ele permanece como o outro, o termo comparativo vizinho. As expressões bíblicas referem-se mais à acção de Deus e não ao conceito. Quanto ao aspecto conceptual, os especialistas eram os gregos!

A tradição cristã conhece duas vias especiais na abordagem de Deus, além de outras: uma via dá-se através da palavra, da revelação, procurando assim ascender à transcendência; a outra é a via da experiência mística, através da experiência de Deus imanente.

Interessante é o facto de, segundo a Bíblia, Deus ter proibido imagens cúlticas de Deus, tendo criado o homem à sua imagem e semelhança. A única imagem de Deus passa a ser o Homem. Deste modo já se diz muito sobre o ser humano, a realidade e a verdade. Além da procura e do sentimento de se estar a caminho tudo permanece mistério. Querer materializar a realidade, a verdade numa opinião, numa sentença seria meter o carro à frente dos bois.

Para lá das definições filosóficas de Deus como o “sou o que sou” e do Homem como “penso logo sou” de característica mais helenista há muitos caminhos que levam a Roma. Entre outras vias do reconhecimento poderíamos adiantar “sinto logo existo”, “actuo logo existo”, “relaciono-me logo existo”. De novo entre Deus e o Homem, entre a realidade e o Homem, a “imagem”. A imagem da imagem é proibida de adorar imagens da “imagem”. Uma relação como luz e sombra. Aí está a semelhança. Assim a proibição das imagens tem a ver com a necessidade dum ser sujeito dum ser relação. O fundamental é o entrarmos em relação e não nos ficarmos pelos conceitos que são quando muito sombras da realidade que nos podem indicar o sentido da caminhada.
António Justo.
António da Cunha Duarte Justo

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