Na pista das falhas do 25 de Abril!
Portugal sofre de mal crónico geral. As crises sucedem-se de geração em geração. Já Alexandre de Gusmão dividia os portugueses em dois grupos: Os que esperam pelo Messias e os que continuam a esperar por D. Sebastião. Com a decadência que se seguiu aos descobrimentos perdemos também de vista o realismo característico da nossa antiga sociedade dos concelhos em que homens bons e os vizinhos se dedicavam directamente à resolução dos problemas do concelho numa atitude preparadora de futuro, que culminou no apogeu da nação no século XVI, sublimemente cantado por Camões.
Com a emancipação burguesa económica e intelectual a cultura desgarrou-se da vida. Perdeu-se o sentimento ecológico, o espírito da nação. Este país não nascera da raça mas da vontade. Foi o patriotismo, a vontade, que fez dos portugueses a primeira nação europeia com um rosto próprio: um povo unido que não perdera da memória histórica o império romano e conseguira manter a herança goda e uma ligação romântica à terra (p.ex. nas Cantigas de Amigo). Nesta tradição coadunava-se a ligação à terra com a visão católica universal, a vontade ligada à organização concelhia com as freguesias, o que é específico português. Longe das contínuas convulsões dos povos europeus em luta, Portugal consegue manter vivo o espírito latino e até uma certa autonomia em relação a um espírito católico centralista. Recorde-se o privilégio do rito litúrgico bracarense. Enquanto que a Europa Medieval inicial era construída em lutas contínuas sobre as ruínas do império romano sofrendo duma amnésia em relação ao passado cultural, sob a influência dos ataques bárbaros e enquanto o génio latino e o génio germânico se debatiam, o actual Norte de Portugal vivia tranquilo, nem sequer os árabes conseguem impor a sua cultura.
Aquela saudade tão caracteristicamente portuguesa, radica na terra (aspecto ecológico) e no sonho que reflecte também a cor local das culturas que deram ressonância ao tal sentimento natural uma perspectiva universalista. Um sentimento próprio ao mesmo tempo naturalista e racionalista, simultaneamente politeísta e monoteísta, a ingenuidade e o requinte, onde coincide o romano, o godo e o árabe… Esse sentimento é como que um colectivo das ruínas do tempo (das culturas) cristalizadas na Saudade, um dos específicos da alma portuguesa. Os Portugueses foram no século XV os pioneiros na aplicação da grande descoberta – a descoberta da terceira dimensão - a lei da perspectiva (Leonardo da Vinci) que levou o Homem à descoberta do espaço (aos descobrimentos). Portugal conseguiu ser a expressão do espírito, a nova consciência.
A partir dos Descobrimentos, a dicotomia cultura-terra, capital-agricultura fomentou uma consciência de elite desenraizada que cultiva um certo eruditismo desprezador da terra, do povo simples e do trabalho. Investe-se um pouco numa cultura intelectual de subsistência. Este pouco e uma actividade mental submissa tornam-se suficientes para a auto-afirmação no dia a dia e perante um povo sem exigências. A natureza amena e mãe não parecem estimular o seu espírito que se refugia no divergir do mar infinito de costas viradas à terra.
Hoje, ainda mais do que em séculos passados, as elites da praça parecem usar o discurso como subterfúgio do pensamento em que a ideia continua ao serviço da forma. Os poucos pensadores que se têm são ignorados. Longe do “saber de experiência feito” e da reflexão, a nação continua no seu miasma geral do privilegiado saber teórico dogmático (sentimental) sempre submisso a tudo o que vem de fora. Este estado de dependência da autoridade exterior tem origem na amenidade do clima, na ingenuidade popular, na falta de realismo, de auto estima, de auto-consciência e na ausência de disciplina mental. Embora no estrangeiro, pude observar de longe este fenómeno durante 30 anos, na frequência das acções de formação para professores: de facto, ainda uma teoria mal tinha sido pronunciada num chamado país desenvolvido logo era experimentada irreflectidamente em Portugal. Projectos, sem a partilha de experiências, saberes sem convicções, a que falta a legitimação da experiência das bases, são levados a efeito, por um reduzidíssimo número de pessoas muito sábias, muito perto do poder político, mas a quem falta uma prática reflectida em função dum projecto de futuro coerente. A ausência duma política global de língua e cultura é sintoma, causa e efeito da mentalidade subjacente ao actuar ad hoc em causa, podendo-se transpor esta situação para os vários sectores da vida da nação, que, sem qualquer “agenda” sectorial ou nacional, apenas reage. É um Portugal que vive ad hoc, do momento para o momento, de acções para ir buscar fundos. Uma elite cultural portuguesa que parece reduzida à classe política encontra-se sempre de antenas viradas para o estrangeiro, aliena-se e alienando, sempre disposta a seguir-lhe as vozes, sem tempo para reflectir o próprio, incapaz de escutar a voz profunda dum povo, por isso mesmo reduzido a cobaia. Assim se continua a adiar o futuro no medo de edificar Portugal sobre os fundamentos do passado. Nas últimas décadas os ideólogos dos anos 70 constituíram uma referência demasiado vincada para a nossa sociedade. Estes, fiéis da “mudança da cultura” apostam mais na ideologia, na moda, do que no trabalho sério e no duradoiro.
Naturalmente que o que menos precisamos é dum Portugal retrógrado ou de um Portugal cobaia. A nação não pode andar sempre atrás do comboio da história nem tão-pouco pôr o carro à frente dos bois. Desastroso seria se continuássemos a ser os ardinas das ideias dos outros, os ecos do comboio que passa.
Vive-se mais do e para o crer do que do e para o saber. O saber parece continuar a estar condenado ao doutrinarismo longe do ser do homem e do povo. Também isto se vê confirmado na nossa História. Portugal precisa de um momento de reflexão. Seria fatal se o pensamento português, bem como o melhor do povo, fosse obrigado à dissidência, à emigração. O restauro da portugalidade terá de partir da vontade de querer mudar e da análise do nosso ser colectivo, dos nossos costumes e mentalidade. Não chega o espírito moçárabe.
Para se dar resposta à crise que domina os sectores mais relevantes da vida nacional não chega uma reforma nem uma revolução política. Também não chega olhar para a Europa porque dela parece interessar-nos, mais que a reflexão e as ideias, os seus erros. O 25 de Abril falhou em muitos aspectos porque se limitou só a uma revolução política conquistando apenas a rua. Uma revolução popular sem o povo. Este foi atrelado à coleira da ideologia mediante uma agitação colectiva inicial, seguindo-se depois a fatalidade do dia a dia na luta pelo pão. A revolução de Abril, justa nos objectivos, foi conduzida sobretudo por ideologias mal mastigadas, por mãos de mercenários estrangeirados que se apoderaram dos dinheiros públicos e da administração. Ao velho regime seguiu-se o novo. Portugal encontra-se depauperado e emperrado numa máquina de estado monstruosa e encalhado no turbo-capitalismo. Apesar da remessa diária de 6,2 milhões de Euros dos emigrantes para Portugal e de 8 milhões provenientes da EU a economia portuguesa encontra-se de rastos. A cronicidade da doença portuguesa transcende os seus regimes políticos. Tem sido uma constante ao longo dos últimos séculos. Não parece ser possível haver alternativa entre a apagada e vil tristeza do “honradamente sós” e a tradicional prostituição ideológica estrangeira ao serviço de interesses muito individuais e de clientelas. Constante na sociedade portuguesa tem sido o seu carácter de palco em que a crise é invariável e os mesmos actores se repetem ao longo dos séculos mudando apenas as roupagens das ideologias. Enfim, apenas se têm trocado os papéis num jogo de caracteres sem carácter próprio. Porque é que uma nação com um povo tão honrado e trabalhador e com uma cultura riquíssima terá de continuar a andar encostado? Outras nações mais pequenas conseguem mais. Não será também uma das causas a existência duma “burguesia vaidosa” seguidora de modas, sem tempo para a reflexão e para pensar, esgotada em accionismos e na política do dia a dia?
O povo tem sido, desde há séculos, reduzido a palco para os mesmos protagonistas, os traficantes de ideias e de “drogas”, os muitos auferidores de postos e de honorários. As honrarias e “confrarias” parecem viver da honra do povo. Todos se preocupam com o tratamento dos sintomas quando a raiz do mal está na maneira de ser do ser colectivo português, em cada um de nós portugueses, na alma de Portugal, e em especial na maneira de agir dos seus actores. Um tratamento sério dos nossos males exigiria, mais que placebos, uma reflexão cultural, política e histórica. Portugal precisa duma revolução intelectual e moral, duma mudança de mentalidades. De resto continuarão alguns beneficiados do sistema a viver da provisoriedade de falsos diagnósticos e das receitas ao doente; tal como no passado continuam a adiar o futuro.
Política ao serviço do capital – Inteligência nacional ao serviço da política
A ideologia e os seus oportunos tentam viver do que o momento dá e do conformismo individualista subjacente. Não acreditam na missão civilizadora da nossa cultura. Procuram instaurar uma cultura do provisório, subordinada ao consumismo ideológico e de produtos. Desestabilizam a moral popular apresentando apenas como alternativa moralismos ocasionais propícios para clientelas. Superficiais, destroem a consciência portuguesa. A nação não é tabula rasa e uma revolução responsável não pode ser contra a ordem, a disciplina e a justiça nem continuar a afirmar-se no relaxamento dos costumes ou na aposta em ideologias. Um tratamento adequado terá que começar por se preocupar com a identidade e a cultura portuguesas, com o seu espírito, superando o ditado do dia a dia e da ideologia multiculturalista que se orienta pelo bel-prazer arbitrário e pela mediania. A inteligência da nação terá que ressurgir no respeito pelo passado e na responsabilidade pelo futuro, não se pode deixar tentar pelos moralismos e pelo cantar das sereias ideológicas ao serviço de alguns. O nosso grande protótipo é Ulisses. A consciência da nação terá de ressurgir primeiro nos professores de universidade e nas personalidades da economia e da cultura. Estes não podem continuar a viver na dependência e atrelados à política na subserviência de postos. As universidades e as escolas terão de se tornar independentes e de se libertar dum burocratismo conservantista. Se os políticos ocupam cargos importantes passageiros e se perdem no momentâneo, pensando apenas em categorias de períodos de legislatura, o professor, o intelectual dá continuidade e perspectiva pensando em termos globais, em termos de passado, presente e futuro, em termos de povo e de nação com projecto e com uma vocação histórica. As elites, para o serem, não se podem limitar a administrar a miséria e a viverem dela. Já chega de mediania. Também a Igreja administra demasiado a rotina sem intervenção crítica, também a seu respeito... É preciso ter-se coragem, mesmo coragem para errar. Não chega uma sociedade de bem comportados. Precisam-se homens, mulheres com coluna vertebral de “antes quebrar que torcer” na abertura aos ventos do tempo sem a eles sucumbirem. Não chega a vontade de inovar! Esta tem de ser acompanhada da renovação e da restauração. É uma questão de se estar de serviço. O povo, a nação já esperam há muito! “Quem espera desespera” e o agir sem esperança aliena. Urge mais que uma “agenda” uma reforma profunda! Já no século XIX um português exemplar, um luso do nosso álbum, Antero de Quental, tocava na ferida portuguesa ao dizer: ” Esta reforma, tanto tempo adiada pela inércia e pelo egoísmo, impõe-se agora irresistivelmente”. Mudaram-se os tempos mas a mesma realidade permanece. O fim trágico de Antero é simbólico do acto de desespero dum povo que continua de desilusão em desilusão a não se tomar a sério, a emigrar.
Hoje não há coragem e a liberdade deu lugar à arbitrariedade. As pessoas simples e os intelectuais tornam-se cada vez mais iguais no medo e no cálculo. Assiste-se à socialização da vulgaridade. Esta é também implementada por uma TV sem programas que a transcendam e que transcendam o vulgar, numa sociedade à la “big brother”. Por onde andam os homens livres? Será que a nossa sociedade só produz dissidentes, adaptados e terroristas? Qual a nossa razão de ser como ser colectivo? Hoje as nações cada vez fazem mais lembrar rebanhos sem pastores em que cães, sem orientação, mantêm o rebanho junto sem objectivo nem destino. O fim e destino históricos dum país parecem estar limitados ao cheiro do curral que se reduz, por vezes, à súmula do cheiro da ovelha mais próxima e ao medo de eventuais ferradas caninas.
A cultura e a história continuam a ser instrumentalizadas no sentido de se fomentarem cidadãos adaptados, com hábitos e crenças ideológicas de trazer por casa. Da tradição só passa a interessar o político, o utilitário. A cultura da nacionalidade é relegada para o museu. Assim da cultura só interessam alguns lugares comuns e na falta de reflexão importam-se acriticamente do estrangeiro ideias oportunas, ideias tapa-buracos sem respeito pelo processo a elas inerentes.
No projecto de sociedade vigente só parece haver lugar para aplicadores, para prosélitos… O saber foi substituído pela opinião. Despe-se da história o manto da dignidade e do rigor. Faz-se dela uma disciplina, uma pedagogia específica para formar cidadãos à medida e reduzem-se os professores a aplicadores de didácticas ou a meros assistentes sociais. A História científica e crítica, como nossa memória, ajudar-nos-ia a melhor compreender o presente e a construir o futuro. Não chega só o presente, como querem alguns desenraizados. Este precisa da rampa do passado e duma alma que contenha nela o germe e a garantia do futuro. O nosso presente será o passado do futuro e este quer perspectiva. Dum passado à disposição só se recorda dele o ideologicamente utilizável, talvez as páginas escuras para assim se desviarem as atenções dos defeitos do presente ou se apanhar alguns incautos para a própria ideologia. Nesse sentido urge fomentar o respeito pela cultura nacional, como liturgia do dia a dia numa língua com valores, hábitos e mentalidade próprios. Esta situa-nos no grande contexto universal. A história universal, e a história europeia não poderiam ser explicadas sem a história portuguesa nem esta sem aquelas. Da cristianitas surgiu a nacionalidade, a consciência da nação e das nacionalidades surgirá a cidadania europeia, a cidadania dos direitos humanos que provêm da primeira.
Uma ideia universalista peregrina em muitas cabeças do “pensar correcto”actual reduz o futuro a um sonho com práticas progressistas numa estratégia de auto-afirmação pela contradição, numa atitude polémica (não crítica) contra o passado e na sua difamação fora de contexto. Estes seguem o mesmo equívoco no seu projecto de construção da sociedade nacional contra a família encostando-se à EU que se tem orientado mais por aspectos estratégicos e económicos contra os interesses dos povos europeus. A tomada de posição francesa contra o projecto de Constituição Europeia alerta para que não se esqueçam do povo e da sua alma. Para lá da moderna superstição do progresso terão que permanecer os ideais de fraternidade, liberdade e igualdade, na consciência que das ruínas das ideologias surgirão as melhores ideias e as melhores virtudes.
Socialistas e Conservadores necessitam de repensar a sua política e estratégias para actuarem na base dos valores nacionais cristãos e europeus. Não chega seguir servilmente a EU. Não chega a concentração nas leis do mercado como reguladoras da sociedade e do futuro. A classe política tem abdicado da sua responsabilidade de regular o capitalismo. A insegurança geral aumenta e manifesta-se num populismo antidemocrático já bastante notório na América Latina. Um capitalismo que não respeita a nação leva os povos a grandes convulsões sociais e tem como consequência final a socialização da economia de tipo dirigista. O furacão da globalização tem levado a sociedade a concentrar-se apenas no económico à custa dos valores de identidade do povo e em nome dum internacionalismo desalmado.
Seria um equívoco fatal continuar com uma ideologia internacionalista à custa do povo e da nação. É preciso criar o equilíbrio entre o internacionalismo e o nacionalismo. Para isso a economia de mercado tem que se tornar social e ecológica, tem que respeitar a pessoa, as regiões e as nações. Doutro modo desenvolver-se-ão extremismos de direita e de esquerda. O meio-termo seria o patriota por estratégia; o patriota que tem por casa a nação e por tecto o mundo. Este não é antiliberal mas também não põe a nação à disposição, nem se envergonha da terra. É um ecologista cristão (Uma qualidade bem portuguesa dos tempos da nacionalidade!). Sábio, reflecte as ideologias aferindo-as ao seu sistema cultural e não vice-versa. Neste sentido, Portugal precisa dum debate sério, para lá das trincheiras partidárias e das ideologias, sobre a identidade nacional e a sua cultura. O processo de socialização europeia é muito diferente do das Américas.
Baptizados no Douro para partir de Belém, do Tejo, à descoberta do mundo
Já passou a época em que um liberalismo e um socialismo envergonhados da nação podiam ganhar pontos na luta contra a pátria na luta por valores internacionalistas. Já é demasiado longo o tempo da difamação da nossa cultura e do cristianismo. Chega de quimeras dum progresso falso. Uma cultura em que os valores não exigem compromisso fomenta a criminalidade e os extremismos de direita e de esquerda. Uma cultura que só suporta ardinas, e valores menores, conduz ao desmantelamento dela mesma, à queda duma civilização. Produz deserdados e desenraizados.
Hoje quem está ameaçada é a pátria, a cultura da nação, os seus valores; falta-lhe um tecto transcendente e uma perspectiva. A cultura dominante de que somos portadores é um grande bem a preservar. A grande herança greco-romana, judaico-cristã, com o seu humanismo e um certo iluminismo, aos quais está subjacente uma imagem de homem e de sociedade com os inalienáveis direitos humanos, não precisa de ter complexos nem de se temer perante o futuro. Esta cultura civilizacional com a sua imagem de Homem e o consequente modelo político é única em termos comparativos mundiais tendo de tornar-se cada vez mais um termo de referência na relação com os povos. Naturalmente que terá de ser purgada dos egoísmos, dos exageros colonialistas e dum capitalismo desenfreado que instrumentaliza o ser humano. Uma casa não pode constar só de portas e de janelas. Uma sociedade aberta como a europeia precisa duma referência cultural sólida e sem complexos. Esta é a judaico-cristã, sempre a ser renovada, que integrou a cultura greco-romana e se aculturou no seio dos outros povos. Não pode aceitar-se que, num país ocidental, um pai muçulmano, por razões de fé, proíba a sua filha de frequentar as aulas de desporto. Um país democrático, que se declare pelos direitos humanos e pela igualdade entre homem e mulher não pode permitir isso legalmente. Uma consequência lógica seria a inserção de um artigo na constituição nacional, em que se declare a cultura nacional como um valor a defender e não à disposição.
Os pontos altos da nação e as festas populares terão que ser mais que actos de desobriga a nível de calendário. Estes actos domingueiros, como o festejo do 25 de Abril, politicamente usado, e outras iniciativas culturais terão de primar pela densidade de conteúdo em que acontecimentos, autores e personalidades celebrados deixem de ser usados apenas como bombos de festa ou objecto de discursos empolados sem uma relação com a vida actual, apenas na complementaridade de um pouco de Fátima, Fado e Futebol.
Há que redescobrir e consciencializar a essência do ser português e a nossa maneira de estar no mundo. Logo nos alvores da nacionalidade houve a defesa dos interesses regionais e a casa dos vinte e quatro onde poderíamos reatar tradições e purificar mesmo outras importadas. O espírito romano prevalecia em relação ao bárbaro. Para a nossa época já não chegam os profetas marxistas nem os ardinas do dia a dia, instalados por toda a parte. Não são suficientes os escritores que os nossos compêndios escolares promovem por vezes ao serviço do “pensar correcto” e do Zeitgeist. É preciso cristalizar autores e marcos centenários da nossa cultura, para que entrem na memória do povo e se tornem fontes de referência. Urge recuperar o tempo perdido, recuperar Portugal. A força da União Europeia dependerá da vitalidade das nações. Não são suficientes os mercenários bem pagos para a construção da EU embora também estes sejam necessários no processo de fomento da superstrutura.
Para a vitalidade de um povo não chegam alguns sentimentos patriotas ocasionais nem tão-pouco um código de valores razoáveis consolidados numa Constituição. Tudo isto é corpo apenas, a que falta a alma da nação que o modernismo tem desprezado. A cultura, a literatura, a ciência, o cristianismo e a arte constituem uma base e uma oportunidade para o reencontro. Portugal precisa de se reinterpretar porque tem andado à deriva. É preciso, na empatia com o passado viver o presente e assim construir o futuro, numa engrenagem que dê sentido e no diálogo com todas as culturas e nações recebendo e dando impulsos a integrar de modo específico por cada povo e por cada cidadão. Desenvolver a capacidade de se criar o novo na inter-relação pessoal, cultural, temporal e espacial. Neste sentido haverá também que redescobrir a tradição bíblica da dignidade humana e consequentes direitos de que liberdade, fraternidade e igualdade e são expressão.
Portugal não pode permitir-se o luxo de deixar o espírito português na dissidência, na migração ou nalguns actos folclóricos, por muito importantes que sejam. A migração bem como a juventude podem dar-lhe grandes impulsos. Tal como é comum na arte e na poesia, Portugal tem de reencontrar o inconfundível, o inconfundível do nosso povo e da sua história na realização dum ideal comum. Só na personalização nos realizaremos como pessoas, como povo e como nação. Dentro dum todo, cada um no seu enquadramento, com um panorama próprio de alma e corpo tem uma necessidade específica de realização e de salvação. Neste sentido, um apelo a estudiosos, artistas e a mecenas: fazerem uma fenemenologia, uma exegese e uma sinopse do ideário, do desenvolvimento e da praxis nacional portuguesa, nos seus diversos ramos, em relação e comparação com as outras nações, especialmente com os Estados Unidos da América, a França, a Inglaterra e a Alemanha.
Na Reconquista de Portugal continuar o Pinhal de Leiria, o espírito ecológico
A tradição cristã (greco-romana), a língua e o agir comum constituem a alma do ser português, uma alma não clerical, não jacobina, uma alma livre e aberta. No amor pela língua e na saudade do ser português viveremos o presente na construção dum futuro sempre diferente. Esta saudade porém tem de ser purgada dum sebastianismo, aquele resto árabe que nos impede de ver a realidade e conduz à tentação de se definir na contradição. Aqui terá também Portugal de se purificar dum anti-clericalismo primitivo, dum secularismo fanático e duma religiosidade meramente folclórica e tradicionalista. Não chega ser-se devoto numa prática religiosa que torna o cristianismo irreconhecível! Não se trata de viver na recordação nem no futuro mas no agora presencializador de passado e futuro teleológico. Isto exige uma sinergia de forças na convergência de todo o país. Para isso não se poderá poupar a religião, a pátria, o governo nem o povo. Tudo sem tabus, porque tabu só há um: o da dignidade humana de cada pessoa. Não estamos ao serviço de sistemas mas dum povo; só assim podermos situar-nos responsavelmente no mundo. Todos juntos, podemos reconstruir o nosso barco com as madeiras do pinhal de Leiria, a que não falte o mastro firme a que possamos amarrar as nossas velas e assim chegar a porto seguro. Mesmo de coração partido por tantas tempestades e incertezas não nos faltará o senso comum nem a coragem. A nação e o povo não merecem que os continuemos a imolar. Portugueses em Portugal e na diáspora são uma grande força que pode ser canalizada na construção honrosa duma sociedade mais humana. Neste momento em que o extremismo muçulmano parece determinar os títulos dos jornais e os sentimentos das pessoas, impondo-se pelo medo, mais se torna visível a acção civilizadora do cristianismo. Esta terá que ser renovada na descoberta do homem e do povo. O cristianismo foi o salão de entrada de Portugal e de todas as nações europeias na cultura ocidental e mundial. Ele é um bom exemplo de globalização e de continuidade, com altos e baixos. Trata-se de nos baptizarmos no Douro ousando uma vida nova, para assim chegarmos a Belém, à foz do Tejo na descoberta do mundo. Nas ondas do tempo, sem complexos, dá-se a resposta às exigências da vida desde a erótica mais vivida até à mística mais profunda, tal como faziam os nossos descobridores. Para isso é preciso voltar a descobrir a vontade, a vontade, o grande mastro que possibilita o ser e a sua viagem. Trata-se de desenvolver um modelo próprio de considerações do mundo que se transponham a si mesmas. (Não podemos continuar apenas a reagir, só abertos a modelos levianos não aferidos ao génio português). Na história, na literatura e no nosso povo temos um fundus, uma mina sem limites, um médium dos valores de portuguesismo e de universalismo. No tempo da dúvida, da incerteza, da alienação torna-se importantíssimo descobrir as questões mais relevantes do nosso tempo e centrar-nos nelas para reencontrarmos o vestígio da história do futuro. Esta repete-se continuamente. Não se trata só de dar resposta a questões de injustiça social, de emancipação ou de economia. A cultura portuguesa tem uma paisagem muito variada e típica na natureza, na história, na religião, folclore, tendências, hábitos e modos de vida. Portugal é um todo em que as contradições poderão funcionar como catársis dum povo a dar à luz. Por companheiros temos um Camões, um Quental, um Pessoa, um Cristo (também os Cristos abandonados) e tantos outros. É preciso reatar-se o fio condutor que esteve na base da formação e organização da nação, dos concelhos (homens bons e vizinhos) e tentar regenerar a sociedade portuguesa, como defendia já Alexandre Herculano, através da sua exigência de revitalização do municipalismo de inspiração medieval. (Hoje poderíamos fomentar a regionalização da política através da divisão de Portugal em três regiões). O estudo do espírito, da vontade e dos mecanismos que levaram à formação e ao auge da nação portuguesa poderá levar à descoberta do seu fio condutor e do sentido do carácter específico de ser português e a maneira de o concretizar. Só assim o país poderá ser governado pelo próprio país e não apenas por pessoas distantes num parlamento em que os deputados se submetem muitas vezes às coacções das Fracções, de blocos e de lobbies. Trata-se de voltarmos ao espírito dos “homens bons” guiados não apenas pela inteligência, mas provados pela honestidade e pela dedicação. Na altura em que o centralismo europeu se faz mais sentir é urgente fortalecer as regiões e estabilizar a política, livrá-las de compadrios e de qualquer servilismo partidário. Esta caminhada levaria a um redescoberta da natureza e a uma diminuição da ideologia que ao viver da cidade e para a cidade a favorecem em detrimento do campo, da província, em contradição com o espírito condutor dos “homens bons” e da “assembleia de vizinhos” medievais.
Nas condições reais concretas que nos são dadas resta-nos realizar a felicidade. Por vezes sob a luz vestida de melancolia como nos é bem próprio na nossa saudade. Saudade dum futuro que nos vem duma realidade vivida. Apesar dos tempos difíceis em que vivemos não nos falta a vontade de viver, de viver a vida toda, duma maneira livre e apaixonada. Trata-se de dar oportunidade a um misto de devoção e crítica, na convergência dum consenso dos extremos ao serviço dum povo a caminho. A sua identidade assenta no fundamento cristão e português. Ignorar isto significaria cair na esquizofrenia, uma constante que tende a acentuar-se na nossa sociedade moderna. O falar e o agir são a expressão, do fogo que está por baixo das cinzas da vida e da história. O calor que nos abrasa pode tornar-se numa fogueira em Portugal, no mundo, a arder. Importante é que cada cidadão descubra o que está por baixo das cinzas da nossa história e aí acender a mecha e transmitir, esse fogo na construção duma comunidade sempre nova, sem os coletes apertados das ideologias ou dos ismos (vivendo respeitosamente também com eles), fortalecidos por uma vontade corajosa de auto-realizacao na concretização da pátria a caminho. Trata-se de reconciliar o romantismo com o realismo, a estética com o establishment, a democracia da esquerda com a democracia da direita, o passado com o futuro, num presente promissor. Não queremos um país de Bela Adormecida nem de ardinas. Queremos um país dinâmico e crítico onde o espírito se expressa na voz do mar que é, ao mesmo tempo, eco e transcendência, que expressa a ânsia dum povo por justiça, fraternidade, solidariedade, bem-estar e eternidade. Há que reavivar um debate em torno de uma ideia para Portugal. Tal como no século XV conseguimos ser expressão da descoberta da terceira dimensão que revolucionou o mundo de então, também hoje teremos que estar atentos à nova consciência do tempo como quarta dimensão da realidade (união tempo-espaço) – teorias da relatividade e dos quantas – que nos obrigará a uma nova maneira de estar no mundo e a arredar definitivamente do materialismo do século XIX. Com as muletas dum socialismo materialista não chegaremos longe. Tal como o Infante D. Henrique os nossos jovens têm que se dedicar ao estudo da física, da biologia e da mística. Vamos restaurar Portugal, vamos regenerar a sua democracia!
António da Cunha Duarte Justo
Pedagogo e Teólogo
Alemanha
Conferência proferida em Abril
Publicada também como artigo
António da Cunha Duarte Justo
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