O encenador interpreta aí a perfeição da obra de Mozart como um recalcamento, uma tentativa de reprimir a fragilidade humana contra a realidade existencial. Projecta nele a visão do ser humano como um defeito de construção. Muitos artistas, na incapacidade de criarem novos modelos, apenas reagem continuando amarrados às ideologias do século XIX sem sequer terem notado a revolução quântica e a relatividade na física do século XX. Desconhecem as exigências do novo século vivendo ainda das exterioridades consumistas dum século trágico. Encostam-se aos velhos símbolos de identificação dum país ou duma civilização, criticando-os e ridicularizando-os. Estão certos de que, ao fazê-lo, receberão as atenções dum público distraído e superficial que só reage ao escândalo. Tornou-se já moda de decadentes actuarem contra mitos e contra as coisas mais sagradas duma cultura para melhor poderem encher as caixas das bilheteiras e para se tornarem célebres. Não conhecem o sagrado, a honra, o sentido. Incapazes de relação só conseguem desligar, desordenar! Destroem os modelos das sociedades do passado sem alternativa para o futuro porque lhes falta uma visão de sociedade, um projecto. Limitam-se a recusar qualquer modelo afirmativo ou qualquer projecto de sociedade futura. Querem apenas uma realidade no seu estado primitivo, caótico e sem sentido. Encontram-se numa fase regressiva padecendo da cabeça, duma intelectualidade selectiva que não quer Deus mas apenas ídolos.
Ruminadores da verdade ao serviço do precariado
Usam e abusam dos representantes consumados duma cultura, dum povo, dos seus elementos fomentadores (referências) de identidade, como meios para se encenarem a si mesmos. Dão expressão ao acto destrutivo, ao thanatos, satisfazendo-se e limitando-se a decapitar os modelos antigos na incapacidade de criar novos. Com uma atitude adolescente só sabem protestar contra o pai ou contra a mãe que lhes deu o ser. Não se sentem na tradição criativa divina mas na intervenção destrutiva, “diabólica”. Não querem aceitar a realidade de que Mozart era de facto um compositor de Deus e para isso apresentam a arte de Mozart não como afirmação, como procura de Deus mas como um contra modelo, um projecto rival. Isso porque não aceitam que o ser humano se oriente pelo perfeccionismo, por Deus. Recusam-se a aceitar a grelha divina como a forma, a pauta em que Mozart procura lançar as suas notas.
Representantes duma cultura do precariado, uma cultura decadente, não aceitam que o homem se oriente pela ideia do bem, pela perfeição. Mozart era demasiado católico para um mundo que se quer protestante, niilista. Não aceitam um Deus humano que poderia trazer consequências para o próprio projecto humano. Não conseguiram ainda compreender que a grandeza do cristianismo é ter elevado a culpa, a falha à divindade na teologia da cruz. Só conseguem conceber o mundo em termos contraditórios de matéria espírito, de aquém-além, de bem-mal, verdade-mentira considerando-se a si mesmos como os ruminadores da verdade. Na encenação “ Idomeneo” Cristo e outros representantes das religiões são decapitados e colocados no mesmo tabuleiro porque são vistos como os responsáveis da afirmação da ideia de Deus, duma ordem no mundo. O fanatismo racionalista usa aqui os mesmos meios que o fanatismo religioso tem usado para se afirmar. Inconscientes de que são portadores do mesmo vírus que os fanáticos religiosos combatem o mundo daqueles com a mentalidade deles. Contra toda a ligação e compromisso, com o seu à parte, em Idomeneo afirmam-se como os representantes do niilismo moderno não notando que este já foi ultrapassado. Identificam toda a tradição como ilusão e no desespero duma vida não vivida cortam a cabeça aos símbolos dessa tradição. Ao desligar-se assim de todas as ligações reduzem o horizonte humano à substância original que seria o caos, que querem à sua maneira.
No Reino dos Cegos quem tem um Olho é Rei
Assim se procura minar todos os fundamentos humanos e sociais oferecendo em vez da Ilusão da salvação, a ilusão do desespero. Interpretam mal Cristo reduzindo-o a um revisor ou bilheteiro da eternidade. Não querem saber para poderem ter razão. O cristianismo não se limita a distribuir bilhetes de ida e volta para o mundo da ilusão, ele não se deixa reduzir ao folclore religioso que muitas vezes apreenderam nas paróquias ou num discurso religioso superficial que reduz o cristianismo apenas a religião. O cristianismo não adia a vida para depois, para o alem, pelo contrário antecipa-a. O adiamento parece uma constante, uma espécie de condicionalismo humano tanto na chamada vida religiosa como na laica. O ser consciente contraria essa tendência. A vida não se reduz a um jogo de excursões da vida.
Mozart quer mostrar com a sua perfeição musical a harmonia divina que resolve todos os contrastes. A cena das cabeças cortadas foi uma interpolação abusiva.
O homem moderno não suporta a perfeição. No novo século ainda rebentam os últimos foguetes do último século que nos querem prostrados no chão, de rasto na afirmação da própria negatividade, querem-nos serpente, quando o século XXI anseia por um novo homem, um novo Deus, quer reencontrar o sentido. A essência do homem é reconhecer e amar.
No fim de Novembro, Hans Neutenfels encenará na mesma Ópera de Berlim A “Flauta Mágica”. Oxalá esta não passe pelas mesmas peripécias porque passou “Idomeneo” dado que também ela se presta a muitíssimas interpretações. Além disso é uma ópera de carácter iluminista, carregada de grande simbologia maçónica podendo dar azo a uma manifestação provocante no dia a dia da luta cultural subjacente à maçonaria. Temos o teatro, o outro templo, o lugar secular, o outro lado onde o outro homo religiosus participa no rito do sacrifício: aqui imola-se, mata-se Deus. Parece que a diferença dos devotos está apenas nos lugares frequentados. Afinal a diferença não é essencial nem qualitativa. Se é verdade que é preciso limpar as teias de aranha e o caruncho da religião cristã, não é menos verdade que é necessário acabar com a arrogância racionalista que quer que a origem do mundo comece na revolução francesa e no extremismo do seu racionalismo. Este quer acabar com a memória colectiva da civilização cristã. O extremismo religioso e o extremismo racionalista (iluminista) são iguais na sua essência, na sua estratégia e nos seus fins: uns agarram-se à divindade Deus e os outros à divindade Razão. Quem separa a unidade razão-coração, a razão do coração fomenta duas ditaduras.
A alternativa à catástrofe do século XXI será a Mística
O século XXI talvez chegue a compreender e a aceitar a perfeição, (onde a harmonia dos contrários atinge a nível musical tal perfeição, a que poderíamos chamar de estagnação, o ponto da ressonância perfeita dos elementos) alcançada no terceto entre Sarastro, Tamino e Pamina da “Flauta Mágica”. Este estado da consciência é insuportável para uma cultura que no século XIX e XX observa a realidade pelo prisma do paradigma dialéctico, do contraditório. Apesar das mais diversas e contraditórias forças Mozart consegue-lhe o substrato comum na divindade do ser. Mozart resolve aqui a contradição fazendo-a desaguar na perfeição harmónica. Ele não faz senão resolver na música o que crê e misticamente experimenta na realidade da trindade, expressa na fórmula trinitária 3=1. A Realidade, a divindade, que é uma, diferencia-se para se manifestar na forma do Espírito gerador (Pai), na matéria (Jesus) que na relação se torna Matéria divinizada (Jesus Cristo), o protótipo de toda a realidade que deixa de ser antagónica e bipolar para se realizar e expressar na harmonia do espírito criativo: o eu no nós e vice-versa. Ele é o “lugar” onde se une e resolve a aparente dicotomia entre o indivíduo e o outro. Estes resolvem-se na harmonia do 1=3, não havendo mais contradição entre a personalidade e a comunidade, entre cultura regional e global; a desarmonia resolve-se através do espírito informador que é o terceiro elemento pessoal. Aqui encontramo-nos já na via mística que une razão e coração; sintoniza pensar, sentir e agir.
Nesta visão já não seria necessário transformar a beleza e a harmonia nem tão-pouco a dissonância num cavalo de batalha como se fossem inimigas e distorcidoras duma realidade que se quer bruta. Enquanto cada pólo antagónico pretender persistir e subsistir por si mesmo sem o terceiro elemento (o espírito, o Amor) nada se mudará no agir individual e social. Por isso são alérgicos ao equador, procurando viver na extremidade polar, optando pelo oposto, tal como se vê no niilismo, no espiritualismo, na música desarmónica, no partidarismo político que sendo apenas um pólo da realidade o afirmam como a visão e solução da realidade.
A Essência da Treva é a Luz
No Idealismo alemão e na música de Mozart e de Bach, a realidade atinge a perfeição superando a ideia de mundo como campo de batalha onde se trava o combate dos bons contra os maus. Há uma tentativa de integrar e revalorizar todas as forças e energias num interrelacionamento subsidiário. Quer-se descobrir a interioridade do agir, do pensar e do sentir. Essa tentativa foi contrariada pelo realismo que se lhe seguiu.
Os fundamentalistas da arte tornam-se alérgicos a uma forma perfeita repudiando a aspiração estética orientada para harmonia criacionista. A estética passa a ser vista como atentado à realidade, visto a beleza e o bem serem expressão duma ordem, duma estética estabelecida que vincula a pessoa a valores condicionadores da atitude e do agir. Numa palavra querem apenas notas musicais sem pauta e sem escala de notas, pretendendo a negação da música. A destruição da escala porém não implicou a destruição da relação factual das notas entre si, o que lhes causa problemas. Alérgicos à realidade popular e ao seu folclore vão para o outro oposto e declaram-se cacofónicos e apologistas duma música sem escala. Colocam-se no outro extremo da verdade, combatendo-a daí. Se para uns a noite é muito escura para outros o dia demasiado encandeante. Uns não vêm a realidade devido à demasiada luz outros devido à demasiada escuridão. Uns e outros não notaram que a essência das trevas é a luz…
Isto já o tinha reconhecido Paulo ao afirmar: Oh Félix culpa!... Não se trata da perfeição pela perfeição mas dum processo com sentido. A aceitação da fraqueza como elemento cultural e da comunicação é um axioma sempre presente na teologia da cruz. As nossas sombras não passam de formas de sofrimento, momentos da dor e do prazer. Se é verdade que a morte é mais natural que o amor, a força do amor é que tudo sustenta. O niilismo quer reduzir a vida à morte expressando o Eros como uma forma da morte. Se a dor nos acorda e conduz à intimidade de nós mesmos o amor relega-nos ao todo. A criatura tem de se assumir como tal e aceitar a realidade com as suas leis bem como o que as suporta.
Deus escreve direito por linhas tortas e Wolfgang A. Mozart conseguiu a ressonância humana na pauta divina.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
In “ Pegadas do Tempo”
António da Cunha Duarte Justo
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